Humanidade, O gene egoísta, Chasing the scream e O andar do bêbado são livros maravilhosos que mergulham em assuntos completamente distintos, mas que possuem uma curiosa interseção: todos eles, recheados de exemplos históricos, de passagens cotidianas e de experimentos famosos desconstruídos, revelam, com socos acachapantes, como somos presas fáceis do nosso senso comum, que nos faz errar – e muito – na avaliação de fatos e fenômenos naturais, humanos e jurídicos. Não é mera coincidência que uma incansável e inconformada coluna assinada por Lenio Luiz Streck se chame Senso Incomum.
Ao longo das últimas décadas sedimentou-se como concreto armado o entendimento, aparentemente lógico, de que o condomínio edilício, em termos jurídicos, somente surge após a conclusão da edificação ou do conjunto de edificações da incorporação imobiliária.
De acordo com as Normas Extrajudiciais da CGJ/SP, a instituição de condomínio será registrada mediante “a apresentação do respectivo instrumento … acompanhado… do projeto aprovado e do “habite-se”, ou do termo de verificação de obras em condomínio de lotes” (item 219). Na mesma toada de São Paulo, o Código de Normas da CGJ/BA estabelece que “a instituição de condomínio… será feita a requerimento do incorporador, instruído com… a carta de habitação fornecida pela Prefeitura Municipal” (art. 1.398). Idem para a Consolidação Normativa Notarial e Registral da CGJ/RS, que no art. 780 proíbe “abrir matrículas enquanto não averbada a edificação e registrada a instituição de condomínio”.
As normas das corregedorias estaduais em matéria extrajudicial são fruto do entendimento de magistrados atuantes na seara notarial e registral, e por serem emanadas do mesmo órgão que fiscaliza e pune, elas exercem um comando poderoso sobre os cartórios, a ponto de informalmente se dizer que na área prevalece a pirâmide de Kelsen, só que invertida, com as normas no topo.
Se, então, o condomínio edilício, segundo tal compreensão, somente nasce após o habite-se, as unidades imobiliárias negociadas pelos incorporadores no estande de vendas seriam, consequentemente, bens imóveis futuros. Pois sem condomínio edilício instituído não pode haver unidades imobiliárias juridicamente existentes, nem suas respectivas matrículas. O art. 483 do Código Civil seria o seu fundamento legal, ao permitir que a compra e venda tenha por objeto “coisa atual ou futura”.
Mas espere um momento! Como se sabe, em matéria registral imobiliária, nenhum oficial pode registrar a venda de um terreno ainda não desmembrado, nem a venda de um lote em loteamento a registrar, nem a alienação de uma unidade autônoma de condomínio edilício ainda não instituído. Pois nesses três casos, a propriedade ainda não foi fracionada, e o bem resultante dessa divisão (área desmembrada, lote, unidade autônoma) não existe. Em outras palavras, o art. 483 se aplica aos bens imóveis, só que estritamente na seara obrigacional, sem efeitos reais. A transmissão de um imóvel futuro não é registrável.
Para escapar desse beco, fez-se um puxadinho hermenêutico, a fim de viabilizar a anotação da venda no registro imobiliário: “Recomenda-se a elaboração de uma ficha auxiliar de controle de disponibilidade, na qual constarão, em ordem numérica e verticalmente, as unidades autônomas” (Normas Extrajudiciais da CGJ/SP, item 220). O resultado prático pode ser exemplificado na matrícula abaixo, em que se vê a sequência incorporação (R.03), ficha (Av.40), construção (Av.43) e instituição (R-45):
É irresistível reparar, no ato Av.43, que o condomínio foi instituído por instrumento particular. Ora, em que lugar do texto o art. 1.332 do Código Civil excepciona o art. 108 da mesma lei, que exige escritura pública para atos que visem a criar direito real sobre imóvel de valor superior a 30 salários mínimos?
Eis que a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil (RFB) 1.863/2018, que regula a obrigatoriedade de inscrição no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (CNPJ), surge como um oásis no meio do deserto. No Anexo VIII, ao cuidar do condomínio edilício, a norma permite que o CNPJ seja aberto mediante apresentação da convenção de condomínio registrada “ou certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio”. Essa mesma possibilidade consta das instruções normativas que a antecederam (IN RFB 1.634/16 e anteriores).
