Pets ganham status de membros familiares, refletindo-se em mercado bilionário. Proposta de dar sobrenome e certidão de nascimento aos animais levanta discussões legais sobre direitos de nomes, respaldados pelo Código Civil e lei 6.015/73
- Introdução
É notório que os animais de estimação ou os “pets” alcançaram um patamar dentro da sociedade impensável há alguns anos. Pouco a pouco eles saíram dos quintais e tomaram os sofás dos lares e atualmente têm para si lojas, roupas, alimentação num mercado que movimenta milhões por ano1. Logicamente os tutores dos animais de estimação dão-lhes nomes que vão dos mais variados, desde homenagens a artistas, bebidas, roupas como os de pessoas, por que cada vez mais são considerados “membros” da família e por essa razão querem dar-lhes o sobrenome e porque não uma certidão de nascimento?
- Breve relato acerca dos conceitos e reflexos diretos previstos em nosso ordenamento jurídico quanto ao nome de uma pessoa física
O Código Civil diz que toda pessoa (art. 1º.), tem direito ao nome e sobrenome (art. 16). A lei 6.015/73 traz a mesma previsão (arts. 54, 4º. e 55) e através da novel alteração introduzida pela lei 14.382/22, o prenome poderá ser alterado, uma vez, pela pessoa após atingida a maioridade civil. Tal legislação alterou outras disposições contidas na Lei 6.015/73 no que se refere ao nome, especificamente, quanto aos prazos, modificação também do sobrenome e tratou de impedir que o nome exponha a pessoa ao ridículo ou a situação vexatória (§ 1º, art. 55).
O nome/sobrenome, constitui um direito do ser humano e é um basilar elemento que alicerça os direitos da personalidade e do princípio da dignidade da pessoa humana, por estar ligado à própria identidade pessoal do indivíduo. Tanto assim que nossa Carta Magna traz já no seu art. 1º como fundamento, no inciso III – a dignidade da pessoa humana e o direito ao nome está umbilicalmente ligado a ela.
Noutro prisma, o nome e o sobrenome não apenas têm o fito de individualizar uma pessoa, mas de lhe trazer identidade pessoal, de proteger sua personalidade, além de estar relacionado com valores do espírito ontologicamente preservados. A questão é tão ampla e profícua que o nome social não é apenas um capricho, mas um direito daquele que se identifica com gênero diverso do seu e quer ser chamado por outro nome. Por fim, ele é tão importante que até mesmo pessoas jurídicas o enverga.
Teríamos vários outros aspectos para tratar sobre o nome, mas o mote desse breve estudo é atrelá-lo aos nossos animais de estimação.
- Os animais de estimação, os “pets” se enquadram nesses conceitos legais do nome/pessoa física tendo em vista a legislação vigente?
No Brasil, os animais são considerados coisas ou bens que possuem movimento próprio (semoventes), conforme diz o art. 82 do Código Civil – portanto, o tutor de um animal é proprietário de uma coisa. A legislação pátria possui normativos específicos para animais domésticos, silvestres, e ainda os criados com finalidade de fornecimento alimentar. E, embora o Código Civil classifique os animais como “coisa”, importante notarmos que o valor (leia-se sentimental) atribuído a eles tem mudado e isso foi visto pela previsão contida no art. 225, parágrafo 1º, inciso VII, da CF/88, cujo texto exprime a dignidade animal, proíbe a crueldade e acabou por embasar decisões do Supremo Tribunal Federal ao vetar as “rinhas de galo e cães”, “farra do boi2”, dentre outros, embora, como dito, no Código Civil eles ainda sejam considerados como “coisas”.
Aos animais de estimação “PETS”, portanto, não é possível a aplicação/enquadramento da legislação quanto aos direitos de uma pessoa, todavia, vê-se que há direitos previstos aos semoventes, principalmente para impedir-lhes o sofrimento.
