(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a locação – parte 5)

Des. Ricardo Dip

773. Controversa é, entre nós, a possibilidade de registrar-se o leasing predial no ofício imobiliário, e a doutrina brasileira, inclinada embora a considerar conveniente o registro do arrendamento mercantil, divide-se entre os autores que o admitem prontamente (p.ex., Biasi Ruggiero, José Reinaldo Peixoto de Souza e Elvino Silva Filho) e os que o sugerem de lege ferenda (assim, Afrânio de Carvalho).

Disse, a propósito, Elvino Silva Filho que, nada obstante a posição da jurisprudência pretoriana ser avessa ao ingresso do leasing no registro imobiliário, o acesso deste título “encontra suporte no que prescrevem os arts. 167, I, ns. 3 e 9, 172 e 242 da Lei de Registros Públicos”, ainda que se deixe à margem de discussão o tema da natureza jurídico-real do leasing porquanto não se recusará tenha ele, ao menos, transcendência real.

Não diversamente, Biasi Ruggiero e José Reinaldo Peixoto de Souza, aplaudiram as soluções judiciárias que admitiram o registro do leasing –incluído o leaseback– com amparo na norma do art. 5º da Lei de introdução ao código civil (era este seu consagrado nome, desde setembro de 1942, até que, em 2010, a Lei 12.376 expediu-se apenas para alterar a ementa daquela normativa tradicional, de maneira que, agora, a célebre Lei de introdução ao código civil denomina-se Lei de Introdução às normas do direito brasileiro). Mas os autores não deixaram de referir que “o ideal seria a alteração da legislação para que, de modo inequívoco, contratos complexos como o lease back se tornassem, de per si, registráveis, inclusive para a maior segurança dos que negociassem com as partes nesse contrato” (in “O lease back no registro imobiliário”, publicado em Doutrinas essenciais -Direito registral, vol. V, p. 255 et sqq.).

Tem-se, pois, que Elvino Silva Filho escora a admissibilidade do registro imobiliário do leasing em previsões legais vigentes e explícitas, ao passo em que Ruggiero e Peixoto de Souza o admitem, sem amparo em preceitos específicos, mas com apoio em uma compreensão do sistema legal, nos termos que indica o art. 5º do Decreto 4.657/1942 (de 4-9): “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”

Afrânio de Carvalho, por sua vez, em um estudo republicado no volume V das Doutrinas essenciais -Direito registral (p. 147 et sqq.), advertiu que, sem o registro imobiliário do leasing, não haveria meios de proteger adequadamente “a opção do arrendatário para readquirir o imóvel, de vez que, como promessa unilateral, é suscetível de ser rompida pela instituição financeira com a venda do imóvel a outrem”. Todavia, o autor não entendeu possível o registro, primeiro porque o ofício imobiliário, a seu ver, destina-se a receber “os direitos reais, e não os direitos pessoais, que, pelo fato de o serem, ficam foram de seu âmbito”; para mais, sustentou ser taxativa a enumeração do art. 167 da Lei brasileira 6.015. De que segue a conclusão desse interessante estudo de Afrânio de Carvalho:

“…o arrendamento mercantil somente poderá ingressar no Registro de Imóveis quando sobrevier uma lei que, à semelhança do Código Civil atual [era o de 1916] no tocante com cláusula de vigência contra o adquirente (CC, art. 1.197; Lei 6.015/1973, art. 167, I, n. 3), preveja, a respeito do arrendamento mercantil, a sua inscrição no Registro de Imóveis e assegure verdadeiramente ao vendedor arrendatário a sua opção de compra do imóvel.”

774. Pode resumir-se a discussão sobre o registro predial do leasing a três modos ou critérios: (i) o da previsão legal; (ii) o da utilidade; (iii) o da coerência sistemática.

