Aborda a questão em torno de aparente conflito entre normas do Código Civil que parecem suscitar conflito interpretativo sobre a questão que se encontra bem resolvido na jurisprudência dos Tribunais do país.

 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

 

O Direito de família mais moderno tem buscado inclusão da afetividade de modo mais amplo, de forma que, não necessariamente familiares mais próximos sejam mais queridos ou mesmo que família consanguínea tenha alguma preponderância sobre as famílias socioafetivas como firmado de vários modos pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.

 

Mas, no plano do direito sucessório, as regras tendem a ser um pouco mais rígidas e formais que as regras de formação e admissão de direito de família, eis que lidam diretamente com a transmissão de bens em nexo de ligação muito forte com os direitos reais – que, como sabido tem regime essencialmente cogente[1].

 

Tal se dá na medida em que, como cediço, o direito sucessório no que tange às suas regras magnas da sucessão legítima, estabelece, sem vedação ao regime da sucessão colateral (transversalidade sucessória) a regra da subsidiariedade – e aqui não se perca de vista que existem notas diferenciais caso a sucessão seja legítima (ou legal) ou testamentária – sendo que na legal há uma certa rigidez dentro dos parâmetros do artigo 1.829 e seus consectários do Código Civil como frisado de modo uniforme pelos Tribunais do país[2].

 

Do mesmo modo, enquanto que o parentesco consanguíneo seja ilimitado na linha ascendente-descendente, para fins sucessórios, dependendo, por vezes do regime de bens entre cônjuges, na linha dos parentes colaterais, há conflitos aparentes de orientação – sempre se recordando que, ao contrário do Código Bevilacqua para fins sucessórios se tem que o parentesco cessaria no quarto grau.

 

Observe-se, por exemplo, a regra contida no artigo 1.840 do Código Civil, que expressamente assegura, também na via da sucessão colateral DE MODO EXPRESSO E LITERAL, a sucessão por estirpe, como se daria no caso de falecimento de um irmão que tenha deixado filhos dentre outros irmãos. Observe-se a transcrição literal:

 

ARTIGO 1.840 CC: Na classe dos colaterais, os mais próximos excluem os mais remotos, salvo o direito de representação concedido aos filhos de irmãos. (grifos e destaques nossos).

 

Não menos importante o caput do artigo 1.843 do mesmo diploma legal:

 

ARTIGO 1.843 CC: NA FALTA DE IRMÃOS, HERDARÃO OS FILHOS DESTES, E NÃO OS HAVENDO, OS TIOS.

 

Mas o fato é que tal sucessão por estirpe não é incondicional – eis que o próprio artigo 1840 CC aponta, como condição para a estirpe, que os mais próximos devam preferir ou excluir os remotos (redação um tanto contraditória eis que na estirpe – de um modo geral – os remanescentes do ramo – filhos de filhos são mais remotos pela própria natureza – exprimindo-se, portanto, uma redação muito sujeita a sofismas[3]).

 

Não se tem aqui uma clareza de ideias que admite aqui a incidência do conhecido adágio do direito romano (jus quiritum) pelo qual in claris cessat interpretatio.[4]

 

Por outro lado, e de modo a também possibilitar uma certa interpretação contraditória sobre a questão, tem-se o modo como disciplinada a questão da sucessão pela transversalidade (linha colateral) com expressa alusão à possibilidade de representação (sucessão por estirpe) como deflui do disposto na norma contida no artigo 1.853 do mesmo Código Civil que estabelece, in verbis:

 

ARTIGO 1.853 CC: Na linha transversal, somente se dá o direito de representação em favor dos filhos de irmãos do falecido, quando os irmãos deste concorrerem.

