Apelação nº 1003090-14.2023.8.26.0577

 

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1003090-14.2023.8.26.0577

Comarca: SÃO JOSÉ DOS CAMPOS

 

PODER JUDICIÁRIO

 

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

 

Apelação nº 1003090-14.2023.8.26.0577

 

Registro: 2023.0001057961

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1003090-14.2023.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que é apelante FLÁVIA DOS SANTOS PERNA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.

 

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

 

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

 

São Paulo, 30 de novembro de 2023.

 

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

 

Corregedor Geral da Justiça

 

Relator

 

APELAÇÃO CÍVEL nº 1003090-14.2023.8.26.0577

 

APELANTE: Flávia dos Santos Perna

 

APELADO: 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São José dos Campos

 

VOTO Nº 39.229

 

Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de pacto antenupcial – Regime híbrido que mescla regras do regime da comunhão parcial de bens com o da separação convencional de bens – Existência de disposições no pacto estabelecido que, segundo o oficial, não comportam ingresso no registro de imóveis porque ilegais – Renúncia a alimentos – Questão não afeta ao pacto antenupcial – Inteligência do disposto no artigo 1.639 do código civil – Renúncia também à concorrência sucessória do cônjuge com os ascendentes ou descendentes prevista no artigo 1.829 do Código Civil – Artigo 426 do Código Civil que veda o pacto sucessório – Afastamento dos frutos dos bens particulares de cada cônjuge da comunhão (artigo 1.660, Inciso V, do Código Civil) – Cláusula válida – Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita – Título que, tal como se apresenta, não comporta registro – Apelação não provida.

 

Trata-se de apelação interposta por Flávia dos Santos Perna contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de São José dos Campos/SP, que manteve a negativa de registro de escritura pública de pacto antenupcial (fls. 56/58).

 

Alega a apelante, em síntese, (i) que as cláusulas 2.5, 6 e 7 do pacto antenupcial versam sobre matéria sucessória e alimentos, direitos inquestionáveis na esfera registral ou administrativa, “devendo a dúvida ser rechaçada por completa incompetência para o assunto”; (ii) que a avençada incomunicabilidade dos frutos dos bens particulares de cada cônjuge (cláusula 2.5) está embasada no princípio da autonomia da vontade e está conforme a jurisprudência reinante, devendo prevalecer; (iii) que a renúncia mútua a alimentos (cláusula 6) é válida porque fundada na autonomia da vontade, na boa-fé contratual e no princípio do “pacta sunt servanda”; (iv) que a renúncia ao exercício futuro do direito de concorrência à herança com descendentes ou ascendentes do outro cônjuge não se enquadra na vedação prevista no artigo 426 do Código Civil porque não há qualquer restrição à renúncia de direito futuro ou expectativa de direito, salvo quando a lei assim o determina de modo expresso; (v) que o título deve ser cindido para o registro das disposições pactuadas que não foram objeto de óbice.

 

Requer, portanto, a reforma da sentença, com o registro do pacto antenupcial em sua integralidade, ou, subsidiariamente, que o pacto seja preservado, aplicando-se o princípio da cindibilidade registral em relação às cláusulas que este C. Conselho Superior da Magistratura entenda prudente excluir (fls. 79/90).

 

A Douta Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento do recurso (fls. 116/118).

 

É o relatório.

 

A apelante pretende fazer registrar, no Livro 3 do Registro de Imóveis, a escritura pública de pacto antenupcial em que os nubentes convencionaram adotar um regime híbrido, mesclando regras do regime da comunhão parcial de bens com o da separação convencional de bens, no bojo do qual também firmaram três cláusulas, as de nºs 2.5, 6 e 7, prevendo, em síntese, (i) o afastamento da regra legal da comunhão dos frutos provenientes de bens particulares, prevista no inciso V do artigo 1.660 do Código Civil, (ii) a renúncia ao direito a alimentos no caso de dissolução do casamento e (iii) a renúncia a eventuais direitos sucessórios um do outro.

 

O título foi negativamente qualificado pelo registrador, que expediu nota devolutiva (fls. 18/21) nos seguintes termos:

 

“Em análise à escritura de pacto antenupcial de FLAVIA DOS SANTOS PERNA e HORACY RIBEIRO PASSOS NETO, ora apresentada, verifica-se que os nubentes resolveram adotar um regime híbrido, mesclando regras do regime da comunhão parcial de bens com o da separação convencional de bens. Quanto a esta parte do contrato não há nenhum óbice ao registro no Livro 03.

