Maior aceitação dos parentes e exigência de documento para ter filho estão entre motivos
Dez anos após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer uniões homoafetivas como entidades familiares, a quantidade de casais do mesmo gênero cresceu 60% e também mudou de perfil. Agora, eles juntam as escovas de dentes cada vez mais jovens. Dados do Colégio Notarial do Brasil (CNB), que reúne os cartórios do País, obtidos pelo Estadão mostram que relacionamentos entre pessoas de 20 a 34 anos já representam dois terços das uniões estáveis desse tipo – há uma década, essa taxa era de 37,6%.
A redução da demanda represada nos anos anteriores à conquista jurídica contribui para a nova tendência. “Muitos casais já viviam juntos e buscaram regularizar isso quando a união foi reconhecida pelo STF, em 2011”, diz o advogado Saulo Amorim, diretor da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas.
Na época, os ministros decidiram que a união estável entre pessoas do mesmo gênero é uma entidade familiar. Isso já era feito por parte dos cartórios e tribunais, mas não havia entendimento unificado pelo País. Além de fixar esse parâmetro jurídico, na prática, isso facilitou a extensão de direitos a casais homoafetivos, como a inclusão em plano de saúde, herança e até adoção ou reconhecimento de pais homoafetivos na certidão de nascimento.
A maior aceitação das famílias aos LGBTI+, embora o preconceito ainda seja um problema grave, também está por trás do rejuvenescimento dos noivos. Quando a empresária Leila Martinelli, de 31 anos, se casou com Karina, de 34, a reação dos parentes foi grata surpresa. “No dia do casamento, foram todos, as famílias de ambas”, relata Leila, sobre a cerimônia em outubro de 2018.
“Meu pai foi um pouco contra, por ser evangélico, mas falei que ficaria chateada se ele não fosse. Hoje, ele é outra pessoa porque vê as netas e é muito apaixonado por elas”, relata. As duas tiveram filhas por meio da fertilização in vitro. “Na época que descobriram (a orientação sexual), foi um evento. Fizeram reunião, foram conversar comigo, saber se era isso que eu queria pra minha vida. Como se fosse uma escolha da qual eu não pudesse voltar atrás…”, lembra a empresária. “Mas isso não existe. Ou você é ou não é.”
A produtora de eventos Laura Melaragno, de 34 anos, também previa resistência em casa, mas o que viu foi acolhimento. “Confesso que esperava (objeção) da minha avó, que tinha mais de 90 anos quando a gente se casou. Mas você descobre que a vida é muito curta”, afirma ela, que oficializou a união com Teresa Sanches, de 38, em dezembro de 2018.
Mais fatores
O ano de 2018 ficou marcado pelas trocas de aliança entre casais homoafetivos – alta de 61% entre 2017 e o ano seguinte. A eleição de Jair Bolsonaro fez explodir a corrida a cartórios, diante do temor de possíveis retrocessos para LGBTI+. O presidente faz defesas da família tradicional e, em 2019, criticou a decisão do STF que equiparou homofobia a racismo. Na prática, porém, não houve no governo redução de direitos na união civil homoafetiva.
“A gente já sabia que ia casar, tinha conversado umas vezes sobre isso. Mas quando Bolsonaro ganhou, pensamos nas muitas coisas que poderiam piorar e preocupou que ele pudesse revogar nosso direito”, diz Laura, que antecipou a cerimônia em nove meses.
Amorim, da Associação de Famílias Homotransafetivas, também vê impacto da pandemia nas uniões recentes. “Muitos relacionamentos se destruíram, outros se formaram. O mesmo movimento que a covid causou de reflexão, pode ter criado a certeza de que dava certo”, diz, sobre a demanda por formalizar relações.
Foi o caso do publicitário Felipe do Vale, de 29 anos, e do designer Danton Gravina, de 31, que resolveram viver sob o mesmo teto na pandemia, como forma de oficializar a união e também diminuir a distância imposta pelo isolamento. Eles se conheceram há dois anos em uma festa e, 20 dias depois, já estavam namorando. O casamento veio em março último, quando começaram a morar juntos com Madonna, a cachorrinha de estimação.