 

Tanto assim que a sucessão por estirpe pode ser encontrada na linha colateral pode ser encontrada na jurisprudência dos Tribunais pátrios em vários arestos (caso aqui interessante do marido de uma colateral – ou seja a ideia do parentesco por afinidade – com outras regras diversas ainda[5]):

 

TJ-DF – 07013805520178070000 DF 0701380-55.2017.8.07.0000 (TJ-DF) Data de publicação: 19/06/2017 SUCESSÃO COLATERAL OU TRANSVERSAL. HERDEIROS NECESSÁRIOS. INEXISTÊNCIA. HERDEIROS COLATERAIS. IRMÃOS DO AUTOR DA HERANÇA. IRMÃ. NOMEAÇÃO COMO INVENTARIANTE. FALECIMENTO NO CURSO DO INVENTÁRIO. SUBSTITUIÇÃO PELOS FILHOS. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. SUCESSÃO POR ESTIRPE. FILHOS DA HERDEIRA. REPRESENTAÇÃO (CC, ARTS. 1.840 E 1.853). HABILITAÇÃO NO PRÓPRIO INVENTÁRIO. NECESSIDADE. DROIT DE SAISINE (CC, ART. 1.784). HABILITAÇÃO DE ESPÓLIO. INVIABILIDADE. FICÇÃO JURÍDICO-PROCESSUAL. MARIDO DA HERDEIRA PÓS-MORTA. HABILITAÇÃO NA SUCESSÃO COLATERAL.IMPOSSIBILIDADE. SUCESSÃO RESTRITA AOS FILHOS, POR REPRESENTAÇÃO. INVENTARIANTE. DESTITUIÇÃO E/OU SUBSTITUIÇÃO. PEDIDO E DECISÃO. INEXISTÊNCIA. AGRAVO. CONHECIMENTO. 1. Considerando que o recurso encerra o instrumento destinado à devolução a reexame de provimento derivado do juízo a quo, inexistindo formulação de pedido e pronunciamento judicial sobre o postulado, ficando patente que inexiste decisão sobre a questão, inviável a formulação da pretensão em sede recursal, conforme pontua o devido processo legal, que, a par de velar pela gênese e destinação do recurso, não permite a supressão de instância, ou seja, dum grau jurisdicional, mediante a formulação de questão no recurso que antes tenha sido objeto de decisão subjacente. 2. Deflagrada a sucessão colateral ou transversal, à qual acorreram irmãos do autor da herança, que viera a óbito sem deixar herdeiros necessários, o óbito, no curso do processo sucessório, duma herdeira colateral legitima que, no exercício do direito de representação que os assiste, herdando por estirpe, os filhos da herdeira pós-morta acorram ao inventário em trânsito e se habilitem como herdeiros, observadas as regras da vocação hereditária (CC, arts. 1.840, 1.843 e 1.853).

 

STJ – RECURSO ESPECIAL REsp 1674162 MG 2017/0121651-1 (STJ) Data de publicação: 26/10/2018 SUCESSÕES. DIREITO DE ACRESCER. HERDEIROS TESTAMENTÁRIOS. QUOTA PREDETERMINADA. IMPOSSIBILIDADE. DIVISÃO. HERDEIROS COLATERAIS. ARTS. 1.829 , IV , 1.840 , 1.906 , 1.941 E 1.944 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 . SOBRINHOS. DIREITO DE REPRESENTAÇÃO. EXCEÇÃO LEGAL. CONCORRÊNCIA. POSSIBILIDADE. QUINHÃO HEREDITÁRIO. TÍTULOS SUCESSÓRIOS DISTINTOS. COMPATIBILIDADE. ART. 1.808 , § 2º , DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 . 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. O direito de acrescer previsto no art. 1.941 do Código Civil de 2002 representa uma forma de vocação sucessória indireta e pressupõe (i) a nomeação dos herdeiros na mesma cláusula testamentária; (ii) que o patrimônio compreenda os mesmos bens ou a mesma porção de bens e (iii) a inexistência de quotas hereditárias predeterminadas. 3. Na hipótese de quinhões determinados, não há falar no direito de acrescer. Se o herdeiro testamentário pleiteado com quota fixa falecer antes da abertura da sucessão, sem previsão de substituto, aquela parcela deve retornar ao monte e ser objeto de partilha com todos os herdeiros legítimos. 4. No caso, o valor da quota-parte remanescente deve ser redistribuído consoante a ordem legal de preferência estabelecida na sucessão hereditária entre os colaterais (art. 1.829 do CC/2002), não havendo impedimento legal para que herdeiros testamentários participem também como legítimos na mesma sucessão hereditária (art. 1.808 , § 2º , do CC/2002). 5. Na hipótese, os sobrinhos da falecida herdam por estirpe, a título de representação, concorrendo no percentual destinado ao herdeiro pré-morto ao lado dos colaterais, na espécie, o único irmão sobrevivente da autora, que herda por direito próprio. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.

