(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca -parte 38)
760. Tal se lê no art. 1.485 do Código civil brasileiro atual, uma vez superado o prazo máximo de 30 anos da eficácia de uma hipoteca, só poderá subsistir o contrato, “reconstituindo-se por novo título e novo registro”, hipótese em que “lhe será mantida a precedência, que então lhe competir”.
Essa norma reproduz a do art. 817 do Código civil nacional de 1916, e sua parte final não constava da proposta originária, o que serviu de pilar para a posição de Clóvis Beviláqua na controvérsia doutrinária logo estabelecida acerca do tema, sobretudo diante da posição que à altura capitaneava Azevedo Marques.
Sustentou Clóvis Beviláqua, em seus muito autorizados comentários ao Código civil, que, prevendo a normativa a manutenção da precedência da hipoteca reconstituída por novo título e nova inscrição, entendeu conservar-se, com isto, a posição anterior: “se se tratasse de nova hipoteca, sem ligação com a precedente –disse ele–, era inútil o disposto no final do artigo, que foi acréscimo nele intencionalmente posto, precisamente para mostrar que, embora houvesse necessidade de novo título e de nova inscrição, a hipoteca mantinha o posto, que lhe cabia diante das outras”.
É dizer que, ultrapassado o período trintenal de vigência máxima da hipoteca, sua reconstituição (o Código de 1916 e de 2005 valem-se ambos do verbo “reconstituir”) não alteraria o direito posicional correspondente: se a hipoteca era de primeiro grau, reconstituiu-se na mesma gradação com o novo título e o novo registro; se de segundo, por igual mantém este posto, etc.
Assim, Clóvis Beviláqua argumentou que, em ambas as hipóteses previstas no art. 817 do Código de 1916 (e que correspondem às do Código de 2005), haverá prorrogação da hipoteca (protelatio obsidis), com só distinção de modo ou de forma: “uma depende de simples averbação, quando se opera dentro de trinta anos da data do contrato; outra exige novo título e nova inscrição, quando se transpõe esse lapso de tempo”. Desta maneira, para Clóvis, o novo título e a nova inscrição revigoram ou confirmam a garantia anterior, permanecendo a gradação da hipoteca que se reconstitui.
O entendimento oposto de Azevedo Marques supõe que se tome, à partida, a ideia de subsistência do contrato de hipoteca (noção expressamente referida no art. 817 do Código de 1916 e no art. 1.485 e o vigente Código civil brasileiro) como perseverança da vontade institutiva da hipoteca pelos interessados e não simplesmente como uma perseverança constitutiva (ou constituída) da própria hipoteca.
Por isto, firmou-se Carvalho Santos em que, depois de transcorrido o prazo de 30 anos, se os interessados desejam dar continuidade à hipoteca, “faz-se necessário lavrar um novo título e fazer uma nova inscrição, como se fosse um novo contrato”, porque a hipoteca antecedente “já tinha ficado sem efeito”. Prossegue Carvalho Santos:
“O ensinamento de Azevedo Marques é que está certo e quando o Código diz claramente que, em tais casos, lhe será mantida a precedência que então lhe competir, não quer dizer que será conservada a sua colocação anterior (…), mas, sim, que terá a preferência que lhe competir na ocasião de ser inscrita a nova hipoteca.”
Nada obstante, a conclusão de Azevedo Marques não se desampara do endosso de muitos de nossos juristas (p.ex., Lisipo Garcia, Serpa Lopes, Pontes de Miranda –para quem “a reinscrição não escapa à regra jurídica sobre ineficácia contra os que já eram titulares de direito de preferência sobre o bem gravado”– e Orlando Gomes: “Reconstituída a hipoteca, sua validade em relação a terceiros começa na data da nova inscrição”). Afrânio de Carvalho também não destoou deste entendimento, ainda que se tenha lançado a uma distinção teórica: “Ante a possível existência de uma só ou de mais de uma hipoteca, força é reconhecer que o final do artigo [refere-se ao art. 817 do Código civil de 1916] é aplicável a ambos os casos e que ele não significa a manutenção incondicional do grau de inscrição original da hipoteca prorrogada ou renovada. Esse grau somente se mantém se entre a inscrição original e a prorrogação ou renovação não se houver interposto outra hipoteca. Do contrário, violar-se-ia um princípio elementar de direito, o neminem lædere, prejudicado o direito que assiste ao credor da hipoteca interposta de, no vencimento da primeira, promover a execução da sua”.
