Em fevereiro, uma britânica viralizou ao celebrar o término do casamento com uma festança de cerca de R$ 1,3 milhão, com direito a brindes, atrações musicais e até sessões de fotos para os convidados. A celebração é parte de uma tendência, as chamadas festas do divórcio, ou de descasamento, que, na contramão do que se propõe durante a leitura dos votos no casamento, marcam, com bom humor, o momento em que um relacionamento chega ao fim.

 

Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, a celebração tem ganhado força nos últimos anos com um novos olhares sobre divórcio, que deixa de ser associado à ideia de fracasso, sobre o próprio casamento e com a atenção crescente à qualidade dos relacionamentos. Para Kelyane Rodrigues, de 32 anos, que precisou esperar quatro anos depois de uma separação conturbada para recuperar o status civil de solteira, sobravam motivos para celebrar:

 

— Passamos sete anos juntos, mas terminamos de uma forma que perdemos completamente o contato. Foi um fim muito complicado, ninguém casa pensando em se separar, mas não tive escolha. Quando o divórcio saiu, decidi fazer uma festa, porque era como se eu estivesse me libertando. Quando fui no cartório buscar minha certidão de nascimento averbada, sem o sobrenome dele, chorei. A sensação era que eu estava livre, que eu nasci de novo.

 

A comemoração foi realizada em maio de 2023 num bar de Fortaleza, no Ceará, onde mora Kelyane. A promotora de eventos, formada em Nutrição, conta que já tinha ouvido falar sobre celebrações do tipo antes de decidir fazer a sua. Para ela, é uma tendência que cresce especialmente entre aqueles que viviam relacionamentos abusivos.

 

— Fiz até convite, bolo personalizado. Quando contei que ia fazer a festa, algumas pessoas acharam estranho, outras me apoiaram. Mas foi muito animada, estava entre amigos e familiares queridos. Festa é celebração, é alegria. Quando casei, fiz a festa do casamento, e quando me separei, para eu me sentir bem, preferi celebrar de novo. Não é de uma hora para outra que você abre mão do casamento. Lutamos até a última gota mas, quando vemos que não dá mais certo, precisamos seguir a nossa vida.

 

A mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB) e professora de Psicologia do Centro Universitário de Brasília (CEUB), Izabella Rodrigues Melo, vê a celebração como um reflexo positivo de um movimento nas últimas décadas em que o divórcio deixa, aos poucos, de simbolizar um fracasso:

 

— Primeiro ele foi mais falado e depois naturalizado. O divórcio não precisa significar uma derrota, que o casamento não deu certo. Pode significar tanto para o casal, como para a família ao redor, que aquela união, naquele formato, não fazia mais sentido. Conversamos com casais em terapia inclusive para calibrar as expectativas e entender que dar certo, ou não, não quer dizer necessariamente estar junto, mas sim ter saúde e bem-estar — afirma.

 

O doutor em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor da sociedade psicanalítica APOLa do estado paulista, João Felipe Domiciano, tem uma visão semelhante. Ele cita ainda a influência das mudanças na legislação que envolve a separação nas últimas décadas como um fator.

 

— Me parece que a ideia do divórcio está sendo cada vez mais descolada dessa ideia de falência que é uma noção que ainda vem muito dos últimos 50 anos, da lei do desquite, dessas regras que dificultavam muito o processo há décadas, mas que foram mudando — diz.

 

Por outro lado, a neuropsicóloga Andrea Stravogiannis, coordenadora do setor dedicado a amor excessivo e ciúme patológico no Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) do do Hospital das Clínicas da USP, pondera que, quando o casamento terminou de forma amigável, é importante pensar no impacto emocional que a celebração pode ter na outra pessoa e em si mesmo:

 

— Quando estamos numa relação amorosa saudável, são criadas expectativas. Quando há o rompimento, por mais que você não queira mais aquela pessoa, também é preciso lidar com a perda dessas projeções. E promover uma festa pode trazer mais sofrimento ao reviver aquela relação do que um alívio. E hoje falamos muito sobre responsabilidade afetiva. No caso de um relacionamento saudável, se depois de 2 meses você faz uma festa, o quanto isso pode machucar o outro? Mas depois de um tempo, quando esse fim tiver sido mais elaborado, acredito que seja possível celebrar sim, ainda que muitas pessoas olhem para isso com estranheza.

 

Domiciano acrescenta que esse processo de luto pela vida que envolvia aquela relação é de fato importante, mas destaca que ele “pode ter tempos completamente diferentes para cada casal”. — Às vezes, o fim da relação começa a ser elaborado ainda durante a relação. Podemos ter casais que vão estar tranquilos no momento do divórcio porque estão passando por esse momento de luto há mais tempo.

 

Nesse contexto, a professora do CEUB acredita que o desejo de celebrar o término pode ter relação com uma vontade de marcar temporalmente essa mudança, especialmente quando ela ocorre após uma relação que não era saudável:

 

— Quando falamos sobre o tema, lembramos muito a foto da atriz Nicole Kidman celebrando na rua depois do divórcio (em 2001, do ator Tom Cruise). Entendo que a motivação de fazer uma festa é parecida, a vontade de comunicar para quem está ao redor que um ciclo se fechou. Essa vontade pode ter diferentes funções. Pode ser inclusive uma festa conjunta para dizer “olha estamos bem” ou o extremo oposto, alguém que teve uma relação abusiva e queira marcar uma fase nova.

