Introdução
Em artigo anterior já se introduziu a revolucionária tecnologia da blockchain e seu funcionamento e se mencionou, en passant, a possibilidade de sua aplicação ao âmbito das notas e registros1. Quer-se, nesta coluna, aprofundar essa reflexão.
Blockchain, para recordar, corresponde à tecnologia disruptiva na qual as informações são consolidadas e encadeadas em blocos virtuais. Daí a expressão blockchain (blocks in a chain). Pode-se fazer analogia com um livro2, no qual cada página contém um texto (o conteúdo) em cujo topo se insere uma informação sobre o referido conteúdo (um título ou numeração).
De fato, a blockchain constitui um livro-razão de transações realizadas em determinada área. As transações da criptomoeda bitcoin, que dispensam a intermediação de um agente financeiro, formaram o conteúdo inicial dessa tecnologia, há quase uma década.
A segurança é sua marca mais atraente: em virtude da forma de disposição dos blocos e inviabilidade de modificação daquilo que “entra”no sistema, a possibilidade de atuação de hackers fica sensivelmente reduzida (obstada mesmo, segundo alguns).
Na era dos dados, o grande interesse está em dar maior celeridade e segurança ao tratamento das informações. A blockchain é uma tecnologia que faz isso de forma altamente qualificada. Essa inovação é ladeada por outras, como a chamada Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT), tecnologia na qual objetos do dia-a-dia podem ser controlados por dispositivos eletrônicos, em uma interação que permite maior segurança e facilidade nas operações. Outro bom exemplo está nos contratos inteligentes, conhecidos há algum tempo, e valorizados em virtude de o ambiente de contratação prescindir de intermediários, o que aumenta a segurança, confiabilidade e celeridade3.
Relativamente à blockchain, os desenvolvimentos recentes avançam no sentido de seu aproveitamento pelos mais diversos campos. Entra em cena, com isso, o problema de sua interação com os agentes tradicionais de cada área. Dentre esses agentes estão duas figuras de particular relevância: os notários e registradores.
A possibilidade de aplicação da blockchain à atividade notarial-registral
No Brasil, as pesquisas têm avançado em relação à possibilidade de emprego da tecnologia blockchain ao serviço notarial e registral. Faz todo sentido: se a blockchain é um livro de registros em cadeia, há uma evidente relação com a atividade, já no plano conceitual.
Tome-se o exemplo do Tabelionato de Notas. A aplicação dar-se-ia pela lavratura da escritura pública digitalmente, ou com sua lavratura e posterior inserção no sistema, havendo a validação e a decodificação do negócio jurídico, e a consequente criação do comprovante (hash), como já explicado na coluna anterior4.
A existência de estudos mais aprofundados demonstra uma importante abertura da classe dos notários e registradores às inovações tecnológicas, sempre com o objetivo de melhorar o desempenho da prestação do serviço, cuja qualidade técnica é já reconhecida pela população. A cautela, contudo, é imperativa. É claro que a segurança fornecida pela blockchain está muito relacionada a um dos principais aspectos da atividade notarial. Mas a maneira como essa aproximação ocorrerá é que exige reflexão. Muitos se empolgam com a novidade entendendo que haverá uma mitigação do elemento humano, de forma que as serventias passarão a contar com pouquíssimos escreventes e auxiliares, o que, em tese, ampliaria os lucros. Ocorre que o “canto da sereia” pode, em curto espaço de tempo, implicar a estatização ou a supressão do próprio titular.
Afinal, não constitui a blockchain justamente uma dispensa da intermediação de agentes – públicos e privados – para a realização das transações entre outros agentes? Ao afastar a intermediação até mesmo das instituições financeiras em transações econômicas, como afirmar que será possível incorporar a blockchain como um suporte, a ser manejado pelos agentes tradicionais em um determinado ramo?
