O impacto da tecnologia na atividade notarial e sua regulação pelo provimento n.º 100 da Corregedoria Nacional de Justiça  

Por Márcio Martins Bonilha Filho e Andrey Guimarães Duarte[1]

No intróito da presente exposição, cumpre reverenciar a memória de um ilustre cultor do Direito, o Professor e Desembargador aposentado da Justiça do Rio de Janeiro, cujo passamento ocorreu recentemente, vítima de COVID-19, cujo passamento ocorreu recentemente e constituiu perda irreparável de um notável Magistrado, de brilhante trajetória na carreira da Magistratura, que muito honrou, e na Advocacia, despontando como exímio especialista nas áreas de Direito Civil, Empresarial e do Direito Imobiliário. Professor de Direito Civil e Internacional Privado, foi autor de inúmeras obras jurídicas de alto nível, revelando qualidades morais e intelectuais que todos respeitamos.

Na teoria e na prática, deixou lições de grandeza de comportamento profissional, com a marca das personalidades que ficam registradas para sempre em nossa lembrança e na História.

Sob a inspiração do exemplo desse homem de bem, passamos a abordar o tema proposto.

O Direito Notarial, por origem e vocação, é dotado de instrumentalidade, na produção de atos jurídicos, irradiando seus efeitos para assegurar, resguardar, transmitir, modificar ou extinguir direitos. No exercício dessa atividade delegada, o tabelião pautará sua função por diversos princípios, a serem aplicados na rotina de sua nobre tarefa.

 Destacam-se, dentre os princípios, a cautelaridade, para nortear a atuação do notário como assessor jurídico imparcial das partes, com vistas a prevenir litígios; a tecnicidade e a judicialidade, no emprego do judicioso e acertado trabalho a ser prestado; a imparcialidade, que consiste no tratamento de defesa do ato – não de uma determinada parte – e ainda na dispensa de tratamento desigual aos desiguais, na busca da aproximação dos interesses negociados.

A atividade submete-se à publicidade. Embora exercida em caráter privado, incide a delegação do poder público, do que resulta a observância do chamado regime publicístico, conferindo validade formal ao ato jurídico produzido.

Feita essa breve digressão, relacionada à natureza do Direito Notarial, cumpre particularizar a novidade recentemente introduzida, que criou a possibilidade da lavratura das escrituras públicas a distância, na modalidade eletrônica.

Isso foi concebido em plena época de isolamento social, em quadro permeado por reiteradas notícias sombrias, tristes, alarmistas e impactantes sobre as trágicas consequências impostas pelo novo corona vírus, tanto na área médico-hospitalar como nas repercussões de ordem econômica, fragilizando empresas, com redução do mercado de trabalho e um indesejável antagonismo político reinante no País, surgindo forte o sentimento, já exteriorizado por capacitados profissionais de diversas áreas, de que a sociedade será outra, após a quarentena, deflagrada em razão da pandemia, com transformações culturais e comportamentais.

O isolamento social serve para evitar a propagação do vírus e tem o condão de aprofundar reflexões.

Nesse contexto, diante de um cenário que exige mudança de hábitos, em especial para conjugar a continuidade das inúmeras práticas do dia a dia e atos inerentes aos negócios, atos jurídicos, etc., surgiu a necessidade de implantar, no âmbito dos serviços extrajudiciais, notadamente em relação aos tabelionatos de notas, instrumentos tecnológicos, para facilitar a vida dos usuários, assegurando, ao mesmo tempo, segurança jurídica permeada pela fé pública.

Inspirado nesse panorama, com a colaboração das respeitadas entidades de classe dos serviços extrajudiciais, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento n.º 100, publicado no dia 26 de maio de 2020, dispondo sobre a prática de atos notariais eletrônicos, utilizando o sistema e-Notariado, com a criação da Matrícula Notarial Eletrônica – MNE, dentre outras providências.

