Sobre a paternidade socioafetiva, é possível que seu reconhecimento se dê administrativa ou judicialmente
De acordo com dados recentes do Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil (CNB/CF), houve aumento de 15% do número de divórcios registrados em cartórios no Brasil no segundo semestre de 2020 em relação ao período equivalente no ano anterior. Ademais, segundo o mesmo CNB, registrou-se crescimento substancial de formalizações de uniões estáveis, e se percebe nitidamente a reconfiguração de relações socioafetivas no âmbito das famílias brasileiras, acompanhada de impactos sensíveis sobre a relação entre pais e filhos, especialmente no caso de pais separados.
Como o objeto deste artigo são as implicações dos fenômenos jurídicos do adultério, do divórcio, da união estável, da parentalidade socioafetiva e da alienação parental sobre as relações entre pais e filhos, é mister, de antemão, salientar que os três primeiros não implicariam em mudanças, do ponto de vista jurídico. Tal entendimento é balizado pelo art. 1.632 do Código Civil (CC).
Sobre a paternidade socioafetiva, é possível que seu reconhecimento se dê administrativa ou judicialmente, conforme o Provimento 63, de 14 de novembro de 2017, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), recentemente alterado pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019. A filiação socioafetiva, no entanto, independe de registro. Esse entendimento é amparado pelo Recurso Extraordinário (RE) 898.060/SP, com repercussão geral reconhecida, cujo Relator fora o Ministro Luiz Fux, e em seu voto assim se posicionou:
Naquele mesmo RE, foi fixada a seguinte tese jurídica:
As principais implicações da paternidade socioafetiva, destacadas pelos Enunciados 6, 29 e 33 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), são a assunção de direitos e deveres inerentes à autoridade parental pelo pai afetivo ou pela mãe afetiva; a possibilidade de cumulação da parentalidade socioafetiva e da biológica no registro civil; e os efeitos jurídicos sucessórios, de forma que a(s) filha(s) ou o(s) filho(s) afetivos terão direito à herança do pai afetivo ou da mãe afetiva.
Enunciado Ibdfam 29 – Em havendo o reconhecimento da multiparentalidade, é possível a cumulação da parentalidade socioafetiva e da biológica no registro civil.
Enunciado Ibdfam 33 – O reconhecimento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade gera efeitos jurídicos sucessórios, sendo certo que o filho faz jus às heranças, assim como os genitores, de forma recíproca, bem como dos respectivos ascendentes e parentes, tanto por direito próprio como por representação.
O pai afetivo ou a mãe afetiva também terá em relação aos filhos afetivos, da mesma forma que para com os filhos biológicos, obrigação alimentar. Assim, consta do art.1.696 do Código Civil, com interpretação destacada pelo Enunciado 341 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF):
Enunciado CJF 341 – Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar.
Esclarecido esse aspecto, passemos à análise da famigerada alienação parental, lamentavelmente tão devastadora quanto a pandemia COVID-19.
É sabido ser direito dos pais conviver com seus filhos, e destes de conviver com os pais. Tal direito essencial é resguardado, na forma do caput do art. 1.589 do Código Civil brasileiro.
O legislador pátrio também reconheceu o direito fundamental de convivência familiar saudável, disposto no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a lei 8.069, de 13 de julho de 1990:
Em confronto com a lei e o direito das crianças, a alienação parental produz a violação do direito à convivência familiar entre pais e filhos, além de também confrontar os direitos de personalidade destes. A definição legal de alienação parental consta do art. 2º da lei 12.318, de 26 de agosto de 2010.
Os quatro primeiros incisos do referido dispositivo exemplificam situações comumente percebidas.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
I – realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;
II – dificultar o exercício da autoridade parental;
III – dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar
(…). (BRASIL, 2010)
Se restar clara a configuração da alienação parental, além da violação do direito fundamental dos filhos ao afeto do pai e da mãe, estará caracterizado o abuso moral dos que a praticam contra os filhos e descumprimento dos deveres decorrentes da guarda. Sobre isso dispõe o art. 3º da Lei nº 12.318/2010:
A mãe ou o pai que percebê-la deverá apresentar em juízo indícios da alienação, com vistas a pôr fim a tal realidade que possui enorme potencial de dano à integridade emocional de seus filhos. Podem ser considerados indícios: a) registros de comunicações com expressa manifestação do intuito de alienar os filhos; b) ata notarial do teor de comunicações telefônicas e/ou eletrônicas em que se manifesta intenção de não deixar que os filhos convivam com a mãe ou o pai. Nesse sentido, segundo o art. 4º da lei 12.318/10:
Como bem esclarece o Enunciado 27 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), seria desnecessário medida judicial específica. Porém, o magistrado dependerá de avaliação técnica que poderá demandar tempo razoável.
Enunciado Ibdfam 28 – Havendo indício de prática de ato de alienação parental, devem as partes ser encaminhadas ao acompanhamento diagnóstico, na forma da lei, visando ao melhor interesse da criança. O magistrado depende de avaliação técnica para avaliar a ocorrência ou não de alienação parental, não lhe sendo recomendado decidir a questão sem estudo prévio por profissional capacitado, na forma do § 2º do art. 5º da lei 12.318/10, salvo para decretar providências liminares urgentes.
Caso seja comprovada a alienação parental, recomendam-se as seguintes ações:
1) Ação de destituição ou suspensão do poder familiar da mãe ou do pai que pratica a alienação, com pedido liminar. Neste caso, segundo o art. 155 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a ação poderá ter início por provocação do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse, ou seja, o pai ou a mãe que sofre os efeitos da alienação parental sobre seus filhos. O pedido liminar, por sua vez, é amparado pelo art. 157 do ECA.
2) Ação de alteração de guarda com fulcro na alienação parental. Embasariam as referidas ações os incisos V e VII do art. 6º da lei 12.318/10:
(…)
V – determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão;
(…)
VII – declarar a suspensão da autoridade parental. (BRASIL, 2010)
Ademais, seriam justificativas consistentes do pedido os Enunciados 101 e 102 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), abaixo transcritos.
Sem prejuízo dos deveres que compõem a esfera do poder familiar, a expressão “guarda de filhos”, à luz do art. 1.583, pode compreender tanto a guarda unilateral quanto a compartilhada, em atendimento ao princípio do melhor interesse da criança.
Enunciado 102 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF)
A expressão “melhores condições” no exercício da guarda, na hipótese do art. 1.584, significa atender ao melhor interesse da criança.
Por último, importante dizer, levando a efeito o art. 186 do Código Civil (CC) pátrio: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O dano causado, conforme descrito no tópico dos direitos violados, há de ser reparado, sob amparo do art. 927 do CC:
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (BRASIL, 2002)
Conclui-se, pois, ser cabível também ação de indenização em face de qualquer dos genitores que tenha praticado a alienação. Sobre o tema já há jurisprudência com estipulação de quantum indenizatório significativo, dados os bens jurídicos atacados:
(TJ/MS – AC: 08272991820148120001 MS 0827299-18.2014.8.12.0001, Relator: Des. João Maria Lós, Data de Julgamento: 3/4/18, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 5/4/18)