Neste artigo, cuidaremos de duas questões de Direito Comparado relevantes.

 

A primeira é apresentar uma das principais instâncias da Espanha que decidem questões de direito privado no âmbito dos cartórios extrajudiciais.

 

A segunda é comparar o direito espanhol com o brasileiro diante de uma hipoteca destinada a garantir um valor máximo (envolvendo, por consequência, condições suspensivas).

 

Precedentes da DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado – DGRN)

 

Na Espanha, diversas questões de direito civil interessantíssimas frequentam os serviços notariais e registrais e são resolvidas pela Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública.

 

Esse órgão, entre 1909 e 2020, era chamado de Dirección General de los Registros y del Notariado – DGRN1. Tendo em vista que a nomenclatura antiga (DGRN) é ainda a mais famosa e considerando que os principais julgados são anteriores à mudança de nomenclatura, manteremos a utilização do nome antigo.

 

Trata-se de um órgão do Ministério da Justiça da Espanha. Sua atribuição é, essencialmente, gerir assuntos relacionados ao direito notarial e registral. Sua origem histórica foi a Lei Hipotecária de 1861. Uma de suas principais atuações é julgar os procedimentos provocados por recusas dos registradores a registrar títulos (procedimentos que, no Brasil, se assemelham ao procedimento de dúvida previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos brasileira2).

 

Comparando com o Brasil, a DGRN espanhola exerce um papel próximo das Corregedoria-Gerais de Justiça dos Tribunais estaduais ou do Conselho Nacional de Justiça.

 

Historicamente, a DGRN sempre foi muito prestigiada na comunidade jurídica espanhola pela excelência técnica dos seus julgados e pela notável qualificação técnica dos seus julgadores. Há, porém, críticas ao prestígio atual da DGRN, como dá notícia a matéria intitulada Auge y caída de La Dirección General de los Registros y del Notariado, publicado na Revista Notario del Siglo XXI, em cuja capa foi estampada com o título Auge y caída de la Dirección General de los Registros y del Notariado3. Na referida matéria, são indicados os seguintes motivos para a alegada perda do prestígio da DGRN: (1) desmantelamento do corpo de letrados; (2) composição de membros que não ostentam independência intelectual nem imparcialidade; e (3) mudança para passar a admitir recurso judicial, o que teria gerado insegurança jurídica.

 

O caso da hipoteca sob condição suspensiva

 

Um interessante precedente do DGRN é a Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado4.

 

O caso envolvia uma escritura pública lavrada por notário da cidade de Barcelona por meio da qual a sociedade CCP La Granada Logistics, S.L instituía uma hipoteca de máximo em favor de Hype Real State International, Sucursal Espanha.

 

A Hype State disponibilizou à La Granada5um crédito mercantil máximo de ? 18.500.000,00 (dezoito milhões e quinhentos mil euros), o qual seria liberado por etapas sujeitas a condições suspensivas.

 

Em contrapartida, a sociedade empresária devedora hipotecou o imóvel para garantir até 120% do valor acima, observadas as etapas de liberação do crédito e as pertinentes condições suspensivas. O valor garantido aumenta conforme se implementam as condições suspensivas.

 

O Ofício de Registro de Imóveis (no caso, o Registro de La Propriedad de Vilafranca del Penedés) qualificou negativamente a escritura. Negou registrá-la, entre outros pelo seguinte motivo: o ordenamento não admitiria hipoteca sujeita a condição suspensiva.

 

Em razão da impugnação pelo interessado contra essa negativa do registrador, o caso chegou à DGRN por meio do recurso administrativo6 do art. 19 bis da Lei Hipotecária espanhola7.

 

No relevante, a DGRN contrariou o registrador e admitiu a hipoteca sob condição suspensiva no caso concreto.

 

Apesar de se tratar de discussão acerca de um direito real típico (a hipoteca), o precedente em pauta discute até que ponto a vontade pode modelar esse direito mediante condição suspensiva.

 

No caso, a DGRN realçou que o regime de numerus apertus foi adotado na Espanha, mas ressalvou que a mera vontade não é suficiente à criação de novos direitos reais. É preciso observar outros requisitos. Confira-se este excerto da Resolución em pauta8:

 

Indubitavelmente, no nosso ordenamento, o proprietário pode dispor de seus bens e, assim, constituir gravares sobre eles, sem mais restrições que não as estabelecidas em lei (artigo 348 do Código Civil espanhol). Não somente se permite a constituição de novas figuras de direitos reais não especificamente previstas pelo legislador (cfr. artigos 2.2º da Ley Hipotecaria e 7º do Reglamento HIpotecario), mas também se permitem a a alteração do conteúdo típico dos diretos reais legalmente previstos e, em concreto (cfr. Artigos 647 do Código Civil espanhol e 11, 23 e 37 da Ley Hipotecaria), a sujeição desses direitos a condição, termo e encargo. Porém, é certo também que essa liberalidade tem de ajustar-se a determinados limites e respeitar as normas estruturas (imperativas) do estatuto jurídico dos bens, dado seu significado econômico-político e a transcendência erga omnes dos direitos reais, de modo que a autonomia da vontade deve ser temperada com a satisfação de determinadas exigências, tais como a existência de uma justificativa suficiente, a determinação precisa dos contornos do direito real, a inviolabilidade do princípio da liberdade de tráfego etc. (cfr. Resoluciones de 5 de junio; 23 e 26 de octubre; 4 de marzo de 1993). Esses limites alcançam especial significado em relação à hipoteca, pois são impostos em defesa do credor e para facilitar o tráfego jurídico imobiliário, o crédito imobiliário e, em última instância, a ordem pública econômica.

 

Como se vê, no julgado acima, a DGRN invocou a tipologia de numerus apertus da Espanha para justificar a imposição de uma condição suspensiva para o direito real típico de hipoteca.

 

Breves reflexões ao Brasil

 

No Brasil, indaga-se: a sujeição da hipoteca a uma condição suspensiva na forma acima seria admitida?

 

Entendemos que sim. Isso, porque nada impede que a hipoteca seja instituída indicando o valor máximo da dívida garantida, conforme art. 1.424, I, do Código Civil brasileiro.

 

Não há necessidade de recorrer a discussões de tipicidade de direitos reais, pois o ordenamento jurídico brasileiro é textual em admitir hipoteca para garantir dívidas futuras até um valor máximo.

 

Aliás, a plasticidade dos direitos reais já é suficiente para acomodar diversas situações concretas, sem necessidade de se pensar em criação de novos direitos reais.

 

Logo, no Brasil, em que prevalece o entendimento de que os direitos reais são sujeitos a numerus clausus, a situação concreta analisada na Espanha seria perfeitamente admitida.

 

Fonte: Migalhas

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