A rigor, o Provimento n.º 100do CNJ constitui um dos maiores avanços positivos na eliminação de burocracia e na racionalização de trabalho, facilitando a vida dos usuários, sem prejuízo da manutenção da fé pública, circunstância que representa revolucionária vantagem, ao regulamentar o uso de instrumentos tecnológicos.

A eficiência do serviço, que já constituía obrigação legal, sem dúvida será aprimorada com a adoção de ferramentas tecnológicas, pormenorizadamente descritas no aludido Provimento (cf. artigos 2º a 5º), destacando-se assinatura eletrônica notarizada, certificado digital notarizado, assinatura digital, biometria, videoconferência, ato notarial eletrônico, digitalização ou desmaterialização, papelização ou materialização, transmissão eletrônica, dentre outros, além da criação da CENAD: Central Notarial de Autenticação Digital, que consiste em uma ferramenta para os notários autenticarem os documentos digitais com base em seus originais, que podem ser em papel ou natos-digitais.

Para a prática do ato notarial eletrônico, o Provimento estabelece os seguintes requisitos: I – videoconferência notarial para captação do consentimento das partes, sobre os termos do ato jurídico; II – concordância expressada pelas partes com os termos do ato notarial eletrônico; III – assinatura digital pelas partes, exclusivamente através do e-Notariado; IV – assinatura do tabelião de notas com a utilização de certificado digital ICP-Brasil; V – uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura digital.

Para garantir a necessária segurança jurídica, o Provimento prevê que a gravação da videoconferência notarial deva conter, no mínimo: a) a identificação, a demonstração da capacidade e a livre manifestação das partes atestadas pelo tabelião de notas; b) o consentimento das partes e a concordância com a escritura pública; c) o objeto e o preço do negócio pactuado; d) a declaração de data e horário da prática do ato notarial; e) a declaração acerca da indicação do livro, da página e do tabelionato onde será lavrado o ato notarial.

O Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal manterá um registro nacional único dos Certificados Digitais Notarizados e de biometria.

Outra importante inovação consiste na obrigatoriedade, para a lavratura do ato notarial eletrônico, de o notário utilizar a plataforma e-Notariado, através do link www.e-notariado.org.br, com a realização da videoconferência notarial para captação da vontade das partes e coleta das assinaturas digitais. A videoconferência pode ser considerada uma espécie de audiência, envolvendo os interessados na lavratura da escritura, na qual o Tabelião aquilatará a capacidade volitiva e a higidez mental das partes, sendo que, nesse momento, o Tabelião, num autêntico exercício de juízo de valor notarial, concluirá, ou não, pelo prosseguimento da lavratura do ato. Essa videoconferência será gravada, circunstância que certamente fulminará eventual questionamento relacionado ao vício de vontade etc.

Com o objetivo de interligar os notários, permitindo a prática de atos notariais eletrônicos, o intercâmbio de documentos e o tráfego de informações e dados; aprimorar tecnologias e processos para viabilizar o serviço notarial em meio eletrônico; implantar, em âmbito nacional, um sistema padronizado de elaboração de atos notariais eletrônicos, possibilitando a solicitação de atos, certidões e a realização de convênios com interessados e implantar a Matrícula Notarial Eletrônica – MNE, fica instituído o Sistema de Atos Notariais Eletrônicos, e-Notariado, disponibilizado na Internet pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, dotado de infraestrutura tecnológica necessária à atuação notarial eletrônica.

O referido Provimento estipula obrigações aos notários, pessoalmente ou por intermédio do e-Notariado, em especial para o acesso das informações à Administração Pública Direta, em regra, exclusivamente estatísticas e genéricas, vedado o envio e o repasse de dados, salvo disposição legal ou judicial específica. Também atribui ao Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, para implementação e gestão do sistema e-Notariado, o dever de adotar diversas medidas operacionais, como coordenação da implantação, funcionamento dos atos notariais eletrônicos e emissão de certificados eletrônicos, bem como o de estabelecer normas, padrões, critérios e procedimentos de segurança referentes às assinaturas eletrônicas, certificados digitais e emissão de atos notariais eletrônicos e outros aspectos tecnológicos atinentes a seu bom funcionamento.

