O presente estudo trata de forma superficial acerca da herança digital de dados no contexto do ordenamento brasileiro, analisando dois projetos de leis que tratam da temática na atualidade
O regramento sucessório das coisas tangíveis foi estabelecido há muito. Atualmente, passamos por um processo de digitalização de muitas informações sensíveis, seja nas redes de internet, nos serviços de nuvens, nos computadores, diante deste cenário surge o problema acerca do que será deste apanhado de informações, os bens digitais, ante o falecimento da pessoa.
Uma dificuldade preliminar é quais seriam estes bens digitais, o mero conhecimento da existência destas informações, e mesmo com o conhecimento destas informações outra dificuldade é o acesso a tais informações.
Outra dificuldade seria o enquadramento destas informações, quais informações seriam consideradas relevantes? A separação dos tipos de informações, em outras palavras, sua tipificação.
Ora, o histórico do gosto musical, ou a preferência cinematográfica é diferente do passe para acesso a carteira digital, ou ao cofre com todas as senhas para acesso aos serviços. Existem serviços de relevância até mesmo no aspecto financeiro, os investimentos digitais podem conter um montante considerável influindo no aspecto patrimonial do indivíduo. O acesso ao álbum de fotografias, aos vídeos familiares armazenados nos serviços de nuvem, tudo isso tem o aspecto afetivo para os familiares do falecido.
O Projeto de Lei (PL) 2664/21 de autoria do Deputado Federal Carlos Henrique Gaguim (DEM/TO) busca tratar a temática com o seguinte teor:
§ 1° São nulas quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes da pessoa de dispor sobre os próprios dados.
§ 2° Salvo manifestação expressa em contrário, os herdeiros têm o direito de:
I – acessar os dados do falecido a fim de organizar e liquidar os bens da herança, identificando informações que sejam úteis para o inventário e a partilha do patrimônio;
II -obter os dados relacionados às memórias da família, tais como fotos, vídeos e áudios;
III – eliminar, retificar ou comunicar os dados;
IV – tratar os dados na medida necessária para cumprir obrigações pendentes com terceiros bem como para exercer os direitos autorais e industriais que lhe tenham sido transmitidos;
§ 3°As disposições do presente artigo aplicam-se, no que couber, aos declarados incapazes.
Já o PL 1144/21 de autoria da Deputada Federal Renata Abreu do PODE/SP, pretende alterações no Código Civil e no Marco Civil da Internet, abordando tal temática, em termos, respectivamente:
Código Civil
Art. 12. (…)
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge ou o companheiro sobrevivente, parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, ou qualquer pessoa com legítimo interesse.
Art. 20. (…)
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção as pessoas indicadas no parágrafo único do art. 12.
Art. 1.791-A. Integram a herança os conteúdos e dados pessoais inseridos em aplicação da Internet de natureza econômica.
§ 1º Além de dados financeiros, os conteúdos e dados de que trata o caput abrangem, salvo manifestação do autor da herança em sentido contrário, perfis de redes sociais utilizados para fins econômicos, como os de divulgação de atividade científica, literária, artística ou empresária, desde que a transmissão seja compatível com os termos do contrato.
§ 2º Os dados pessoais constantes de contas públicas em redes sociais observarão o disposto em lei especial e no Capítulo II do Título I do Livro I da Parte Geral.
§ 3º Não se transmite aos herdeiros o conteúdo de mensagens privadas constantes de quaisquer espécies de aplicações de Internet, exceto se utilizadas com finalidade exclusivamente econômica.
Marco Civil da Internet
Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as contas públicas de usuários brasileiros mortos, mediante comprovação do óbito, exceto se:
I – houver previsão contratual em sentido contrário e manifestação do titular dos dados pela sua manutenção após a morte;
II – na hipótese do § 1º do art. 1.791-A da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
§ 1º O encarregado do gerenciamento de contas não poderá alterar o conteúdo de escritos, imagens e outras publicações ou ações do titular dos dados, tampouco terá acesso ao conteúdo de mensagens privadas trocadas com outros usuários, ressalvado o disposto no § 3º do art. 1.791-A da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
§ 2º Os legitimados indicados no parágrafo único do art. 12 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), poderão pleitear a exclusão da conta, em caso de ameaça ou lesão aos direitos de personalidade do titular dos dados.
§ 3º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano a partir da data do óbito, ressalvado requerimento em sentido contrário, na forma do art. 22.
Ambos projetos trazem pontos importantes acerca da temática.
O PL 2664/21 trata expressamente acerca do tratamento de dados pos mortem, veda a restrição dos poderes da pessoa de dispor dos próprios dados, e trata ainda acerca do direito dos herdeiros obterem acesso a esses dados, salvo manifestação expressa em contrário.
Ao passo que o PL 1144/21 pretende a alteração em duas legislações, o Código Civil e o Marco Civil da Internet. Em termos gerais, tal projeto específica de início que os conteúdos e dados pessoais de natureza econômica compõem a herança.
Acresce ainda, que além dos dados financeiros a herança abrange os perfis de redes sociais, dados de divulgação de atividade científica, literária, artística ou empresária, desde que utilizados para estes fins econômicos e que não haja manifestação do autor em contrário, bem como que tal transmissão esteja compatível com os termos do contrato.
Este é um ponto relevante, prática diuturna dos serviços de internet trata justamente da mudança dos termos da utilização dos serviços. Tais mudanças, via de regra, são estabelecidas sem levar em consideração a opinião dos usuários.
Portanto, caso haja o estabelecimento desta restrição de forma unilateral por parte do serviço, tal disposição poderia obstar diretamente a garantia da herança, uma salvaguarda constitucional estampada no inciso XXX, do artigo 5°, dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Além do mais, tal disposição deixaria de lado a própria vontade do falecido, pois caso não haja manifestação em contrário interpretasse que o silêncio pressupõe a concordância do acesso aos dados pelos herdeiros. Ponto controverso.
Ademais, importante salvaguarda no que concerne o acesso às conversas de cunho sigiloso, uma proteção ao direito fundamental individual à privacidade, a exceção quando esses dados tratarem unicamente de fins econômicos.
Em face ao Marco Civil da Internet as alterações estão no sentido de impor aos provedores de internet o dever de exclusão da conta pública quando o usuário falecer, ante a devida comprovação de óbito. A não ser na hipótese de previsão contratual no sentido contrário e a manifestação de concordância expressa do usuário.
Dispondo ainda que o encarregado do gerenciamento destes dados não poderá promover alterações de conteúdo, sequer o acesso às mensagens de cunho sigiloso.
Trata ainda da hipótese de pleito dos herdeiros da exclusão dos dados em caso de ameaça ou lesão aos direitos da personalidade do titular dos dados.
Por fim, estabelece o dever do provedor da manutenção de dados em registros no prazo de um ano a iniciar-se da data do óbito, a exceção em manifestação de requerimento em sentido contrário.
Ambos os projetos têm pontos benéficos e controversos, caminham no sentido correto, devendo haver uma discussão premente por parte da sociedade sobre a temática, ao lado da comunidade jurídica, haja visto, o assunto já compor a realidade da sociedade brasileira, devendo haver uma regulamentação acerca do tema em vistas ao bem comum.