O professor da FGV, consultor e sócio de Salama, Silva Filho: Osny da Silva Filho, atua como parecerista em temas de Direito Privado, regulação financeira, propriedade intelectual e tecnologia. O acadêmico acredita que a disponibilidade de cursos e produção acadêmica voltada à atividade extrajudicial é muito bem-vinda, mas ainda há um longo caminho a percorrer. A reintrodução da atividade notarial nas agendas de ensino e pesquisa – incluídos, aqui, os cursos de graduação e as investigações de pós-graduação stricto sensu, vale dizer, de mestrado e doutorado – passa pela superação de uma série de desafios. Segundo ele, “os obstáculos institucionais passam pela estrutura dos cursos jurídicos brasileiros, ainda organizados em torno de grandes corpos legislativos – os livros do Código Civil definem as matérias de Direito Civil, a Lei Antitruste define o Direito Concorrencial, o Código de Processo Penal, o Direito Processual Penal, e assim por diante –, mas também, talvez especialmente, pela ausência de canais de comunicação entre o notariado e a academia. Espero que a criação da Clínica de Contract Design e Atividade Notarial na Escola de Direito de São Paulo da FGV possa contribuir para a superação deste último obstáculo”.

Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, Osny da Silva Filho discorreu sobre a criação da Clínica de Contract Design e Atividade Notarial na FGV, explicou como funciona o acesso a clausulados de grandes contratos nos Estados Unidos e de que forma isso se dá no Brasil e como ele enxerga o futuro do notariado no que concerne à segurança jurídica. “O maior dos desafios epistêmicos decorre da ideia de que o Direito se define pela solução de conflitos, e não pela promoção de entendimentos e acordos. O que deveria ser encarado como a exceção – o conflito e sua solução judicial ou arbitral – é apresentado a estudantes e pesquisadores como regra”, pontuou. “É uma instituição [notariado] indispensável para a concretização desse princípio em toda a sua inteireza, uma vez que a segurança jurídica não se realiza apenas através da solução de litígios, mas também, e especialmente, por meio de sua prevenção”. Leia ao lado a entrevista na íntegra:

Jornal do Notário: O senhor poderia nos traçar um breve relato sobre a sua trajetória profissional? Quando e como iniciou a aproximação com a atividade notarial?

Osny da Silva Filho: Fico feliz e honrado de participar desta seção do Jornal do Notário, que acompanho com grande interesse. Sou professor da FGV Direito SP desde 2016. Mantenho também um escritório de advocacia com o Professor Bruno Meyerhof Salama, de onde atuo como consultor e parecerista em temas de direito privado, regulação financeira, propriedade intelectual e tecnologia.
Comecei a me aproximar da atividade notarial quando, ainda na graduação, por conta de um intercâmbio nas Universidades de Roma “La Sapienza” e ”Tor Vergata”, percebi que alguns dos maiores juristas italianos eram notários – de figuras históricas como Rolandino e Salatiel a contemporâneos como Gaetano Petrelli. Mais tarde, já durante o mestrado, pude comprovar a importância do notariado para a história do direito privado ao estudar a produção de alguns desses autores mais a fundo. (Apresento parte dos resultados dessa pesquisa em meu livro mais recente, Fundamentos do direito contratual, publicado pela Editora Almedina em 2022.)
Meu interesse pelo notariado permaneceu latente até reencontrar, por uma feliz coincidência – deixo para contá-la em outra ocasião –, um colega de turma, Dr. Alexandre Kassama. O Dr. Kassama havia assumido o 27º Tabelionado de Notas de São Paulo em 2020, após ser aprovado em primeiro lugar no 11º Concurso de Cartório. Aos poucos, fomos percebendo a existência de uma enorme sinergia entre projetos desenvolvidos pelo CNB/SP e os temas privilegiados em minhas atividades acadêmicas e profissionais – de questões clássicas de direito privado a práticas impulsionadas pela tecnologia blockchain.

Jornal do Notário: Hoje, diversas instituições de renome como a PUC, a Universidade Presbiteriana Mackenzie, a Damásio Educacional, a EPM, entre outras, oferecem cursos de extensão universitária em Direito Notarial. Como enxerga atualmente a disponibilidade de cursos e produção acadêmica voltada à atividade extrajudicial?

Osny da Silva Filho: A oferta de cursos de extensão em Direito Notarial é muito bem-vinda, mas ainda há um longo caminho a percorrer. A reintrodução da atividade notarial nas agendas de ensino e pesquisa – incluídos, aqui, os cursos de graduação e as investigações de pós-graduação stricto sensu, vale dizer, de mestrado e doutorado – passa, a meu ver, pela superação de uma série de desafios. Alguns deles são epistêmicos: envolvem nossas premissas teóricas, nossos modos de conhecer e interpretar o direito. Há também obstáculos institucionais, relacionados com regras implícitas e aspectos materiais do ensino e da pesquisa em Direito.
O maior dos desafios epistêmicos decorre da ideia de que o Direito se define pela solução de conflitos, e não pela promoção de entendimentos e acordos. O que deveria ser encarado como a exceção – o conflito e sua solução judicial ou arbitral – é apresentado a estudantes e pesquisadores como regra. Esse problema é aprofundado pela assimilação descontextualizada de teses heterodoxas a respeito da adjudicação constitucional norte-americana. Essas teses são divulgadas como teorias não apenas vencedoras (como se a gramática do conflito pudesse se impor sobre o campo da teoria), mas abrangentes e apropriadas aos nossos problemas. A avassaladora penetração da filosofia prática de Ronald Dworkin entre nós continua sendo o melhor exemplo dessa espécie de assimilação.
Os obstáculos institucionais passam pela estrutura dos cursos jurídicos brasileiros, ainda organizados em torno de grandes corpos legislativos – os livros do Código Civil definem as matérias de Direito Civil, a Lei Antitruste define o Direito Concorrencial, o Código de Processo Penal, o Direito Processual Penal, e assim por diante –, mas também, talvez especialmente, pela ausência de canais de comunicação entre o notariado e a academia. Espero que a criação da Clínica de Contract Design e Atividade Notarial na Escola de Direito de São Paulo da FGV possa contribuir para a superação deste último obstáculo.