Um dispositivo de crucial importância diz respeito à assinatura de atos notariais eletrônicos, estabelecendo que é imprescindível a realização de videoconferência notarial, para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico, a concordância com o ato notarial, a utilização da assinatura digital e assinatura do tabelião de notas com o uso do certificado digital, segundo a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP (artigo 9, parágrafo 3º).

O e-Notariado, segundo o Provimento, disponibilizará as seguintes funcionalidades: I – matrícula notarial eletrônica; II – portal de apresentação dos notários; III – fornecimento de certificados digitais notarizados e assinaturas eletrônicas notarizadas; IV – sistemas para realização de videoconferências notariais para gravação do consentimento das partes e da aceitação do ato notarial; V – sistemas de identificação e de validação biométrica; VI – assinador digital e plataforma de gestão de assinaturas; VII – interconexão dos notários; VIII – ferramentas operacionais para os serviços notariais eletrônicos; IX – Central Notarial de Autenticação Digital – CENAD; X – Cadastro Único de Clientes do Notariado – CCN; XI – Cadastro Único de Beneficiários Finais – CBF; XII – Índice Único de Atos Notariais – IU.

Fica ainda instituída a Matrícula Notarial Eletrônica – MNE, que servirá como chave de identificação individualizada, facilitando a unicidade e a rastreabilidade da operação eletrônica praticada. O número da Matrícula Notarial Eletrônica, composta por 24 (vinte e quatro) dígitos e organizada em 6 (seis) campos, de acordo com o artigo 12 e seus parágrafos, integra o ato notarial eletrônico, devendo ser indicado em todas as cópias expedidas.

De acordo com a legislação processual, os atos notariais eletrônicos reputam-se autênticos e detentores de fé pública.

A identificação, o reconhecimento e a qualificação das partes, de forma remota, serão feitos pela apresentação da via original de identidade eletrônica e pelo conjunto de informações a que o tabelião teve acesso, podendo ele utilizar-se, em especial, do sistema de identificação do e-Notariado, de documentos digitalizados, cartões de assinatura abertos por outros notários, bases biométricas públicas ou próprias, bem como, a seu critério, de outros instrumentos de segurança. Está prevista ainda a implantação da funcionalidade eletrônica para o compartilhamento obrigatório de cartões de firmas entre todos os usuários do e-Notariado.

Não obstante o inegável avanço, conjugando a segurança jurídica com a eficiência dessa engenhosa plataforma, a origem da normatização, cristalizada pela edição do Provimento, foi objeto de crítica, sob o fundamento de que a matéria deveria se submeter a um formal processo legislativo, de sorte a legitimar essas impactantes mudanças.

De início, cabe pontuar que a referida crítica conta com uma parcela pequena de oponentes, cujo entendimento, respeitosamente, não convence, sobretudo diante da essência do Direito Notarial. O Provimento 100, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, traduz aceitável forma de regulamentar a prática da lavratura dos atos, na modalidade eletrônica, a distância.

A prática introduzida coexistirá com as lavraturas das escrituras presenciais, no agora chamado modelo tradicional, e serão observados, para efeito de cobrança dos emolumentos, os mesmos valores para ambas as espécies (presenciais e eletrônicas) e também para a lavratura da escritura denominada híbrida, prevista no Provimento.

Todos aqueles que conhecem a rotina dos tabelionatos de notas têm conhecimento que, no passado, os atos notariais eram escriturados à mão, seguindo-se, posteriormente a possibilidade de serem lavrados no rudimentar sistema de gelatina, com encadernação dos Livros. Para alterar esses sistemas, adotando, por exemplo, o sistema de folhas soltas, que constituiu um avanço, não houve edição de lei, mas regramento normativo, autorizando essa transformação, sem margem para identificar necessidade de iniciativa legislativa, especialmente em razão do caráter instrumentário que norteia a essência da atividade notarial.