 

Ocorre que, mais adiante, os nubentes entram em tema que não é próprio de um pacto antenupcial, é quando regulam a renúncia de direitos legais, sejam eles quanto a rendimentos recebidos durante o casamento, alimentos e direitos sucessórios.

 

Tal circunstância, além de ferir o disposto no art. 426 do Código Civil, também fere os dispositivos que disciplinam o pacto antenupcial, uma vez que o seu objetivo é regular as regras do casamento enquanto este existir, não sendo capaz de produzir efeitos após a dissolução da sociedade conjugal (art. 1.571, CC).

 

A renúncia mútua à herança, antes de suas respectivas mortes, fere regras do direito sucessório (art. 1829, CC) podendo gerar a anulação do pacto, nos termos do art. 1655 do Código Civil.

 

(…)

 

Ademais, verifica-se por fim, que ambos renunciam ao direito de sucessão um do outro, quando em concorrência com descendentes e ascendentes, regra essa que não se aplicará ao imóvel que o casal fixar residência. Para este imóvel, estipulam que no caso de morte de FLAVIA, ele ficará em comunhão com HORACY, ferindo a ordem de sucessão hereditária determinada no art. 1.829, CC.

 

Tal cláusula é de natureza testamentária e não pode constar de um pacto antenupcial.”

 

Nas razões de apelação, a recorrente insiste na validade das cláusulas, mas formula pedido subsidiário pelo registro do título, no tocante ao restante do pacto pelo princípio da cindibilidade registral.

 

Ora, é sabido que a retificação de uma escritura pública somente é possível por meio da lavratura de outra escritura pública. Portanto, não basta que, após a recusa de registro, haja mera anuência ou mesmo requerimento de exclusão de determinada cláusula pactuada para que, então, o conteúdo do título seja alterado e, por conseguinte, registrado.

 

Ademais, não é cabível a cindibilidade do título, como sugerido pelo registrador, pois não houve requerimento tempestivo da apresentante neste sentido (princípio da rogação).

 

A qualificação negativa deu-se por três óbices, mas um deles não subsiste, qual seja o que se referiu à cláusula 2.5.

 

Apesar disso, como os demais óbices se sustentam e não é pertinente a cindibilidade do título, a negativa de ingresso da escritura pública de pacto antenupcial no registro de imóveis fica mantida.

 

Isso porque pelas cláusulas 6 e 7, os nubentes pretenderam regular, no pacto antenupcial, temas que não lhe são próprios e que ferem disposições legais.

 

É preciso dizer que, em verdade, o ideal seria que o pacto houvesse se limitado a dispor sobre o regime híbrido de bens adotado, que, conforme informou o Registrador, mesclou “regras do regime da comunhão parcial de bens com o da separação convencional de bens” – e em relação a que não houve óbice levantado pelo Oficial -, deixando as demais disposições para instrumento diverso que, sem necessidade de ingresso no registro imobiliário, viesse a ser oportunamente analisado, por exemplo, quando da abertura do inventário daquele que primeiro falecesse, caso ainda mantido, à época, o casamento.

 

Aliás, o óbice ao registro não está propriamente na impossibilidade de cindir o título e sim, no fato de que os nubentes pactuaram disposições ilegais.

 

Três foram as cláusulas consideradas ilegais pelo Registrador:

 

A primeira delas é a cláusula 2.5, que prevê o afastamento da regra legal da comunhão dos frutos provenientes dos bens particulares, prevista no inciso V, do artigo 1.660 do Código Civil.

 

Muito embora a negativa do Registrador quanto à cláusula em apreço, ele está equivocado.

 

Dispõe o artigo 1.639, caput, do Código Civil, ser lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

 

Não se vislumbra, portanto, impedimento a que os nubentes estabeleçam que os frutos dos bens particulares não entram na comunhão.

 

O óbice referente à cláusula nº 2.5, portanto, não se sustenta.

 

A segunda cláusula é a de nº 6, que estabelece a renúncia ao direito a alimentos no caso de dissolução do casamento.

 

O pacto antenupcial destina-se a reger o regime de bens do casamento, não comportando disciplina sobre alimentos para caso de eventual dissolução do vínculo matrimonial, tal como decorre do mencionado artigo 1.639, caput, do Código Civil.

