Objetiva-se com o presente trabalho discutir a extensão da gratuidade de justiça no âmbito notarial e registral, diferenciando-se da isenção tributária. Discute-se o limite de sujeito de relação jurídica processual, em caso de impugnação de gratuidade. Objetiva-se analisar o pagamento antecipado de emolumento devido à gratuidade de justiça. Ao final, apresenta-se uma proposta de modelo de custeio de emolumento nos autos que tenham sido concedido gratuidade.
O título deste trabalho até parece estranho, mas não é! Pois uma leitura fatiada das normas sobre justiça gratuita, induz a uma interpretação equivocada sobre a dispensa de emolumento dos atos notariais e registrais.
Inicialmente, é importante esclarecer que o inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, ao determinar que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, implica as seguintes situações distintas1: i) assistência judiciária gratuita, que é um serviço prestado aos necessitados extrajudicialmente (mediações, conciliações etc.) pelo Estado; ii) assistência judiciária, que é um serviço prestado judicialmente, a defesa em juízo das partes (autor e réu); e, por fim, iii) a justiça gratuita ou gratuidade de justiça, que é a dispensa legal de adiantamento de pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, ainda que o beneficiário tenha causídico contratado.
No caso, o objeto deste trabalho será apenas com as normas de justiça gratuita extensiva ao serviço notarial e registral, prevista no art. 98 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), interligado com outras normas jurídicas brasileiras.
Ademais, a título de introito, para fins de delimitação do objeto deste trabalho, é importante deixar claro que a extensão de justiça gratuita aos atos notariais/registrais implica apenas uma dispensa legal de adiantamento de emolumento, sem força para tornar o tabelião/oficial sujeito de relação jurídica processual, atuando com parcialidade, passível de impedimento/suspeição (arts. 144, 145 e 148, todos do CPC/2015), inclusive o perito judicial (art. 156, § 4º, do CPC/2015).
A gratuidade de justiça é uma dispensa legal de adiantamento de custas, despesas processuais e dos honorários advocatícios (art. 98, caput, do CPC/2015), inclusive de emolumento cartorário (art. 98, § 1º, inciso IX, do CPC/2015), que tem natureza de taxa tributária. Por outro lado, isso não significa uma isenção tributária (art. 175, inciso I, do Código Tributário Nacional – CTN) – que é uma dispensa legal de tributo -, porque o despacho da autoridade não gera direito adquirido (§ 2º do art. 179 do CTN), ao contrário da parte final do § 3º do art. 98 do CPC/2015, que gera direito adquirido ao beneficiário de justiça gratuita após o prazo quinquenal de exigibilidade.
Com efeito, a gratuidade de justiça não é uma isenção tributária, salvante contrário em lei. Logo, será possível pagamento a priori ou a posterior após o trânsito em julgado, tirante o transcurso de prazo quinquenal de suspensão de exigibilidade, sem ter a demonstração de que o beneficiário deixou a situação de insuficiência de recursos, que justificou a concessão de gratuidade. Neste caso, após o quinquênio, sem qualquer impugnação, configura-se, de fato, uma verdadeira exclusão do crédito tributário (art. 175, inciso I, do CTN).
No tocante ao aspecto processual, é importante frisar que o tabelião/oficial não são partes no processo, pois, embora tenha permissão legal para impugnar a concessão de gratuidade (art. 98, § 8º, do CPC/2015), essa conduta reflete, na realidade, um interesse econômico no feito, além de não incidir os efeitos da sentença e sequer, de sucumbência ou de causalidade processual. Logo, o referido ato de impugnação pelo tabelião/oficial não tem força para torná-los sujeito de relação jurídica processual.
Em termos financeiros, a justiça gratuita não pode ser concedida em dimensão muito ampla, ainda que licitamente, sob pena de prejudicar o erário, bem como é vedada a renúncia de receita pública, exceto nos termos do art. 1º, § 1º, c/c o art. 14, incisos I e II, ambos da Lei Complementar Federal n.º 101/2000.
Na prática notarial e registral, entretanto, a gratuidade de justiça é uma forma de isenção tributária de emolumento, embora exercida privativamente. Por exemplo, a cada concessão de justiça gratuita, ocorre dispensa de pagamento de taxa cartorária, mas não há, em regra, ressarcimento dos atos praticados.
Ademais, é oneroso ao titular de serventia extrajudicial manter um custo com advogado para acompanhar a(s) situação(ões) de beneficiário de justiça gratuita, no prazo quinquenal de suspensão de exigibilidade, com o intuito de saber se ainda continua a situação de insuficiência de recursos, que justificou a concessão de gratuidade.