Não se deve perder de vista ainda que, por ocasião do avento da Lei 11.441/07, que contemplou a realização de inventários, partilhas e divórcios extrajudiciais, foram introduzidos uns cinco artigos de lei, alterando o Código de Processo Civil. Ato contínuo, o CNJ publicou a Resolução nº 35, disciplinando todo o procedimento, com mais de 50 (cinquenta) artigos, com profundas diretrizes normativas, traçando a lavratura desses atos extrajudiciais, no âmbito administrativo, independentemente de complementação legal.

Bem por isso, não se justifica criticar a forma pela qual houve a edição de provimento e não de lei.

A criação e o emprego dos selos de autenticidade, que, no estado de São Paulo remontam ao ano de 1996, para atos de reconhecimento de firma e autenticações de documentos igualmente não contam com previsão de lei. Foram implantados por decisão normativa, sem a necessidade de um processo legislativo.

É certo que a lei, à evidência, representa importante expressão do Direito, mas, no caso em exame, consideramos legítima e oportuna a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, que, acolhendo pleito do Colégio Notarial do Brasil, implantou o ato notarial eletrônico, editando o Provimento 100/2020, que representa um salto de qualidade no aprimoramento do serviço, na concepção de quebra de paradigma que revolucionará positivamente a atividade notarial, permitindo um trabalho mais célere, limpo e seguro.

Ultrapassada a questão relacionada à possibilidade de a regulação supralegal pormenorizar comandos legais, adequando-os a uma nova realidade fática, não prevista pelo legislador, ao permitir a evolução na prestação dos serviços extrajudiciais de maneira equilibrada, interpretando e adaptando regras legais aos novos suportes de comunicação digital, merece atenção a questão relacionada aos requisitos de territorialidade criados pelo Provimento n.º 100/2020.

Nesse ponto, antes de entrar na análise da compatibilidade entre as normas legais e os comandos do novel provimento, cumpre rapidamente tecer algumas linhas acerca do impacto da tecnologia na atividade notarial, sobretudo sob o aspecto da melhor prestação do serviço público ao cidadão.

Nessa seara, colocam-se como parâmetros e objetivos a serem atingidos: a manutenção do alcance dos serviços notariais em decorrência de sua capilaridade, que se estende por todos os municípios do Brasil; a manutenção do equilíbrio econômico financeiro das serventias, como forma de manutenção da qualidade dos serviços prestados em todo o território nacional; a não violação das competências tributárias estaduais, que preveem a autorização do estado federativo para determinar os preços pelos serviços extrajudiciais, adequados à realidade socioeconômica do estado; a manutenção de serviços públicos estaduais dependentes dos repasses de valores pagos pelos atos notariais; o respeito ao direito adquirido dos notários, na medida em que receberam delegação para exercício da função em um determinado município, com inerentes características socioeconômicas; a mitigação dos efeitos monopolizadores da tecnologia; a mitigação da ausência de fronteiras na prestação de serviços notariais digitais; a mitigação dos efeitos deletérios da concorrência desleal, fruto do desequilíbrio da oferta dos serviços notariais ante a demanda descentralizada e sem limites físicos/geográficos; a manutenção de mínima possibilidade de escolha do notário.

Cada um desses parâmetros e objetivos exigiria o desenvolvimento em um artigo próprio. Contudo, tendo em vista a limitação do espaço neste trabalho, impõe-se a menção de cada um deles, para que se tenha ciência de que a questão extrapola seus efeitos jurídicos. Servem, portanto, como norte e restará comprovado que a interpretação que se propõe é a que atende satisfatoriamente a necessidade de evolução equilibrada da atividade notarial.

Passemos às questões de natureza jurídica.    