 

Não se tratando, portanto, de estipulação sobre os bens dos nubentes, mas de disposição sobre o dever de pagar alimentos na hipótese de dissolução do casamento, não há como afastar o óbice apresentado pelo Registrador.

 

Além disso, a renúncia aos alimentos foi estipulada sob a condição de futura permissão na legislação e na jurisprudência, o que, como bem anotou o Registrador, traz total insegurança para as partes porque não se sabe qual será a regra vigente ao tempo de eventual dissolução da sociedade conjugal, assim como pela fluidez, subjetividade e vagueza da expressão “jurisprudência majoritária”, “podendo ser interpretado, no futuro, de acordo com os interesses de cada cônjuge” (fls. 04).

 

A terceira cláusula é a de nº 7, que estabelece a renúncia mútua dos nubentes à herança, quando em concorrência com descendentes ou ascendentes, visando a afastar o disposto nos incisos I e II do artigo 1.829 do Código Civil, o que, todavia, não se aplicará para o imóvel em que o casal fixar residência.

 

Ora, ainda que permaneçam os nubentes com o direito à herança quando o cônjuge sobrevivente herdar com exclusividade, ou seja, se não houver descendentes ou ascendentes do falecido, a renúncia à concorrência sucessória esbarra na vedação legal trazida pelo artigo 426 do Código Civil, que impede o pacto sucessório.

 

Como ensina Pontes de Miranda:

 

“No direito brasileiro, não se admite qualquer contrato sucessório, nem a renúncia a herança. Estatui o Código Civil, art. 1.089: ‘Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva’.

 

A regra jurídica, a despeito dos dois termos empregados “contrato” e “herança”, tem de ser entendida como se estivesse escrito: ‘Não pode ser objeto de negócio jurídico unilateral, bilateral ou plurilateral a herança ou qualquer elemento da herança de pessoa viva’. Não importa quem seja o outorgante (o de cujo ou o provável herdeiro ou legatário), nem quem seja o outorgado (cônjuge, provável herdeiro ou legatário, ou terceiro).

 

Nas Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 70, § 3, permitiam-se, ex argumento, os pactos chamados renunciativos ou abdicativos (pacta de non succedendo), se sob juramento perante o Tribunal do Desembargo do Paço, mas isso foi revogado pelo costume, confirmado pela não-atribuição de tomada de tal juramento a qualquer-outro órgão estatal.” (Tratado de Direito Privado XXXVIII, § 4.208, 2).

 

“Pactos sucessórios, sucessões pactícias, contratos de herança, sempre se chamaram, no direito brasileiro, como também no próprio direito romano, os pactos aquisitivos, em que algum dos contraentes promete instituir ou se obriga a aceitar sucessão (de sucedendo), e os renunciativos, em que se promete não instituir ou não aceitar (de non succedendo). Esses pactos sempre foram (com ligeiras exceções) considerados nulos. Procurava-se, assim, evitar que os contratos derrogassem regras legais de interesse público, iuris publici, como o é a matéria das sucessões, quod pactis privatorum mutari non potest (L. 38, D., de pactis, 2, 14).” (Tratado de Direito Privado VIII, § 917, 3).

 

Não bastasse, o artigo 1.655 do Código Civil dispõe ser nula a convenção ou cláusula contida no pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei. Vale dizer, o pacto antenupcial ou cláusula nele contida não pode contrariar norma de ordem pública.

 

No dizer de Flávio Tartuce, em comentário ao artigo 1.655 do Código Civil:

 

“A norma limita a autonomia privada no pacto, assim como a função social do contrato o faz nos contratos em geral (art. 421 do CC)” (Manual de Direito Civil. Volume único. São Paulo. Editora Método. 2018. 9ª edição. P. 1.125).

 

O autor destaca justamente o julgamento do REsp 954.567/PE, pela 3ª Turma do STJ, em 10.05.2011, em que foi Relator o Ministro Massami Uyeda, em que se entendeu nula a cláusula que exclui o direito à sucessão no regime da comunhão parcial de bens, afastando a concorrência sucessória do cônjuge com os ascendentes. Impera o princípio da legalidade estrita, de sorte que, tal como se apresenta, o título não comporta registro.

 

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

 

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

 

Corregedor Geral da Justiça

 

Relator. (DJe de 07.03.2024 – SP)

 

Fonte: DJE/SP

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