Diversamente, Caio Mário da Silva Pereira leciona que, escoado o prazo máximo legal da hipoteca, sua nova constituição mantém-lhe a precedência primigênia (vidē n. 362 do tomo IV das Instituições de direito civil), e na mesma linha estão as autoridades de Carlos Roberto Gonçalves e Luciano de Camargo Penteado. É também o que sustenta Francisco Eduardo Loureiro, para quem já se terá superado o antigo dissídio doutrinário:
“Parece claro que se a hipoteca reconstitui-se, confirma-se, consolida-se e mantém a ordem de preferência, somente tem sentido a norma se for a ordem originária.”
Remete-se o des. Loureiro a uma indicação legal abonadora, a do art. 238 da Lei n. 6.015/1973: “O registro de hipoteca convencional valerá pelo prazo de 30 (trinta) anos, findo o qual só será mantido o número anterior se reconstituída por novo título e novo registro”, e invoca a doutrina cônsona de Tupinambá Castro do Nascimento, para quem a ordem original da preferência da hipoteca reconstituída apenas se preservará se a instituição e a constituição forem tempestivas, ou seja, se ocorrerem “antes de decorridos os trinta anos da data do contrato hipotecário que antecedeu a reinscrição”, pois, de não ser assim, diz Francisco Loureiro, “poderia o terceiro credor de boa-fé ser surpreendido pela reconstituição de hipoteca já extinta com manutenção da preferência original, em autêntica subversão da garantia e da segurança das relações negociais e dos direitos reais”.
Deixando à margem a discussão sobre a melhor ou menor feliz prudência legislativa nesta matéria, parece, com efeito, que a tese de Azevedo Marques esbarraria na inutilidade da previsão normativa em pauta, pois se o de que se trata é meramente da possibilidade de instituir e constituir novas hipotecas, nenhuma seria a necessidade da disposição final do art. 1.485 do Código brasileiro de 2005 (ou art. 817 do Código de 1916). Mas, ainda que se admita de lege lata a preservação da preferência originária, subsiste um problema: a hipoteca, suscetível de reconstituir-se com a mesma precedência da origem, tenderia já à permanência indeterminada, o que, é de reconhecer, remata na ofensa do caráter de transitoriedade natural das onerações do domínio.
Em resumo:
(i) até o prazo limite de 30 anos, segundo a lei, pode requerer-se, para a prorrogação do contrato de hipoteca, a averbação de sua ocorrência;
(ii) essa averbação pode solicitar-se tanto antes, quanto depois do vencimento do prazo convencional da garantia;
(iii) se o averbamento se pedir antes do vencimento desse prazo, mantém-se, sem dúvida, sua preferência originária;
(iv) se a averbação for requerida depois do vencimento do prazo convencional da hipoteca, é controversa a preservação da preferência primitiva (Azevedo Marques e Carvalho Santos entendem que, nesta hipótese, não se impede o direito de os credores de hipotecas pósteras remirem a garantia anterior);
(v) suplantado o prazo trintenário de uma hipoteca, só poderá subsistir a garantia “reconstituindo-se por novo título e novo registro”, sendo de todo controversa a manutenção da precedência, que então lhe competir;
(vi) se se entender preservada, com o novo registro, a preferência da hipoteca originária, deve formular-se o pedido da nova inscrição, contudo, em tempo anterior ao limite de 30 anos do contrato hipotecário precedente.
Passemos agora a discutir se, caracterizada a perempção da hipoteca –com o transcurso do prazo legal trintenário sem averbação ou registro da protelatio–, deve “cancelar-se” o registro da hipoteca originária e se isto exige observância do princípio da rogação.