O Provimento n.º 100/2020 repisou que todo o âmbito de competência para a atuação do notário na lavratura dos atos eletrônicos se ancora de forma inafastável na circunscrição municipal para a qual recebeu a delegação, nos termos do já citado artigo 9º da Lei 8.935/94, conforme se depreende do artigo 6º,abaixo reproduzido: 
 

Art. 6º. A competência para a prática dos atos regulados neste Provimento é absoluta e observará a circunscrição territorial em que o tabelião recebeu sua delegação, nos termos do art. 9º da Lei n. 8.935/1994;
 

Ato contínuo, o texto normativo especificou, nos artigos 19, 20 e 21do Provimento nº 100/2020, quais critérios devem ser utilizados para localizar o tabelião competente à lavratura dos atos notariais por meio do e-Notariado. Interessa ao presente texto, especificamente, o artigo 19, transcrito a seguir:  
 

Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes.
§ 1º Quando houver um ou mais imóveis de diferentes circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas.
§ 2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato.
§ 3º Para os fins deste provimento, entende-se por adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito.
 

Nota-se que o caput do artigo 19 inaugura os critérios de territorialidade para atos notariais eletrônicos, optando pelo mais relevante, ou seja, a regra para escrituras públicas em geral que envolvam bens imóveis e, assim, define dois critérios para localizar qual é o tabelião de notas competente para a lavratura do ato notarial, quais sejam: o local do imóvel ou o domicílio do adquirente. Evidencia-se que esses critérios se ligam ao supra colacionado artigo 6º, ou seja, quando o texto normativo menciona a palavra “circunscrição” está se referindo ao município para o qual o tabelião de notas recebeu a delegação.

O §1º do artigo 19 é pertinente na medida em que esclarece eventual circunstância de existir mais de um imóvel dentro do ato notarial e não é objeto de dúvida.

Entretanto, com a máxima vênia, foi o §2º que trouxe maior dificuldade de interpretação e gerou inúmeros debates na classe dos notários.

Da leitura inversa do §2º do artigo 19 verifica-se que, caso o imóvel não se encontre dentro do mesmo estado federativo do domicílio do adquirente, retornar-se-á à regra do caput de que apenas são competentes para lavrar o ato notarial os tabeliães dos municípios nos quais o imóvel está localizado ou aquele que é domicílio do adquirente. Essa hipótese também não gera maiores questionamentos.  

A celeuma ocorre no caso em que ambos os critérios, domicílio do adquirente e circunscrição do imóvel se liguem ao mesmo estado federativo.

À primeira vista, a leitura do caput do artigo 19 combinado com seu §2º pode permitir a interpretação de que a intenção da egrégia Corregedoria Nacional de Justiça foi criar competência concorrencial entre todos os tabeliães do estado nas hipóteses em que o local de situação do imóvel e o do domicílio do adquirente estão no mesmo estado da federação.

Análise mais detalhada demonstra, contudo, que a interpretação certa é outra.

De pronto, socorre-se de mera interpretação literal dos termos do sobredito §2º para concluir que este se refere ao município para o qual o tabelião de notas recebeu sua delegação. Explica-se:

A egrégia Corregedoria Nacional de Justiça usou a expressão “unidade federativa”, com a qual se designam os componentes da República Federativa do Brasil, sendo certo que a Constituição Federal, em seu artigo 18[2], é expressa ao afirmar que compõem o Estado brasileiro a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios. Então, ao falar em unidade federativa, o parágrafo em comento não afasta a possibilidade de ser essa unidade o município para o qual o tabelião recebeu sua delegação.

Surge, por conseguinte, uma dúvida. Estaria a norma a se referir ao estado ou ao município? E, para dirimir essa questão, aplica-se interpretação lógica para alcançar o exato significado da expressão “unidade federativa”. Para tanto, concatena-se o §2º com seu caput, cujo texto remete a competência territorial do tabelião à circunscrição do imóvel ou domicílio das partes, dois critérios intimamente ligados ao conceito de município.

Circunscrição do imóvel é conceito amplamente utilizado pelo Direito Notarial e Registral para determinar a qual registro de imóveis está vinculado um específico imóvel, sendo que, salvo excepcionais hipóteses, os atos registrais relacionados ao imóvel serão atribuídos ao registro de imóvel do município em que está localizado.