Se não bastasse isso, é importante lembrar que, conquanto as isenções tributárias deveriam ser fixadas por leis específicas, conforme determina o art. 150, § 6º, da Constituição Federal de 1988 e o art. 97, inciso VI, c/c o art. 175, inciso I, do Código Tributário Nacional, não é esse o entendimento dos tribunais superiores, a exemplo do deferimento por maioria da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 194, referente ao Decreto-Lei 1.537/1977, que isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos ofícios e cartórios de registro de imóveis e de registros de títulos e documentos, a despeito do voto-vencido do então relator Min. Marco Aurélio, ao dizer que, “se a Constituição delegou à iniciativa privada o exercício do serviço notarial e de registro, não cabe à União criar isenções não previstas no texto constitucional” (portal de notícias do STF).
Pois bem, voltando ao tema, é importante lembrar que a gratuidade de justiça não se encontra apenas no art. 98 do Código de Processo Civil de 2015, cujo § 1º desse artigo diz expressamente que os emolumentos devidos a notários ou registradores são dispensados provisoriamente, mas também no § 3º do art. 95 do CPC/2015, quando o pagamento de perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da justiça.
Note-se que o Poder Público (Fazenda Pública, Ministério Público e Defensoria Pública) deve tomar as devidas precauções na concessão da justiça gratuita, seja por limitação do erário – que pode ser utilizado como fundamento da reserva do possível no âmbito do direito administrativo sem prejuízo do mínimo existencial -, seja pela responsabilidade do ordenador de despesa (§ 1º do art. 80 do decreto-lei 200/67 c/c a Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Por isso, a concessão de gratuidade de justiça não é absoluta, ainda que presumida em favor da pessoa natural, passível de impugnação na contestação, na réplica, nas contrarrazões de recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples.
Ademais, as despesas dos atos processuais praticados a requerimento do Poder Público serão pagas ao final pelo vencido (art. 91 do CPC/2015). No tocante às perícias requeridas pelo Poder Público, poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os valores adiantados por aquele que requerer a prova (§ 1º do art. 91 do CPC/2015). Não havendo previsão orçamentária no exercício financeiro para adiantamento dos honorários periciais, eles serão pagos no exercício seguinte ou ao final, pelo vencido, caso o processo se encerre antes do adiantamento a ser feito pelo ente público (§ 2º do art. 91 do CPC/2015).
No Estado do Maranhão – onde se tem conhecimento de cumprimento de decisão judicial em favor de beneficiário de justiça gratuita -, só há ressarcimento de atos praticados pelo registro civil de pessoas naturais (nascimento, casamento e óbito), em razão do Fundo Especial das Serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado do Maranhão (Lei Complementar 130/2009), que os restitui parcialmente o valor dos emolumentos previstos em Tabela XIII anexa à Lei Estadual n.º 9.109/2009.
Acontece que, conquanto dispensada antecipação de emolumento por causa da gratuidade de justiça, o próprio Código de Processo Civil determina expressamente o pagamento antecipado com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal, no caso de ser realizada por particular, hipótese em que o valor será fixado conforme tabela do tribunal [de custas e emolumentos de cada Estado] ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça, nos termos do inciso II do § 3º do art. 95 do CPC/2015, em razão do § 7º do art. 98 do CPC/2015.
Ressalte-se que o texto do § 7º do art. 98 do CPC/2015 – cujo caput do artigo trata de gratuidade de justiça – diz expressamente que “aplica-se” o disposto no art. 95, §§ 3º a 5º, ambos do CPC/2015 – que trata de pagamento com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal -, “ao custeio dos emolumentos” previstos no § 1º, inciso IX, do artigo 98 do CPC/2015, o qual determina a prática de atos notarias e de registro necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedida a dispensa de pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios.
Nesse contexto, tudo indica que não se aplica subsidiariamente os parágrafos do art. 95 do CPC/2015 ao custeio de emolumento em favor do beneficiário de justiça gratuita, uma vez que o texto legal não tem a expressão “no que couber” ou similar.
Refletindo o § 7º do art. 98 do CPC/2015, à luz da prática notarial/registral, enquanto um serviço público delegado exercido de maneira privada, será difícil uma serventia extrajudicial esperar até o final de processo para receber o seu valor, considerando que mensamente precisa reservar aproximadamente 50% da receita bruta mensal para pagamento de tributos federais, estadual e municipal, além de outras despesas necessárias ao funcionamento da serventia.
Ademais, refletindo o § 7º do art. 98 do CPC/2015, à luz de direito processual civil, não é possível imaginar que, não havendo rubrica orçamentária ou reservas contingenciais para ressarcimento de atos cartorários, os emolumentos sejam reconhecidos pelo juiz na sentença, sob pena de violação do art. 492 do CPC/2015 (princípio da congruência, correlação ou da adstrição) e do art. 18 do CPC/2015 (“Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”).
