Este artigo trata de uma prática que nos parece equivocada: a de condicionar a averbação do georreferenciamento na matrícula do imóvel ao prévio consentimento de entes públicos (ainda que por meio de entidades da Administração Indireta).
A prática parece só existir no Distrito Federal, por força do art. 18 do Provimento nº 2, de 19 de abril de 2010, da Corregedoria-Geral de Justiça do TJDFT1. Consultamos registradores de outros Estados, mas não identificamos similar posicionamento.
Antes de enfrentar o tema, convém lembrar que, desde 20 de novembro de 2023, todos os imóveis rurais de tamanho superior a 25 hectares estão obrigados a serem georreferenciados. O prazo para os imóveis de tamanho inferior esgotará em 20 de novembro de 2025. Esses prazos estão no Decreto nº 4.449/2002.
O georreferenciamento é fundamental, porque permite que a matrícula do imóvel contenha uma descrição perimetral do imóvel com altíssimo grau de precisão, de modo a evitar um dos problemas mais comuns no meio fundiário brasileiro: a sobreposição de áreas.
Detalhando esse assunto, tivemos a oportunidade de escrever artigo dividido em duas partes na Coluna Migalhas Notariais e Registrais sob o título Cartório de imóveis e georreferenciamento: exigência de consentimento de confrontantes para averbar o georreferenciamento. Recomendo-lhes a leitura: (1); (2).
As matrículas dos imóveis rurais cuja descrição perimetral não seja atualizada com o georreferenciamento estão sujeitas a um bloqueio legal: nenhum ato pode ser praticado nessa matrícula enquanto não houver a averbação do georreferenciamento. É o § 2º do art. 10 do decreto 4.449/20022.
O objetivo desse bloqueio legal é induzir todas as matrículas dos imóveis rurais brasileiras a serem higienizadas das imprecisões perimetrais próprias da precária linguagem de agrimensura até então utilizada. Averbar o georreferenciamento é, metaforicamente, traduzir a descrição precária atual para uma linguagem mais precisa de agrimensura.
Acontece que há quem defenda a necessidade de uma prática – a nosso ver – descabida: entes públicos estão tentando “pegar carona” nesse bloqueio legal para exigir que a averbação do georreferenciamento seja condicionada ao seu prévio consentimento. O argumento brandido por esses entes públicos é de que há muitos imóveis rurais que estariam em áreas públicas, de modo que essa prévia anuência serviria como uma forma de fiscalização prévia.
Trata-se, ao nosso ver, de procedimento inadequado não apenas sob o aspecto jurídico-formal, mas também sob a orbe jurídico-material.
Sob o prisma jurídico-formal, não há nenhum respaldo legal nessa oitiva prévia de entes públicos para a averbação do georrefenciamento. O procedimento para tanto é o disciplinado pelo art. 213, II, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos – LRP)3, o qual não prevê nada nesse sentido. Aliás, se o legislador entendesse por obrigatória a oitiva dos entes públicos, ele o teria sido expresso, à semelhança do que ele fez ao disciplinar o procedimento de usucapião extrajudicial (art. 216-A, § 3º, da LRP).
À luz de um lado jurídico-material, igualmente é descabido condicionar a averbação do georreferenciamento à prévia anuência de entes públicos. Não há razão de ser para tanto. É que, no caso do procedimento de averbação do georreferenciamento na forma do art. 213 da LRP, o objetivo é apenas retificar ou atualizar uma informação registral referente à descrição da poligonal do imóvel. Não se objetiva realizar qualquer check-up (profilaxia jurídica) da titularidade tabular do imóvel.
Para esse tipo de profilaxia jurídica, há vias próprias, como o procedimento de autotutela registral do art. 214 da LRP nos casos de vícios tabulares4 ou a pertinente ação judicial na hipótese de vício extratabular. A propósito desses procedimentos, reportamo-nos a artigo nosso publicado na Coluna Migalhas Notariais e Registrais sob o título Procedimento de autotutela registral (art. 214 da Lei de Registros Públicos): limites objetivos.
No caso de discussão de titularidade pública do imóvel, cabe ao ente público – se se entender o verdadeiro proprietário – valer-se da via judicial pertinente com provas de seu direito, pois aí estaríamos diante de um vício extratabular.
Além do mais, lembramos que a legislação federal já estabeleceu um mecanismo de segurança para evitar sobreposição de áreas, seja em relação a outros imóveis privados, seja no tocante a imóveis públicos. Trata-se da exigência de prévia atuação do Incra, que mantém o controle de disponibilidade do território rural brasileiro e que emite a pertinente certificação da ausência de sobreposição. O Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), emitido pelo Incra, é de presença obrigatória na matrícula do imóvel (art. 176, § 1º, II, “3”, “a”, e § 3º, da lei 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos – LRP5). Sobre o tema, reportamo-nos às alterações legislativas feitas pela lei 10.267/2001 e ao seu regulamento (decreto 4.449/2002).