 

No entanto, a despeito do quanto asseverado – insista-se a jurisprudência majoritária, em interpretação a respeito do tema tem apontado várias exceções condicionantes desta admissão de estirpe na linha colateral – eis que, em primeiro lugar, como deva haver boa-fé objetiva em todos os campos do ordenamento jurídico, não se pode admitir, por exemplo, que se pretenda atrair parentes colaterais para além do quarto grau[6] (por exemplo tios avós ou sobrinhos netos[7]) apenas e tão somente, a partir desta suposta estirpe (interpretação que fomentaria fraudes e todo tipo de artifício devendo ser combatida por razões óbvias) para burlar a herança jacente e vacante do Estado[8].

 

Não se perca de vistas, inclusive, que prevalece na jurisprudência a interpretação mais restrita que, para admitir a sucessão por estirpe na linha colateral parece exigir que todos estejam na mesma linha sucessória de parentesco eis que, antes da admissão, se tem a condicionante de que parentes mais próximos excluem os mais remotos – mesmo que, nos ramos familiares isso possa gerar algum tipo de desconforto por um tratamento não isonômico dentro de uma mesma família.

 

Por outro lado, mesmo quem defende a ideia de uma função social das heranças, em parentescos mais distantes como na linha colateral (por exemplo, os primos[9]) a probabilidade de não serem parentes próximos ou estarem relação de afetividade diversa, uns dos outros é ponderável e grande – e, em ultima ratio, se houvesse um propósito tão grande assim de que este ou aquele parente não fosse prejudicado ter-se-ia tomado a cautela de deixar um testamento, ainda que particular.

 

Mesmo os que são mais apegados à ideia de pela constitucionalização do direito privado, se deva atender a prelados de socialidade (conceito caro a doutrinadores como Miguel Reale e Roberto Senise Lisboa e que se encontra previsto no artigo 5º LINDB, com referência à preservação dos fins sociais da norma e exigências de um bem comum), eticidade (na visão em que a compreende Karl Larenz não havendo porque criar guetos desprestigiados dentro de uma mesma unidade familiar) e a afetividade (Maria Berenice Dias, Manual das Famílias) como decorrências da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana questionam certos exageros interpretativos.

 

Há poucos anos causou comoção a discussão em torno do chamado “testamento magistral” da Comarca e Guaxupé (2.018) em que se concluiu que, em nome da aparente isonomia entre parentes que se encontram em uma mesma situação jurídica, o Poder Judiciário deveria intervir até mesmo na vontade da testadora para restabelecer prelados de isonomia entre parentes (no caso destacado situação de netas) da testadora para evitar quebra da isonomia familiar[10].

 

Posições mais ou menos extremadas a parte, tem prevalecido, de modo uniforme na jurisprudência, a ideia de que havendo parentes mais próximos, não se admitirá a sucessão por estirpe na linha colateral – via de regra – ou seja, morrendo primo – enquanto houver tios vivos, não serão admitidos outros primos na sucessão ainda que existam tios pré-mortos.

 

Em conclusão prevalece a corrente que entende que a sucessão por estirpe na linha colateral seja limitada e condicional – vale aqui uma regra de interpretação restritiva (numerus clausus non numerus apertus)[11] o que se aplicaria somente a filho de irmãos pré-mortos do de cujus sucessiones agitur  e sempre tendo em vista a regra de que a existência de herdeiros em grau mais próximo afastará da sucessão os mais remotos, tendo como única exceção os filhos de irmãos[12].

 

Fonte: Migalhas

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