Dessa maneira, e nos termos das normas adjetivas acima, não será possível aplicar o inciso V do art. 515 do CPC/2015, ou seja, o emolumento não poderá ser aprovado por decisão judicial, por ausência de pedido da parte, a fim de constituir um título executivo judicial em favor do tabelião/registrador, com o fito de ressarcimento de atos cartorários necessários à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido gratuidade.
Por outro lado, se o pagamento do emolumento for antecipado pelo erário, este não será prejudicado, pois, nos termos do § 4º do art. 95 do CPC/2015, o juiz oficiará a Fazenda Pública – após o trânsito em julgado da decisão final – para que promova contra quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, a execução dos valores gastos com o ato notarial e registral.
Desse modo, é possível afirmar – por dedução lógica – que o § 4º do art. 95 do CPC/2015 afasta a aplicação do § 3º do art. 98 do CPC/2015, que trata da suspensão quinquenal de exigibilidade sucumbencial do beneficiário da justiça gratuita, a fim de não causar prejuízo ao erário e, por conseguinte, a responsabilização do ordenador de despesas (Lei Complementar Federal n.º 101/2000).
Dessa maneira, tudo indica que o procedimento judicial deveria ser feito da seguinte forma: uma vez concedida a justiça gratuita, e sendo necessária a prática de atos de notas e de registros, o erário deveria pagar – a priori e por meio de reservas contingenciais, caso não tenha rubrica orçamentária específica2 – o valor do emolumento cartorário, sendo posteriormente ressarcido por quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais (art. 98, §§ 2º e 3º, do CPC/2015), por meio de execução fiscal da Fazenda Pública.
Nesse contexto, deveriam ser ressarcidos integralmente todos os atos notariais e registrais que dão efetividade às decisões judiciais em favor de beneficiário de justiça gratuita (art. 98, inciso IX, c/c o seu § 7º, do CPC/2015), por meio de rubrica orçamentária específica ou, do contrário, por reservas contingenciais, a despeito da existência de fundos específicos, a exemplo de Fundo Especial das Serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado do Maranhão (Lei Complementar n.º 130/2009).
No tocante ao Estado do Maranhão, a Tabela de Custas e Emolumentos, anexa à lei Estadual 9.109/2009, não dispõe expressamente sobre assistência jurídica gratuita ou justiça gratuita, mas apenas no item 17.8 da Tabela XVII relativa ao tabelionato de protesto, no qual consta expressamente uma previsão de isenção tributária em favor de parte beneficiária de assistência judiciária (e não de justiça gratuita), cuja interpretação será literal não somente por se tratar de exclusão de crédito tributário (art. 111, inciso II, c/c o art. 175, inciso I, ambos do Código Tributário Nacional), mas também por ser uma renúncia de receita (art. 14 da Lei Complementar Federal n.º 101/2000).
Em relação aos atos de registros civis de pessoas naturais do Estado do Maranhão, serão objeto de ressarcimento, entre outros, os atos requisitados judicialmente, nos termos do art. 11, § 2º, da Lei Complementar Estadual n.º 130/2009 – que tem a finalidade de assegurar a gratuidade dos atos do Registro Civil das Pessoas Naturais no Estado do Maranhão (RCPN) -, independente de concessão de justiça gratuita.
Note-se que a referida lei complementar não se trata de dispensa legal de adiantamento emolumento - referente à justiça gratuita -, e sim, de restituição à exclusão de crédito tributário (dispensa legal de pagamento de tributo), ou seja, é uma forma de compensação aos oficiais de RCPN por seus atos gratuitos, em observância ao art. 8º da lei Federal 10.169/2000, que dispõe sobre o estabelecimento de normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
Portanto, é possível asseverar que a concessão de gratuidade de justiça não difere o pagamento de emolumento de serventia extrajudicial, mas, ao revés, – e nos moldes da perícia judicial – determina a antecipação de pagamento de emolumento por meio do erário, sendo este ressarcido posteriormente por quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, para evitar seu prejuízo e responsabilização fiscal do ordenador de despesa.
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1 LOPES JR., Jaylton. Manual de Processo Civil. São Paulo: Ed. JusPodvium, 2023, p. 228.
2 Cf. o art. 5º, inciso III, da Lei Complementar Federal n.º 101/2000, e mais o art. 98, § 7º c/c o art. 95, §§ 3º ao 5º, ambos do CPC/2015.
Fonte: Migalhas
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