Jornal do Notário: O senhor poderia contar um pouco sobre essa clínica?

Osny da Silva Filho: Devo essa ideia ao Dr. Kassama. Em um de nossos almoços, falávamos sobre a escassez de cursos sobre Direito Notarial no Brasil – na verdade, sobre a escassez de cursos de Direito dos contratos que fossem além de temas de responsabilidade contratual, vale dizer, temas da prática jurídica contenciosa. Em 2019, eu havia lecionado uma disciplina eletiva sobre Contract Design na FGV. O propósito dessa disciplina era identificar elementos aptos a evitar o surgimento de conflitos. Naquela época, contudo, eu não havia me dado conta de que esse propósito era, também, uma das finalidades da atividade notarial.

As clínicas oferecidas na FGV envolvem grupos de dez a vinte alunos, que trabalham junto a instituições parceiras no desenvolvimento de novos processos, produtos ou serviços. Neste semestre, os alunos vão cumprir três atividades correlatas. A primeira será o aperfeiçoamento de modelos de instrumentos fornecidos pelo CNB/SP – escrituras de compra e venda e doação, testamentos e procurações, em particular. A segunda, a preparação de cartilhas sobre novas competências notariais, a exemplo da certificação de condições negociais e da administração de contas vinculadas. A terceira atividade será a elaboração de artigos de Direito Notarial Comparado – uma iniciativa que, espero, se estenderá para além do escopo da clínica.

Jornal do Notário: Como funciona o acesso a clausulados de grandes contratos nos Estados Unidos – operações de M&A, por exemplo –, e de que forma isso se dá no Brasil? O notariado pode contribuir com a difusão desse tipo de material?

Osny da Silva Filho: No Brasil, o acesso a clausulados empregados em grandes operações societárias é significativamente mais restrito que nos Estados Unidos. Isso se deve a diferentes fatores. Nos Estados Unidos, companhias abertas são obrigadas por lei a divulgar seus contratos mais relevantes. Não existe obrigatoriedade similar no Brasil, senão para empresas públicas. Além disso, a American Bar Association (ABA) desempenha um papel destacado na divulgação de modelos contratuais e na promoção de publicações destinadas a profissionais da advocacia empresarial – penso especialmente no periódico Business Lawyer, em que se inspira a Revista Jurídica Profissional da FGV Direito SP. Vale lembrar, ainda, que nos Estados Unidos os mais importantes conflitos empresariais – e com eles, os contratos controvertidos – são submetidos aos tribunais de Delaware, e não a arbitragens protegidas por compromissos de confidencialidade.

Essas diferenças nos dizem muito. Elas mostram, em primeiro lugar, que o mercado tende a se beneficiar da publicidade dos instrumentos contratuais. Não há benefício na feudalização do conhecimento jurídico. Essas diferenças também revelam que a atuação de órgãos do Estado pode ser benéfica para o ambiente de negócios – basta, para tanto, que se oriente por regras jurídicas claras e estáveis, como aquelas assentadas pela jurisprudência de Delaware. Claro, nem tudo são flores. O modelo americano tem sérias fragilidades. Uma delas é a ausência de um sistema notarial unificado – fator que, importante observar, teria contribuído com a emergência da crise financeira de 2008, como vários estudos têm evidenciado.

Entendo que boa parte das funções hoje desempenhadas nos Estados Unidos pela ABA e pelos tribunais de Delaware pode, com vantagens significativas, ser atribuída, entre nós, ao notariado, e aos colégios notariais em particular. A parceria estabelecida entre o CNB/SP e a FGV, aliás, aponta nesse sentido.

Jornal do Notário: Como o senhor enxerga o futuro do notariado no que concerne à segurança jurídica?

Osny da Silva Filho: O notariado é uma instituição fundamental para a promoção da segurança jurídica. Diria mesmo que é uma instituição indispensável para a concretização desse princípio em toda a sua inteireza, uma vez que a segurança jurídica não se realiza apenas através da solução de litígios, mas também, e especialmente, por meio de sua prevenção. É possível prevenir conflitos de diferentes maneiras, e em diferentes momentos: não apenas na formação de atos e contratos válidos, âmbito primordial de atuação do notariado, mas também em sua qualificação, e mesmo em sua execução. A colaboração notarial representa um fator de segurança no cumprimento de todas essas etapas.

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