As Comissões de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e de Meio Ambiente (CMA) fizeram conjuntamente nesta terça-feira (5) a segunda audiência pública para embasar a análise de projetos de lei que unificam a legislação fundiária para todo o país (PL 2.633/2020PL 510/2021).  O debate focou duas recorrentes preocupações: como atender com celeridade os pequenos produtores rurais e reduzir a expansão do desmatamento.
 
As duas comissões promovem uma série de audiências públicas para debater projetos de lei sobre regularização fundiária e normas gerais para o licenciamento ambiental.
 
Originário na Câmara, o PL 2.633/2020 permite aumentar o tamanho (de quatro para seis módulos fiscais) de terras da União passíveis de regularização sem vistoria prévia, a partir da análise de documentos e de declaração do ocupante de que cumpre a legislação ambiental.
 
Já o PL 510/2021, do senador Irajá (PSD/TO), modifica o marco temporal para a comprovação da ocupação, que deverá ser feita pelo interessado ao demonstrar “o exercício de ocupação e de exploração direta, mansa e pacífica, por si ou por seus antecessores, anteriores a 25 de maio de 2012”. Atualmente, para regularizar a terra, o ocupante tem de comprovar que está na área (com até 2,5 mil hectares) desde antes de 22 de julho de 2008.
 
Números do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontam que o público total de regularização fundiária e agrária é de 116 mil famílias (em 25 milhões de hectares) na Amazônia Legal, 185 mil (em 1milhão de hectares) em glebas fora da Amazônia e 688 mil famílias (em 44 milhões de hectares) em assentamentos.
 
Presidente da CRA, o senador Acir Gurgacz (PDT/RO) questionou a possibilidade de se estabelecer um cronograma de regularização fundiária, começando com os de quatro módulos fiscais.
 
— A nossa preocupação é com a agricultura familiar, com os que estão na terra há 30, 40 anos. Não é só uma questão de economia, mas de reconhecimento a essas famílias que, no caso de Rondônia, atenderam o chamado do governo federal para ocupação do estado. A regularização vai nos dar também uma tranquilidade com relação ao meio ambiente, pois quando colocamos o CPF de uma pessoa naquela terra há mais cuidado.
 
Para o presidente da CMA, Jaques Wagner (PT/BA), se houvesse mais celeridade, a Lei 11.952, de 2009, permitiria a regularização de pelo menos 88% dos títulos (com até quatro módulos fiscais). No estado de Rondônia, terras com até quatro módulos representam 99% dos títulos a espera de regularização.
 
Relator das matérias, o senador Calos Fávaro (PSD/MT) disse que chegou a Mato Grosso para viver em assentamento e conhece bem a história de vida desses produtores rurais. Para o parlamentar, se a legislação atual fosse suficiente, não haveria centenas de milhares de famílias aguardando a regularização
 
— Não vamos favorecer grileiros, latifundiários, vamos ressalvar pequenos e médios produtores, em áreas de até 2,5 mil hectares. Não vamos, em hipótese alguma, precarizar o meio ambiente, porque é possível produzir com sustentabilidade. Não pretendemos alterar a linha de corte, ou seja, o marco temporal, vou manter o ano de 2008.
 
Desmonte
 
Bastante enfático, o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, colocou-se contra a aprovação e o prosseguimento dos atuais projetos de lei de regularização fundiária.
 
— Nós da CNBB somos contra esses projetos de lei e solicitamos que as duas comissões pensem na responsabilidade que têm ao aprovar esses projetos: o mal que isso vai fazer à população brasileira e ao meio ambiente. Os que realmente precisam e querem trabalhar na terra ficam descobertos.
 
Segundo Dom José, a crise ambiental denunciada em 2019 acentuou-se durante a pandemia e revelou os limites de um sistema rapidamente destruído e que tende a perecer se algo não for feito.
 
— Na Amazônia, acompanhamos com apreensão o desmatamento, que aumentou 51% nos últimos 11 meses, com mais de 8 mil quilômetros quadrados desmatados.
 
Para o presidente da CPT, os projetos em análise passam um recado de que vale a pena desmatar, tomar a terra pública, porque na sequência haverá legislação para permitir a regularização.
 
Destinação
 
Áreas não destinadas são justamente onde o desmatamento mais ocorre, sendo necessário, por isso, prestigiar e garantir a ordenação territorial. A afirmação é do procurador da República no Rio de Janeiro e coordenador do grupo de trabalho Reforma agraria e conflitos fundiários, da Procuradoria Federal da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Júlio José Araújo Júnior.
 
— Com a governança fraca ficamos num cenário de fragilidade. O principal desafio está em trabalhar essa governança e fiscalização, para garantir a efetivação das áreas, sob pena de estimularmos a invasão de terras públicas e males ambientais.
 
Para o procurador, há a necessidade de debate da ocupação de até quatro módulos fiscais, mas não se pode chancelar processos para terras maiores.
 
— Essa lógica das sucessões de normas não traz segurança jurídica. A dispensa de vistoria, com estímulo ao sensoriamento remoto, também gera impactos, ainda mais pensando nesta lógica de até seis módulos fiscais, que ao nosso entender é um excesso.
 
O procurador também condenou alterações no marco temporal e apontou perigos ao direito originário de terra de povos indígenas e das comunidades tradicionais.
 
— Se não se tem esses territórios totalmente demarcados, há uma grande chance de eles ficarem no limbo.
 
Títulos
 
Na contramão, o assessor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), da José Henrique Bernardes Pereira, pontuou que apesar de 88% dos títulos que aguardam regularização representarem até quatro módulos fiscais, eles abarcariam apenas 39% das áreas a serem documentadas.
 
Assim, 61% das áreas — que teriam mais de quatro módulos — justificariam a necessidade de ampliação do módulos passíveis de regularização, na opinião do representante da CNA.
 
Pereira enfatizou que as áreas destinadas a preservação nativa dentro das propriedades rurais passaram de um percentual de 25% para 26,7%, conforme números da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
 
— Regularizar não é derrubada de florestas, não é terra de grilagem. A titulação promove a proteção ambiental e a preservação da vegetação nativa, nos moldes do novo Código Florestal.
 
Para o assessor técnico da CNA, os projetos deverão promover a utilização de tecnologias (sensoriamento remoto), favorecer a aplicação da legislação ambiental aos ocupantes, manter a vistoria presencial nos casos de indícios de fracionamento fraudulento e infração ambiental na área, proporcionar maior segurança jurídica e transparência ao processo de regularização fundiária, aumentar a governança de terras e ordenamento territorial no Brasil.
 
Na mesma linha, a consultora jurídica da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Julia Bittencourt Afflalo, também defendeu a não vinculação dos projetos a um retrocesso ambiental.  
 
— O ocupante — que não se confunde com grileiro — tem de cumprir vários requisitos, como inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), comprovar que não está desmatando. Esses ocupantes muitas vezes se veem sem título, o que dificulta o acesso ao crédito, e impossibilita financiar a produção.
 
Proposições legislativas