 Domicílio é conceito que possui diverso conteúdo, dependendo da finalidade para o qual está sendo considerado, porém não há como desprezar que o domicílio da pessoa para os atos da vida civil tem como núcleo básico de determinação o lugar onde a pessoa se estabelece e esse lugar, sob o prisma da divisão político/administrativa, está relacionado ao município.

Continua-se com o socorro da interpretação lógica, agora analisando a expressão em confronto com os fortes termos do artigo6º já reproduzido. Propalado artigo repete e reforça o ditame do artigo 9º da Lei 8935/94, tornando expresso o que implícito no artigo de lei, ou seja, o caráter absoluto da competência territorial de atuação do tabelião.

Agora, para que não haja dúvida quanto o alcance da norma, é mister interpretá-la sistematicamente, à luz do arcabouço jurídico pátrio, que delimita de maneira clara o âmbito de atuação do notário. E, para isso não considera apenas critérios relacionados à presença física ou não da pessoa, mas também critérios de natureza tributária, administrativos, correcionais, econômicos, consumeristas e de Direito Notarial e Registral. Um conjunto de normas constitucionais e legais vincula a atuação dos notários ao município.   

Pelo prisma do Direito Notarial, a atividade notarial está diretamente relacionada à relação de confiança entre o usuário e o tabelião, e não há como afastar que, na esmagadora maioria dos casos, essa relação se forma no seio de uma comunidade municipal. Essa característica implícita da atividade notarial, na hipótese de interpretação diversa, estaria ferida de morte, desnaturando a própria atividade, que seria transformada em atividade burocrática.

Bem por isso, o legislador vinculou, como dito anteriormente, a atuação do notário ao município. Vejam o seguinte artigo da Lei 8935/94:

Art.9º. O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação.
 

A mencionada norma legal, aplicada às situações que envolvam os novos meios de comunicação digitais e remotos, impõe a exegese de que o comando não se dirige apenas à atuação do notário em atos cuja presença física é exigida. Há que se dar efetividade ao comando legal em situações inexistentes quando da edição da Lei 8935/94, caso contrário a proibição legal perderia completamente sua eficácia.

Como dito, essa norma legal tem razões para existir, e essas razões não desaparecem no mundo digital, pelo contrário, há a necessidade de reforçá-las no ambiente sem fronteiras desse mundo.

Dito isso, a normativa administrativa do Conselho Nacional de Justiça vem justamente em reforço desse comando legislativo, e qualquer interpretação diversa levaria a sua vulnerabilidade, com efeitos não apenas legais, mas socioeconômicos gravíssimos.

Nesse passo, por louvor à cautela, aponta-se, desde já, que não há qualquer violação do artigo 8º da Lei 8935/94[3], na medida em que se preserva a livre escolha do tabelião dentre aqueles que preencham os requisitos de competência determinados pela norma infralegal, ou seja, dentre aqueles do município da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente, tendo em vista que essa interpretação compatibiliza o comando legal com a nova realidade fática. O advogado do Colégio Notarial do Brasil, Rafael Vitelli Depieri, em esclarecimento institucional sobre o tema, frisa que inexiste conflito de normas em relação ao referido artigo 8º, mas sim há regulamentação infralegal do artigo 9º da lei 8.935/94 pelo Provimento 100/2020, que presta a impedir concorrência predatória e assegurar a atuação de cada delegatário extrajudicial em sua circunscrição, ainda que no âmbito virtual.

Por esse diapasão, afirma-se que o texto normativo em comento, se ampliasse o escopo de atuação para todos os notários de um determinado estado federativo, em razão de o imóvel e o domicílio do adquirente se encontrarem no espaço territorial daquele estado federativo, ultrapassaria a opção feita pelo legislador de preferir que a circunscrição para a atuação dos delegatários de serviços extrajudiciais esteja vinculada ao aspecto político-administrativo do município.

Ultrapassada a análise jurídica, passa-se, em breves linhas, a demonstrar o quanto deletério seria entendimento diverso, pois é possível prever que ocorreria eventualmente concorrência predatória, visto que alguns estados brasileiros possuem grande extensão territorial, o que resulta em peculiaridades locais, proporcionando cenários extremamente distintos entre os municípios que os integram, o que – tal qual ocorreria entre os tabeliães de estados federativos distintos ensejaria uma disputa entre os tabeliães com grande capacidade econômica contra outros em situação menos favorecida.