Na prática, as transações já revelam uma operacionalização que prescinde do elemento intermediador para a disposição das informações. Mesmo assim, essa autonomia – que, em larga medida, é o que garante a segurança e eficiência do sistema – pode ser de algum modo conectada ao operador humano. É possível criar pontes entre a blockchain e a atividade notarial, por exemplo, tendo como partícipe necessário o tabelião ou registrador.
O ponto central está na forma como os atos são juridicizados. Se a legislação de certo país exige uma determinada forma para emprestar efeitos jurídicos à vontade das partes em um negócio, por exemplo, existe a possibilidade de pensar as novas tecnologias sem o medo de uma total substituição. É o caso do elemento chave para a preservação da atividade notarial-registral em face da blockchain: a fé pública.
Em uma mesma reportagem na qual o Presidente do Colégio Notarial do Brasil (CNB), Paulo Roberto Gaiger Ferreira, referiu-se à necessidade de se usar a tecnologia a favor da atividade notarial (o que está corretíssimo)5, há um interessante alerta feito pelo especialista em desenvolvimento web, Walker de Alencar. Segundo ele, a blockchain deve justamente ser adotada pelos agentes notariais e registrais para que estes “entrem” no novo universo, conseguindo acessar a base de dados, aplicando os emolumentos e fiscalizando o fluxo de informações6.
Como recorda essa mesma reportagem, existe um elemento próprio dos ofícios de notas e registro e que falta à blockchain, isto é, a fé pública. No Brasil, o reconhecimento, pelo Estado, da autenticidade dos documentos e informações é feito por esses agentes, a quem exclusivamente se transmite a possibilidade de dar fé.
Isso deve continuar sendo assim. Por um motivo simples: dá certo. O Brasil, um país marcado historicamente pela burocracia e pela letargia do serviço público, tem nas notas e registros uma atividade qualificada, célere e segura. Isso se deve, em muito, ao agente humano. O oficial garante a qualidade do serviço. A organização das classes tem dado força ao trabalho. Abrir mão disso não deve estar sequer em cogitação.
Bom. Sendo assim, a blockchain poderia ser adotada como uma ferramenta de organização ou mesmo auto-organização de transações, como os chamados contratos inteligentes, o que não dispensaria a confirmação do oficial – notário ou registrador -, isto é, a dotação de fé pública. Se for esse o propósito do debate, é difícil manifestar-se em sentido contrário. Afinal, a promessa é de maior agilidade e segurança, de facilitação “para todos”. Até mesmo as instituições financeiras, de ameaçadas pela nova tecnologia, tornaram-se suas investidoras e “parceiras”.
O problema é que, como já afirmou um conhecido ex-ministro, no Brasil até o passado é incerto. O que ocorrerá caso, amanhã ou depois, a fé pública, essa “chave interpretativa” de toda a atividade notarial-registral, venha a ser questionada em termos de necessidade? Pode ser que, diante disso, a blockchain deixe para trás o notário e o registrador. O excesso de confiança nunca é salutar. E não é preciso ter uma imaginação futurista. A era pós-digital já funciona assim: cada facilidade nova traz em si a semente de novas possibilidades, ou, em linguagem crua, de novas dificuldades a serem destruídas.
A prudência notarial e registral não pode incidir apenas sobre o desenvolvimento estrito do trabalho. Precisa incidir também sobre a própria organização da atividade, como ocorre no Brasil, onde, como já se disse, as classes se organizam e ajudam a alimentar o processo de fiscalização pelo Poder Judiciário. Em outros termos, a prudência notarial e registral também corresponde à participação desses agentes no planejamento dos rumos de sua atividade. É o que tem ocorrido em torno das discussões sobre a blockchain. Mesmo assim, há alguns desvios.
Alguns notários e registradores, empolgados com a nova tecnologia, pregam a “reinvenção” das atividades notarial e registral. Ocorre que essas atividades têm um lastro histórico e dificilmente ganharão espaço no exercício típico de atos da jurisdição. O seu ambiente próprio não é esse. E se a qualificação (esta sim, típica da atividade), for substituída por uma qualificação cibernética, pode-se chegar a um esvaziamento total do serviço notarial e registral, o que é perigoso em vários sentidos.