 

Stravogiannis, que é autora do livro “Ciúme excessivo & Amor patológico: quando o medo da traição e do abandono se torna uma obsessão” (Literare Books), concorda que a maior atenção à qualidade do relacionamento tem ajudado a desconstruir a ideia de que o casamento, ainda mais quando é abusivo, precisa ser para sempre:

 

— Quanto mais falamos sobre esses temas, mais ajuda a desmistificar essa ideia de que é preciso ficar numa relação ruim, abusiva, eternamente. Essa liberdade, esse individualismo cultural traz isso para a gente, para todos os tipos de relações, que não precisamos ficar eternamente colados naquela pessoa. Mais as pessoas buscam se libertar dessas amarras que as prendem num relacionamento não saudável, que podem ser psicológicas, por vezes financeiras — diz ela.

 

Os divórcios mais caros da história

 

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Juntos para sempre?

 

Até 1977, quem casava permanecia com um vínculo jurídico para o restante da vida. A única possibilidade legal de romper a relação era o pedido do desquite, que realizava a separação de bens e dava fim à obrigatoriedade de morar junto e de ser fiel. No entanto, a pessoa continuava juridicamente atrelada à outra pelo matrimônio, não podendo portanto se casar novamente.

 

Com a lei de 77, o divórcio passou a ser uma possibilidade, no início com uma série de requisitos que dificultavam a sua efetivação. A partir de 1988, com a nova Constituição, as regras passaram a ser mais próximas das de hoje.

 

Desde então, o número de divórcios cresce ano a ano no Brasil, e o de casamentos diminui. É o que mostra a última Pesquisa Estatísticas do Registro Civil, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), em 2021.

 

Naquele ano, foram 932.502 matrimônios e 386.813 separações, ou seja, 1 divórcio para cada 3 casamentos. A taxa de nupcialidade – número de uniões a cada mil habitantes em idade de casar, 15 anos ou mais – saiu de 12,2, em 1980, para 5,5 no ano mais recente do levantamento.

 

Já a taxa geral de divórcios – número de descasamentos a cada mil habitantes com 20 anos ou mais – foi de 2,49 em 2021, enquanto, nos anos 80, estava abaixo de 0,5. Em média, o matrimônio durou 13,6 anos nos casos de divórcio.

 

— Essa leveza com a qual o divórcio tem sido cada vez mais entendido está ligada também à forma como a nossa sociedade está repensando o casamento e outros modos de estar com o outro e criar laços amorosamente. O casamento já teve esse peso de felizes para sempre até que a morte nos separa, e o divórcio vinha como essa quebra abrupta de uma promessa. Mas vemos a sociedade reavaliar esse imaginário social do casamento — diz Domiciano.

 

Novas formas de se relacionar

 

Os especialistas destacam ainda que essa nova visão sobre divórcio e casamento faz parte de um processo cultural de questionamento a moldes preestabelecidos, como o de que para ser feliz seria obrigatório casar, ter filhos e formar uma família.

 

— Estamos questionando as configurações tradicionais de relação muito mais do que em outras épocas. O que tem numa relação de um modelo pré formatado, que foi consolidado socialmente, e o que funciona especificamente para aquelas pessoas? Não só o que deveria funcionar porque é o que recebe o entendimento do “correto” dentro de uma norma social. Para além disso, o que cabe entre aqueles que estão envolvidos num relacionamento? É um tema crescente — diz Domiciano.

 

Novas formas de se relacionar

 

Os especialistas destacam ainda que essa nova visão sobre divórcio e casamento faz parte de um processo cultural de questionamento a moldes preestabelecidos, como o de que para ser feliz seria obrigatório casar, ter filhos e formar uma família.

 

— Estamos questionando as configurações tradicionais de relação muito mais do que em outras épocas. O que tem numa relação de um modelo pré formatado, que foi consolidado socialmente, e o que funciona especificamente para aquelas pessoas? Não só o que deveria funcionar porque é o que recebe o entendimento do “correto” dentro de uma norma social. Para além disso, o que cabe entre aqueles que estão envolvidos num relacionamento? É um tema crescente — diz Domiciano.

 

— O ciclo vital da família envolve várias etapas da passagem do tempo em que a família vai se modificando. Na contemporaneidade, temos observado uma série de mudanças nesse ciclo vital, casais que optam por não ter filhos, adultos que optam por não casar. O próprio aumento da expectativa de vida tem trazido mudanças. Além disso, as escolhas da parentalidade têm sido mais debatidas, principalmente para os millenials, entendendo que é possível se entender como adulto sem esse marcador. Por outro lado, dificuldades econômicas, tendências culturais e a possibilidade de adiar ou concretizar esse plano também influenciam.

 

Fonte: O Globo

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