É crescente o número de decisões judiciais decretando rescisão de contratos de venda e compra de lotes com pacto adjeto de alienação fiduciária, prevista na lei 9.514/97, sob argumento de que não pode existir confusão entre loteador e credor fiduciário, atividade esta “exclusiva das instituições financeiras”. Sim, isso mesmo, muito embora entendemos não ser possível a rescisão da Alienação Fiduciária, conforme inúmeros precedentes, isso está se consolidando em algumas recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

COMPRA E VENDA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EMPREENDEDORA E CREDORA FIDUCIÁRIA QUE SE CONFUNDEM  RESCISÃO  POSSIBILIDADE – A alienação fiduciária de imóvel objeto de compromisso de compra e venda não obsta o pedido de rescisão por parte do promitente comprador, especialmente na hipótese em que a empreendedor se confunde com o credor fiduciário. (TJSP; Apelação Cível 1002294-69.2019.8.26.0704; Relator (a): Ronnie Herbert Barros Soares; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XV – Butantã – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/05/2020; Data de Registro: 26/05/2020, grifo nosso). g.n

 

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. RESCISÃO CONTRATUAL. TUTELA URGÊNCIA. No caso em questão a vendedora se confunde com a credora fiduciária, na tentativa de burlar o sistema de defesa do consumidor, o que não se admite e assim, presentes elementos que evidenciam a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo fica demonstrada a possibilidade da concessão da tutela de urgência. Inteligência do art. 300 do CPC. Decisão mantida. Recurso desprovido.(TJ/SP, AI nº 2086602-91.2022.8.26.0000, 26ª Câmara Direito Privado, Des. Rel. Felipe Ferreira, v.u., j. 28/07/2022, grifos nossos)

 

O instituto da alienação fiduciária nasceu direcionado somente para as instituições financeiras e/ou empresas ligadas ao sistema de financiamento habitacional. Justamente para incrementar a atividade do setor imobiliário, precisamente pela Medida Provisória 2223/2021, posteriormente convertida pela Lei 10.931/2004 (Lei do Bem),  foi estendida a possibilidade de serem celebrados contratos de venda e compra de imóvel com alienação fiduciária entre pessoa física e jurídica, como se depreende da leitura da redação do art. 22 da Lei 9.514, abaixo transcrito:

 

“Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

 

1º  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena (….)

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.”

 

A respeito deste tema, o STJ – Superior Tribunal de Justiça, também reconheceu que é legítima a formalização da alienação fiduciária como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004. (Recurso especial provido. Resp 1542275/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/11/2015, Dje 02/12/2015), veja-se:

 

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA  SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL. OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA.”(g.n)

 

Corroborando com tal entendimento, o item 224 do Capítulo XX, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, dispõe que:

 

“224. A alienação fiduciária, regulada pela Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, e suas alterações, é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência da propriedade resolúvel de coisa imóvel ao credor, ou fiduciário, que pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, e não é privativa das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI).”( g.n.)

 

Como se pode verificar, a alienação fiduciária não é privativa das entidades que operam no SFI. Sendo assim, por qual razão estaria o loteador impossibilitado de vender o lote e ao mesmo tempo parcelar o valor para o comprador, com garantia de alienação fiduciária, já que qualquer cidadão pode usar este instrumento para a venda de um imóvel?

 

Como bem lembrado pela Registradora Imobiliária de Assis/SP, Dra. Maria do Carmo R. C. Couto:

 

“É direito das partes escolherem o tipo de contrato de transmissão ou oneração da propriedade que melhor lhes convêm, sendo possível, portanto, a utilização do instituto da propriedade resolúvel mediante alienação fiduciária, prevista no artigo 22 e seguintes da Lei Federal nº 9.514/97.” (COUTO, Maria do Carmo R. C. O contrato-padrão de loteamento, as restrições convencionais e a utilização do instituto da alienação fiduciária pelo loteador. Em: http://www.irib.org.br/html/boletim/boletim-iframe.php?be=454).g.n

 

Sabemos da grande dificuldade em se conseguir crédito imobiliário para desenvolver loteamentos no país. Os bancos e gestoras da “Faria Lima (SP)” se interessam em financiar projetos de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e não loteamentos (lei 6.766/79). Dentre as inúmeras razões para esse desinteresse, que seriam por si só o tema para mais um artigo, está a falta de conhecimento (e vontade) de sujar o pé de barro para entender a fundo um setor pulverizado nos mais de 5500 municípios brasileiros. De fato, o crédito se restringe a alguns poucos incumbentes que representam uma pequena parcela do mercado.  Já os menores, quando eventualmente acessam algum produto de crédito , é apenas na etapa em que quase todo risco foi mitigado.

 

Mesmo depois de pronto, argumentos comuns como o fato de o lote não resolver diretamente o problema da moradia, que dependerá da construção, para seu uso e gozo, e que, portanto, não é uma “boa garantia”, pode ser facilmente refutado.  Lotes bem localizados e bem avaliados podem ser uma excelente garantia.  Seu valor mais acessível, na maioria dos casos mais barato que um carro médio, faz com que um bom lote seja um ativo muito mais líquido, e ademais, não foi fisicamente ocupado.

 

Lembrando, o ciclo do loteamento tem diversas etapas, dentre elas uma das mais arriscadas e tortuosas é o processo de aprovação, e que em alguns Estados como São Paulo, dura cerca de 3 anos, podendo aumentar a depender do tamanho da área.

 

Loteamentos bem estruturados e com estudos de viabilidade adequados, podem representar uma excelente garantia e com um risco menor, já que as margens do setor são consideravelmente maiores em um produto com um ciclo bem mais longo.

 

O loteador, não apenas faz o papel do empreendedor de risco, urbanizando regiões muitas vezes remotas, como também é o agente financiador, por absoluta falta de opção, sendo obrigado a financiar ao comprador final.

 

O problema de moradia no Brasil é iminente. Limitar o direito a garantia para um setor já limitado pelo crédito é um desfavor para a sociedade, ou seja, mais um obstáculo a uma das principais categorias de empreendedores responsáveis pelo crescimento do Brasil.

 

Então por qual razão o loteador não pode figurar como credor fiduciário? Apesar de a lei 6.766 ser excelente para o setor, ela é antiga – data  de 1.979,- muito antes da edição da Lei 9.514/97, que regra a alienação fiduciária de bens imóveis, que inclusive, deveria ter um acréscimo em sua redação para prever que lotes de até R$200.000 (duzentos mil reais) fossem isentos dos custos e dos tributos necessários para o registro  da alienação – moradia de interesse social, o que ajudaria resolver o déficit habitacional no país.

 

Qualquer decisão que venha a determinar a rescisão de um contrato com alienação fiduciária sob argumento de que loteador não pode ser credor fiduciário, além de violar os preceitos do §2º, do art. 5º, da Lei 9.514, afronta os art. 22 retro transcrito, como também os art. 18  da lei 9.514/97.

 

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*Kelly Durazzo é advogada, sócia do Durazzo & Medeiros Advogados e Presidente da Coordenaria da Comissão de Loteamento da OAB/SP e Ibradim/SP.

 

*Renata Mathias de Castro Neves, advogada, especialista em Direito Imobiliário Secovi e Direito Tributário – CÉU, membro do Conselho Jurídico AELO, Membro Comissão Loteamento OAB/SP.

 

*Cleo Groeninga de Almeida é empreendedor, loteador e investidor.  Sócio da CGA Investimentos e Participações e sócio e CRO da Hent Crédito para Loteadores.

 

Fonte: Migalhas

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