O Notário e a Moralidade Pública (parte 15)
Para encerrar o conciso tratamento do tema da virtude da piedade patriótica –o que nos levou a excursionar pelo conceito de pátria–, resta-nos a consideração de mais dois dos vários elementos constitutivos desse conceito: o querer viver coletivo e a tradição.
Entre os fatores constitutivos da pátria está, sem dúvida, o vouloir vivre collectif (querer viver coletivo), indicado pelo grande jurista Louis Le Fur, professor que foi da Universidade de Paris, numa referência sem dúvida importante, mas incorrida em exageração de seu papel, por dar a este querer o caráter de principal elemento definidor da pátria.
Em Les grands problèmes du droit (Paris: Sirey, 1937), Le Fur, depois de observar que a pátria é a nação que, tomando consciência de sua personalidade, torna-se objeto de uma espécie de culto e de um sentimento especial (patriotismo), afirma que
“o patriotismo é a síntese de vários elementos que contribuem para formar o vínculo nacional: elemento fisiológico da raça, onde ele exista, e sobretudo o querer viver coletivo (vouloir-vivre collectif), com todos os fatores sociais que a fizeram nascer, conservar-se e, em seguida, desenvolver-se: elementos morais e intelectuais, língua, ideias, arte, religião, tradições comuns, alegrias e sofrimentos suportados em comum no curso dos séculos”
(p. 483-4; tradução livre).
Desta opinião de Le Fur não é de todo distante o que, embora com objeto mais amplo, disse José Ortega y Gasset: “La civilización es, antes que nada, voluntad de convivencia”. Esta expressão “vontade de conviver” –ou seja, o vouloir vivre collectif–, esta vontade comunitária nacional, mais propriamente: vontade patriótica, manifesta, no dizer de Le Fur, um sentimento da mesma ordem que o amor da família: “la famille”, afirmou ele, “est la première petite patrie de tout homme”.
Não se pode, além disto, negar que esta expansão do sentimento de amor familiar para abranger, em círculos distintos, todos os seres humanos, a iniciar pelos mais próximos e prosseguir de modo gradual (familiares, amigos, partícipes de um mesmo ofício, compatriotas), ostenta um matiz cristão. Com efeito, depois do primeiro mandamento de amor a Deus, o segundo preceito –que se diz autem simile ao primeiro (S.Mateus 22,39)– é o do amor ao próximo, ou seja: a todos os homens, tomando-se por paradigma o amor de si próprio (diliges proximum tuum sicut te ipsum).
Todavia, nada obstante a evidente relevância deste querer viver coletivo na formação, preservação e desenvolvimento da comunidade nacional, o fato é que a mera vontade de convivência, por isto mesmo que presente em todas as nações, não pode ser, de si própria, o fator que define a pátria. Manifesto é que tendo os povos de todas as nações a vontade de viver nacionalmente em comum não possa ser essa vontade o traço que exatamente caracterize a diversidade das mesmas nações.
Em verdade, o querer viver coletivo de cada nação tem seu objeto próprio, específico, qual seja, cada uma das nações seu próprio patrimônio cultural que se foi sedimentando ao largo do tempo. Este patrimônio –prenhe de vários elementos: valores, ideias, língua, raça, mitos, legendas, território, religião, artes etc.– é o que, por força de sua transmissão histórica, geração após geração, forma e preserva a identidade das nações e explica-lhes a diversidade: enfim, a nação descende da pátria, e a pátria, da tradição; a pátria, em resumo, é a nação ciente e consciente da cultura que suas gerações sucessivas gestaram e transmitiram com o transcurso paciente do tempo.
É, pois, a peculiar tradição do patrimônio cultural nas gerações que se sucedem –é dizer, a transmissão particular de cada patrimônio em cada povo– o que constitui a pátria e dá identidade às nações.
O vocábulo tradição tem sido pejorado como algo que leva à singela conservação do antigo. Mas, diversamente, a tradição é dinâmica, o que se recolhe de seu mesmo conceito nominal (de traditio, traditionis, entrega) e corresponde à ideia de preservação retificada de virtudes e valores. A tradição é a fonte dos hábitos nacionais, é o que enraíza a nação em suas disposições mais fundas, é a dinâmica de seus ideais e de seus sentimentos, é o que permite aventurar, das contingências, o mais provável dos futuros. É ela, a tradição, o elemento principal da pátria.
Interessante é aqui trazer à consideração, para assim concluir esta brevíssima referência ao tema da tradição como elemento formador da pátria, o que um pensador contemporâneo –o Patriarca de Moscou, Cirilo I (no século: Vladimir Mikhailovich Gundyayev), chefe da Igreja cismática, dita ortodoxa russa, observou acerca da diferença das confrontações entre as antinomias no século XX e no século XXI. As do século XX, ao menos nominalmente, punham em contraste a monarquia contra a república, o fascismo contra o comunismo, o totalitarismo contra a democracia. Vivemos agora, diz o Patriarca Cirilo I, “uma nova e mais difícil rivalidade”: a do confronto entre o universalismo e o particularismo, ou mais exatamente entre o globalismo e o tradicionalismo (na edição epanhola, Libertad y responsabilidad: en busca de armonía –Granada: ed. Nuevoinicio, 2014, p. 18–, em vez de “globalismo”, usa-se, com aparente dissonância contextual, o termo “globalización”). O globalismo, mediante o que não faltaria a acusação de imperialismo cultural, é um adversário evidente do patriotismo.