Não adianta planejar um deslocamento da função típica do notariado e do registro como forma de “curar” as possíveis feridas que a blockchain venha a abrir. Ao revés, é necessário que desde logo os notários – especialmente eles –, enquanto acompanham a discussão e atualizam tecnologicamente a atividade, trabalhem no sentido de afirmar a imprescindibilidade da fé pública dada pelo agente prestador do serviço. Pelo que se entende, é ela a garantia da continuidade da atividade notarial e registral.
Do contrário, a revolução da blockchain acabará como a Revolução Francesa (que, após o “período do terror”, foi comparada a Saturno): devorando seus próprios filhos.
Conclusão
No caso das notas e registros o Brasil conseguiu atingir um nível de organização bastante elevado. O serviço é bem avaliado e os seus agentes são capazes de estabelecer formas qualificadas de gestão interna, para além da coordenação e fiscalização da atividade, desempenhada pelo Poder Judiciário. O compromisso dos notários e registradores com a evolução do serviço, vista claramente em sua preocupação com a atualização da classe sobre a blockchain, é um bom indicativo dessa qualidade.
É preciso lembrar que uma das notas elementares da blockchain é o fato de não haver intermediação, constituindo um sistema de autoalimentação. Pretender aplica-lo como simples suporte pode criar problemas, na medida em que se planeje um ambiente com essa configuração e se perceba – talvez tarde demais – que a blockchain não cabe nas fronteiras até agora conhecidas do emprego tecnológico. Daí a relevância de criar mecanismos que permitam aos notários e registradores o efetivo “ingresso” nas plataformas, de forma que não se estabeleça um sistema paralelo. A maneira mais efetiva de vincular a realização dos negócios e a transmissão e circulação de bens à atuação desses profissionais é a continuidade da exigência da dotação de fé pública, que a legislação consagra.
De todo modo, é forçoso recordar que Brasil não tem um histórico de adaptação célere às novas tecnologias. Agora, em meio à crise econômica, à evidente retirada de investimentos em pesquisa e à decadência produtiva, não é razoável supor que uma disruptive technology anunciada com ares de revolução, como a blockchain, seja habilmente incorporada ao cenário nacional. É verdade que essa tecnologia promete democratizar os espaços, desregulamentar e desburocratizar todo o procedimento. Mesmo assim, o processo de transição para essa zona livre (em certa medida) da intermediação de agentes públicos e privados requer cautela.
O que se pode afirmar, com alguma segurança, é que tecnologia alguma retirará o mérito humano que torna o Direito um elemento da cultura. O estado atual do Direito Notarial e Registral, particularmente, é devido a séculos de evolução, pesquisas, e uma inserção nos momentos altos da vida social. Essa sua marca, que o torna um refinadíssimo ramo do Direito, não pode ser ameaçada por nenhum avanço contemporâneo. Já é algo consolidado.
Por fim, recorde-se, como provocação, a frase dita no século passado por um melancólico (mas bem-humorado) Albert Einstein: “meios cada vez mais precisos, para fins cada vez mais vagos são uma característica da nossa época”.
Sejam felizes, até o próximo Registralhas!
__________
1 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Blockchain: amigo ou inimigo das notas e dos registros? Registralhas, 11 de julho de 2017.
2 LEWIS, Antony. A gentle introdution to blockchain technology, Published by BraveNewCoin – BNC. Digital Currency Insights, p. 7.
3 Cf. MOMBELLI, Elisa. Bitcoins, blockchain e a chegada dos contratos inteligentes. Migalhas, 12 de novembro de 2015.
4 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Blockchain…cit.
5 Revista Cartórios com Você, n. 7, reportagem por Larissa Luizari.
6 Idem.