A possibilidade de os usuários escolherem qualquer tabelião de notas doestado federativo, se o domicílio do adquirente e o imóvel se encontrarem naquele território, privilegiaria a força econômica dos tabeliães de notas mais preparados, pois não se pode olvidar que as grandes serventias possuem mais prestígio e acesso às construtoras, incorporadoras, bancos, corretoras e demais empresas do mercado imobiliário. Logo as comarcas menores poderiam ter seus recursos drenados pelos atos eletrônicos praticados pelos tabelionatos localizados em grandes centros, sucateando o atendimento em localidades menores.

Veja-se ainda que pode não se tratar de prática intencional (das grandes serventias localizadas em capitais) lavrar as escrituras públicas de imóveis situados em cidades menores, mas os maiores protagonistas do mercado imobiliário possuem empreendimentos em diversos municípios e, com a interpretação equivocada da regra posta, acabariam por eleger o tabelião de notas com mais recursos, desmuniciando, assim, as pequenas serventias e desatendendo aos cidadãos locais.

O novo provimento mudaria completamente a razão entre a busca do usuário e a oferta do serviço. No caso das pequenas serventias, o comprador optaria por lavrar o ato em sua cidade e não se deslocaria a uma capital para assinar a escritura pública. Da mesma forma, o tabelião da capital também não poderia se deslocar até a pequena cidade. Agora, com o ato eletrônico, a superioridade econômica dos grandes atores do mercado imobiliário, por exemplo, poderá fazer com que o comprador assine digitalmente o ato eletrônico em um determinado tabelionato, que, via de regra, estará nos grandes centros. A defesa do hipossuficiente milita a favor da interpretação restritiva da competência territorial.

Assim, para coibir não apenas a prática de concorrência predatória, mas também a possibilidade de que o mercado imobiliário se vincule a poucas e grandes serventias das cidades mais populosas do Brasil, é fundamental que se mantenha a restrição de competência para lavratura dos atos notariais vinculada ao município e não ao estado federativo, de forma que essa competência seja definida sempre pelo critério de localização do imóvel ou de domicílio do adquirente, sendo o tabelião de notas competente para lavratura do ato o do município estabelecido por esses critérios.

Conclui-se esse tema específico, para se caminhar à conclusão desta superficial análise do provimento n.º 100 da egrégia Corregedoria Nacional de Justiça, na certeza de que, como dito inicialmente, trata-se da maior evolução da atividade notarial nas últimas décadas. E, como tal, a complexidade da introdução da milenar atividade notarial no ambiente digital justifica absolutamente a existência de eventuais pontos que exijam aperfeiçoamento.

 A inovação tecnológica é constante e exige contínua evolução, não somente da forma como são prestados os serviços públicos, mas também dos modelos de seus negócios e, sobretudo, dos mecanismos de regulação.

Tecnologia sem um modelo de negócio adequado não se sustenta. Tecnologia sem regulação não traz benefícios a todos os atores da sociedade. Do equilíbrio desse tripé é que teremos real evolução, sem os efeitos negativos da disrupção desenfreada. Uma boa semente foi plantada. Vamos regá-la.

Referências

[1]Márcio Martins Bonilha Filho, Desembargador aposentado do TJSP. Atuou por 15 anos na Segunda Vara de Registros Públicos da Capital. Presidiu o 11º Concurso Público de outorga de Delegação das Serventias Extrajudiciais. Advogado no escritório Barcellos Tucunduva, na área de Registros Públicos. Membro do Conselho Consultivo do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.

Andrey Guimarães Duarte é o atual vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo, 4º Tabelião de Notas da Comarca de São Bernardo do Campo e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário– IBRADIM.

[2]Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.   

[3]Art. 8º. É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objetos do ato ou negócio.