Contudo, jogou-se areia na fonte d'água milagrosa. Em vez de se admitir o condomínio edilício pré-habite-se, defende-se a ideia do curioso “condomínio da construção”, cuja expressão consta do art. 31-F, §1º, inserido na lei 4.591/64 em 2004, pela lei 10.931/04. Note-se, porém, que essa é uma previsão específica para a hipótese de insolvência do incorporador, a fim de viabilizar o prosseguimento da obra paralisada, não sendo capaz de criar um tipo condominial além daqueles já previstos no Código Civil: condomínios necessário, voluntário, edilício e em multipropriedade.
E nem se diga que a RFB teria reconhecido a figura do “condomínio da construção” na IN 2021/2021, pois o art. 7º, XI, ao conceituar a “construção de edificação em condomínio”, a define como “a construção em imóvel objeto de incorporação imobiliária de que trata a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, sob responsabilidade dos adquirentes das unidades” tão somente para atribuir ao “condômino da construção em condomínio” a responsabilidade pela regularização da obra (art. 8º, IV).
Apesar disso, a moda emplacou a ponto de alguns empreendimentos utilizarem essa expressão na própria denominação do condomínio. Perceba, contudo, caro leitor, que no campo respectivo do cartão CNPJ a Receita Federal do Brasil, corretamente, classifica tal figura jurídica como condomínio edilício:
Nesse contexto em que durante a incorporação não existiria condomínio edilício, quando muito, um “condomínio da construção”, até mesmo a definição dos objetos dos contratos de alienação de unidades na planta passou a ser um problema. Há quem diga alienar fração ideal “e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas”, e há quem venda a unidade imobiliária “a ser construída”, ou “em construção”, e sua respectiva fração ideal, como consta da matrícula exibida anteriormente.
É como se assistíssemos a um concerto de instrumentos improvisados tocando notas desarranjadas. Não se trata de mera discussão acadêmica. Este tema, tal como hoje majoritariamente concebido, gera consequências sérias, distorcendo o sistema e dificultando o registro de empreendimentos imobiliários que pretendam adotar certas estruturas que dependam do reconhecimento do condomínio na fase anterior ao habite-se. Todos perdem.
Como nadar contra essa violenta corrente da intuição? Seria muita presunção esperar que este artigo seja capaz de convencer alguém a mudar uma visão tão arraigada, quase pacífica e sedimentada em normas extrajudiciais país afora. Há, ainda assim, luz no fim do túnel.
A Consolidação Normativa da CGJ/RJ prevê, de modo alvissareiro, que “a matrícula de unidade autônoma condominial em construção ou a construir, decorrente de incorporação imobiliária, será aberta quando do primeiro registro a ela referente”. Isto é, no Estado do Rio de Janeiro é possível criar matrícula de unidade autônoma durante a fase de construção, como demonstra o exemplo abaixo:
O Rio de Janeiro não está sozinho. O Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registro da CGJ/PA, prevê com todas as letras que “a instituição do condomínio prescinde da averbação da construção e deverá ser registrada até a data da consolidação da incorporação imobiliária, que se dará em caso de venda ou promessa de venda de ao menos uma das unidades autônomas, contratação da construção ou decorrência de prazo no registro do empreendimento sem que a incorporação tenha sido denunciada pelo incorporador” (art. 1.072).
Aliás, isso faz – ou melhor, deveria fazer – todo o sentido, porque a regra, disposta em lei federal – hierarquicamente superior a uma norma administrativa, segundo a clássica lição de Kelsen -, não exige a prévia conclusão da obra para a instituição do condomínio edilício. Assim era com o art. 7º da lei 4.591/64, e assim permanece com seu sucessor, o art. 1.332 do Código Civil, que elenca três requisitos para o ato de instituição, nenhum deles referentes à construção.
O art. 44 da lei 4.591/64, ao contrário do que uma interpretação literal poderia levar equivocadamente a crer, não trata da instituição do condomínio. O que se extrai desse artigo, em uma interpretação coerente com o sistema jurídico, é que a averbação do habite-se encerra a incorporação imobiliária e altera a qualificação registral das unidades autônomas. Apenas isso. O bem imóvel existente, presente e “a ser construído”, transforma-se em bem imóvel existente, presente e construído. Da mesma forma que a pessoa jurídica não precisa de corpo físico, e sua “existência legal” começa “com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro” (CC, art. 45), o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário (CC, art. 1.332).
Durante muitos anos a possibilidade de uma incorporação imobiliária de condomínio de lotes foi controversa. O principal ingrediente nessa discussão era justamente o fato de as casas não estarem ainda construídas sobre os terrenos. Havia Estados como São Paulo que o proibiam, enquanto em outros lugares sua adoção era plenamente admitida. A insegurança jurídica imperava, e foi necessário o advento do art. 1.358-A do Código Civil, trazido pela lei 13.465/17, para o reconhecimento nacional desse filho bastardo.