“Optei por ter um direito igual ao dos heterossexuais”, conta Vale. Gravina, que nunca imaginou poder se casar, completa: “Ele não é meu companheiro. Queríamos ser marido e marido, não maquiar as coisas ou ser um paliativo. Não é diferente dos outros casais”.
O caminho é similar ao do programador francês Karl Rachid, de 35 anos, que conheceu o designer mineiro Nathan Ferreira, de 25, em um aplicativo de relacionamentos. Em três meses, virou namoro. No início do ano seguinte, foram morar juntos pela praticidade, economia e pelo próprio status da relação. “Vimos que estava dando certo e, em vez de procurar algo separados, buscamos juntos”, diz Ferreira.
A oficialização foi como união estável em junho, em meio à pandemia, para uma série de praticidades, como plano de saúde e alugar apartamento. “A gente já convivia muito tempo juntos e sempre fizemos home office, então não mudou muito. Não temos família aqui no Rio, somos um a família do outro”, descreve.
Papelada
Outro marco nessa trajetória foi uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2013, que obriga os cartórios de todo o País a celebrar o casamento civil e converter a união estável homoafetiva em casamento. Até hoje, porém, não há lei que reconheça casamentos LGBTI+.
Segundo dados do IBGE, casais homoafetivos acima dos 35 anos eram 51,5% dos registros em 2013. No ano passado, a maioria (59,7%) já era entre pessoas abaixo dos 34 anos. “Pessoas de 20 e poucos anos geralmente não têm o mesmo patrimônio, são mais ansiosas e refletem menos, o que também se reflete no rito mais rápido”, aponta Saulo Amorim.
Enquanto a união estável oferece menos burocracia, o casamento formal dá segurança extra numa separação. “Normalmente digo aos clientes para casarem porque é mais fácil no 'depois'”, diz Claudia Stein, doutora em Direito de Família e Sucessões pela Universidade de São Paulo (USP).
“Com a união civil, o casal pode adotar, um deles pode ter guarda unilateral, direito à partilha de patrimônio, a usar o sobrenome do outro, a receber pensão”, enumera a advogada.
“A diferença da união estável é ter de provar em juízo. Com uma discussão judicial após a separação, o juiz não tem certeza por quanto tempo durou a união estável e é preciso produzir 'prova de existência' desse período para outorgar a decisão”, afirma Claudia. No casamento, a duração do vínculo pode ser provada só com certidão atualizada, que confirma judicialmente sua vigência até a separação.
Agilidade
Um dos pontos que pesam a favor da união estável é a praticidade. Em 2019, então com 30 anos, a psicóloga Paula Frison correu para se casar com Camila Provenzano, hoje com 41, ao descobrir que precisava de certidão comprovando a relação para, juntas, fazerem a fertilização in vitro.
“No mesmo dia da consulta, tínhamos a possibilidade de entrar no plano de saúde dela sem carência, mas só tínhamos aquele dia. Saímos da clínica e fomos correndo para o cartório, já que o casamento precisaria de testemunha e dias para a documentação”, lembra Paula, hoje mãe de Benjamin, já com quase dois anos.
“Ainda temos o plano de fazer o casamento. Queremos celebrar entre a gente, em alguma praia e com nossos filhos, provavelmente daqui a alguns anos. Mas só para comemorar mesmo e não porque não nos sentimos casadas. Nós somos”, acrescenta a psicóloga.
Para Daniel Paes de Almeida, presidente do Colégio Notarial do Brasil, a praticidade atrai os jovens. “Pelos números e o dia a dia, percebemos que a procura pela união estável está cada vez maior e houve aumento nítido. O acesso à informação tem ficado cada vez mais fácil e é um documento menos burocrático, de modo simples, rápido e eficiente.”
Apesar disso, o número de casamentos ainda supera o de uniões estáveis LGBTI+ no Brasil. Em 2020, foram cerca de 6,4 mil no modelo “tradicional”, ante 2,1 mil no outro.