É pelo primeiro destes modos que se norteou Afrânio de Carvalho para recusar, de lege lata, a inscrição do leasing no registro de imóveis. E isto porque, tal ficou sobredito, o registro imobiliário –segundo Afrânio de Carvalho– visa à recepção de direitos reais, de par com o acréscimo de, a seu ver, o rol constante do art. 167 da vigente Lei 6.015, de 1973, estar in numero clauso.

Por mais deva compreender-se com alguma elasticidade a afirmação de que o registro de imóveis se destine a receber direitos reais, o fato é que, ainda se considere figurada essa afirmação, ela não parece correta.

Com efeito, ressalvadas as poucas hipóteses de inscrição cuja natureza capital seja declarativa (assim, a usucapião e a sucessão mortis causa), calha que o registro imobiliário não inscreve direitos reais, senão que os constitui, que os atualiza, registrando títulos –ou seja, fatos, atos e negócios jurídicos–, de cuja inscrição emergem os direitos real-imobiliários. Os títulos (ainda uma vez com a salvaguarda da usucapião e da transmissão mortis causa) somente são potências de direito real sobre imóveis, o registro, sua atualização: vale dizer que, com o registro, passa-se da potência ao ato. Os títulos, a matéria; o registro, a forma, a determinação.

Desta maneira, embora o ofício de registro de imóveis, porque destinado à ordenação da propriedade imobiliária privada, tenha, isto sim (reconheça-se), a tendência de publicar situações jurídicas reais, isto não significa que esse registro apenas se destine a publicar direitos reais, e, muito menos, que se dirija a receber ou inscrever direitos reais.

Cabe distinguir, de um lado, a publicação de status jurídico, e, de outro lado, a inscrição logicamente anterior àquilo que se publica. Esta, a inscrição, pode ser de dois modos. Um, a inscrição do próprio status (p.ex., a do caráter em que prepondera o escopo declarativo: usucapião, sucessão mortis causa); o outro modo, o dos títulos ou causas jurídicas do status que só se constitui mediante a inscrição (que, por isto mesmo, tem natureza constitutiva).

Quando se fala, por exemplo, em registro aquisitivo, isto se refere, propriamente, à inscrição de um título de aquisição –compra e venda, dação em pagamento, doação, etc.–, equivale a dizer, remete-se a uma causa jurídica (fato, ato ou negócio). Tem-se, portanto, que não se inscreve o direito real, mas um título a partir de cuja inscrição (que é seu modo) se constitui o direito real.

Exatamente aí vê-se a clave da solução: os títulos jurídicos contam-se in numero aperto, de sorte que não se pode, sem mais, concluir sejam seus registros estimados na lei em numerus clausus.

A só circunstância de um sistema jurídico ser definidamente formal não acarreta haja a necessidade de impor um limite estrito e textual quanto a seu objeto. Pense-se na situação do registro de imóveis: é suficiente, para garantir as vantagens formais do sistema, adotar-se um critério seguro para a admissão das inscrições; mas isto não importa em sua redução a um número literal e previamente clausurado de hipóteses inscritivas. Para o caso brasileiro atual, tem-se uma critério bastante sólido: admite-se a inscrição de títulos –legalmente idôneos– que tenham aptidão para, mediando o registro, constituir direitos reais (ou direitos com transcendência real), permitindo-se, em acréscimo, ainda outras inscrições desde que estas possuam previsão expressa (p.ex., a de citações, sequestros, arrestos, penhoras).

O segundo ponto de apoio adotado por Afrânio de Carvalho –qual o da taxatividade do rol do art. 167 da Lei brasileira 6.015– parece solvido pelas mesmas razões já aqui expostas: a observância do princípio da legalidade não é, nullo modo, afetada pelo caráter não exaustivo da relação dos registros stricto sensu enunciada no inciso I do art. 167 de nossa Lei de registros públicos, exatamente em virtude de as inscrições se referirem a títulos, títulos que a normativa prevê em número aberto.

Assim, de não haver previsão legal expressa, no ordenamento jurídico vigente, não pode, por si só, extrair-se o impedimento ao registro imobiliário do leasing.