Sim, podemos avançar para admitir de uma vez por todas a instituição do condomínio edilício pelo incorporador na fase anterior à construção. Sem inventar a roda. Na doutrina, encontramos ninguém menos que Melhim Chalhub, ombreado com José de Oliveira Ascensão, admitindo esse caminho, ao escrever que o condomínio “pode incidir sobre o terreno sem construção, como expressamente prevê o art. 8º, ao referir-se ao condomínio sobre 'terreno onde não houver edificação', deixando claro que a instituição do condomínio é compatível com os casos em que a construção ainda está por fazer-se”.
Insisto neste ponto: é um fato incontroverso que as acessões a serem executadas no empreendimento são inequivocamente futuras. Porém, enquanto não realizadas pelo incorporador, estas não integram o bem principal, que é a unidade autônoma e sua respectiva fração ideal. No fundo, a discussão sobre o objeto da alienação (fração ideal e acessões que corresponderão às futuras unidades versus unidade a construir e sua respectiva fração ideal) é essencialmente semântica. Entretanto, tal semântica reforça precisamente o senso comum combatido neste artigo, e por isso, se ela pode ser evitada, é melhor que o seja.
Até mesmo o embate sobre o condomínio unipessoal já parece ter ficado para trás: na propriedade horizontal o que se exige é a pluralidade de unidades autônomas, e não de proprietários. O Enunciado 504 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na 5ª Jornada de Direito Civil, dispõe que “a escritura declaratória de instituição e convenção firmada pelo titular único de edificação composta por unidades autônomas é título hábil para registro da propriedade horizontal no competente registro de imóveis, nos termos dos arts. 1.332 a 1.334 do Código Civil”.
Isto significa que, se superarmos o atual senso comum, incorporadores em todo o país poderão lançar os empreendimentos com os condomínios edilícios já instituídos, e poderão aprovar e registrar as convenções antes ou durante a obra. Isso dispensaria as fichas, permitiria a abertura de matrículas, tornaria inócua a discussão sobre a existência do “condomínio da construção”, facilitaria a inscrição no CNPJ, simplificaria a abertura de contas bancárias e tornaria o sistema muito mais coerente, simples e eficiente, com benefícios para todos os interessados.
Se a incorporação não chegar ao fim, o que fazer com as matrículas de unidades a construir já abertas? Bem, nesse caso será preciso, após solução para os direitos já registrados, promover o cancelamento de tais matrículas, retornando-se ao status quo ante. Frise-se: não é preciso olhar para o futuro, já temos um laboratório a céu aberto funcionando há décadas, pois como já referido e exibido por imagem, no Estado do Rio de Janeiro sempre foi assim, com matrículas antes do habite-se, e o mecanismo nunca travou por conta disso.
No Pará, como também visto, aguarda-se o prazo da denúncia da incorporação para somente então autorizar o registro da instituição do condomínio. O espírito da regra, entretanto, é o eficiência administrativa, evitando-se a abertura de matrículas cujo cancelamento pode ocorrer com maior probabilidade, o que chega a ser louvável.
Enfim, por qualquer ângulo que se analise a questão, não consigo chegar a outra conclusão senão a de que a proibição administrativa, via norma extrajudicial, de registro da instituição do condomínio edilício antes da construção do empreendimento, é medida que precisa ser revista o quanto antes.
O que se, propõe, portanto, é que as normas extrajudiciais estaduais sejam adequadas para: (i) autorizar o registro da instituição do condomínio edilício na sequência do registro da incorporação imobiliária, tão logo encerrado o prazo de carência previsto no art. 34 da lei 4.591/64, independentemente de habite-se; e (ii) determinar, em decorrência do art. 108 do Código Civil, que o ato de instituição seja celebrado por escritura pública. Se não podemos mudar a direção do vento, que façamos um pequeno ajuste de velas para navegarmos na direção correta.
E o melhor de tudo: como a solução já decorre do próprio ordenamento, nem sequer necessitamos de lei nova. O Conselho Nacional de Justiça, que hoje tem a competência para tanto, pode editar um ato que permita a cada Estado ajustar sua própria norma, homogeneizando e simplificando procedimentos em todo o Brasil, e com isso promovendo o aumento da segurança jurídica e a melhora do ambiente de negócios, abrindo as portas para novas estruturas jurídicas nas incorporações imobiliárias. Ganharão o mercado e o Direito Imobiliário. Quem sabe um dia.