Não pode nenhum ato infralegal criar um outro mecanismo de fiscalização prévia de sobreposição de áreas como condição para a averbação do georreferenciamento, por falta de respaldo legal.
Além disso, entendemos que padeceria de inconstitucionalidade formal leis estaduais ou municipais que assim procedessem, pois somente lei federal pode disciplinar registros públicos (art. 22, XXV, da Constituição Federal).
Enfim, não podem os Cartórios de Imóveis – de lege ferenda – dar “carona” aos entes públicos no bloqueio legal imposto às matrículas de imóveis rurais não georreferenciados após o transcurso do prazo de tolerância do decreto 4.449/2002.
O mais grave dessa indevida “carona” é que, além da falta de arrimo jurídico-formal-material, essa prática é um desserviço aos esforços de redução da informalidade fundiária.
Com a “carona”, a tendência é a multiplicação de “contratos de gaveta”, com a transmissão de cadeias de transmissão de direitos à margem dos registros públicos, a causar transtornos para a economia e a sociedade.
Afinal de contas, os entes públicos, de modo abusivo, poderiam simplesmente recusar a dar consentimentos com motivações genéricas, por terem “suspeitas” de que o imóvel objeto da matrícula pode vir a ser de sua titularidade. Cuida-se de medida abusiva, que acabam conduzindo os particulares à informalidade fundiária.
Se o Poder Público tem provas de que as áreas representadas por matrículas atualmente ativas lhe pertencem, cabe-lhe vale-se das vias judiciais adequadas. É, porém, ilícito que ele tente “pegar carona” no bloqueio legal do decreto 4.449/2002.
No máximo, o que os Cartórios de Imóveis poderiam fazer – por mera cortesia – é comunicar os entes públicos após a prática de qualquer ato de averbação de georreferenciamento, para eventual conferência a posteriori pelo Poder Público, o qual poderá servir-se da via judicial se enxergar alguma usurpação de área pública.
Argumentos como os da existência de ocupações irregulares nos locais são insuficientes para, sem respaldo em lei federal, burocratizar o procedimento de averbação do georreferenciamento pelos particulares que querem se livrar do bloqueio legal do decreto 4.449/2002.
Uma opção disponível ao Poder Público para uma fiscalização ex ante legalmente viável é fornecer ao Incra as suas áreas com o devido georreferenciamento, a fim de que essa autarquia federal negue a certificação de georreferenciamento que avance sobre áreas públicas.
O que não é admissível é que o bloqueio legal do decreto 4.449/2002 seja desvirtuado de sua finalidade original (a de atualizar as descrições perimetrais dos imóveis) para dar “carona” a pretensões burocratizantes de fiscalizações ex ante do Poder Público baseadas em presunções indevidas de má-fé do particular. Essa presunção de má-fé, inclusive, contraria expressamente o princípio da boa-fé do administrado, sediado no art. 3º, II, da Lei da Liberdade Econômica6, que objetivou desburocratizar a Administração Pública.
Em poucas palavras, não se pode criar – de lege ferenda – uma exigência indevida para destravar as matrículas congeladas pelo bloqueio legal do decreto 4.449/2002.
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1 Art. 18 A Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP será consultada pelo registrador sobre a retificação, devendo emitir laudo técnico no prazo de trinta dias acerca de eventual sobreposição total ou parcial com imóveis públicos ou quaisquer outras informações consideradas relevantes de que tenha conhecimento, tais como os imóveis desapropriados por ela ou por pessoas jurídicas de direito público, assim como bens públicos de uso comum do povo.
Parágrafo único. A critério do registrador, outros órgãos ou entidades da Administração Pública poderão ser ouvidos no prazo de sessenta dias.
2 Art. 10, § 2o: “Após os prazos assinalados nos incisos I a IV do caput, fica defeso ao oficial do registro de imóveis a prática dos seguintes atos registrais envolvendo as áreas rurais de que tratam aqueles incisos, até que seja feita a identificação do imóvel na forma prevista neste Decreto: (…)”
3 Art. 213, II: “a requerimento do interessado, no caso de inserção ou alteração de medida perimetral de que resulte, ou não, alteração de área, instruído com planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura – CREA, bem assim pelos confrontantes. (…)”
4 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo.
5 Lei 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos – LRP
6 Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica).
Art. 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:
I – a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;
II – a boa-fé do particular perante o poder público;
III – a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e
IV – o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
Parágrafo único. Regulamento disporá sobre os critérios de aferição para afastamento do inciso IV do caput deste artigo, limitados a questões de má-fé, hipersuficiência ou reincidência.
Fonte: Migalhas
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