E tal proteção fez nascer um projeto de lei para alterar o Código Civil e a lei 9.605/98 é o PL 6054/19; anterior PL 6799/13 – PL da Câmara 27/18 e retirar dos animais o status de “coisa”, pois, reconhecidamente eles têm sentimentos, são seres sencientes3 e devem ter abrigo legal amplo. De modo inclusivo, está em trâmite o PL 4.438/20 da Câmara dos Deputados, do deputado Fred Costa (Patriota, MG) para que os síndicos e administradores de condomínios residenciais sejam obrigados a comunicar à polícia civil e aos órgãos especializados a suspeita ou a ocorrência de maus tratos a animais nas unidades condominiais ou nas áreas comuns dos condomínios em até 24 horas do conhecimento do fato. O texto pretende alterar o art. 10 da lei 4.591/64 (conhecida como lei dos condomínios), incluindo os parágrafos 3º e 4º.
No entanto, o Estado de São Paulo tem legislação vigente nesse sentido (lei 17.744/21) que obriga aos condomínios residenciais e comerciais a denunciarem maus tratos a animais, assim como, a recente 17.640/23 que obriga veterinários a fazerem o mesmo. A ainda DEPA – Delegacias Especializadas em Proteção Animal – e os registros podem ser feitas pela internet.
Também no Estado de São Paulo, temos o RUT – Registro único de tutor (lei SP 11.977/05), no qual consta a identificação e a responsabilização dos tutores de cães e gatos e que está atrelado ao RGA – Registro Geral Animal.
Embora essa nova consciência expressada pela legislação represente um avanço para a civilização dar certidão de nascimento aos pets é possível, mas sem valor legal (jurídico). A certidão de nascimento aqui abordada é diferente das declarações dos canis ou criadores quanto à linhagem e características dos cães, conhecidos como “pedigree” e dos registros junto às prefeituras. Aqui queremos trazer à baila a reflexão acerca da possibilidade de os animais de estimação terem de fato (e de direito) uma certidão que lhes dê nome, sobrenome e o atrele a uma família humana. O conceito de família, como sabemos, também mudou e está mais amplo permitindo a família multiespécie4.
Por enquanto é possível apenas para registrar (guardar), mas sem ter valor legal/jurídico a outorgar-lhes direitos da personalidade (como o de receber herança, benefícios, ser autor/réu em demandas judiciais etc) e deverá ser procedido e sobre as regras dos cartórios de Registro de Títulos, Documentos e Pessoa Jurídica, os quais, lidam com bens móveis e direitos, pois, os cartórios de registro civil das pessoas naturais, obviamente destinam-se aos nascimentos de pessoas. Portanto, esse documento ou “certidão de nascimento pet”, poderá demonstrar a propriedade do semovente.
Os cartórios de títulos e documentos, os “RDT5” servem para preservar as características e garantir a autenticidade do conteúdo/data/ocorrência do documento, instrumento e título levado a registro. Também servem para o envio de notificações extrajudiciais e trazem segurança jurídica, guarda, conservação e publicidade, em alguns casos, com efeito erga omnes.
E eis o grande diferencial do “RDT”: possui dois tipos de registro em um: registro de títulos e documentos e de pessoas jurídicas.
Podemos afirmar sem receio de errar que no “RDT” registra-se o que os demais não registram. É o que chamamos de competência residual.
Rapidamente ele atua da seguinte maneira:
Registro facultativo previsto no art. 127-A, LRP + art. 2º. da Normativa Mínima do CNJ, tem por desiderato apenas a guarda e conservação do documento, mas não gera obrigação e não pode servir para a cobrança de dívidas, protesto, notificações e têm a publicidade restrita e sem efeitos a terceiros.
Registro de competência residual, disposto no art. 127, LRP e traz o rol dos documentos que podem ser registrados, mas não terão efeitos contra terceiros. O art. 127, parágrafo único, LRP traduz a residualidade do RTD, ou seja, os títulos que não tiverem um registro determinado (indicação da atribuição) poderão ir para o RTD. Aqui entra a CERTIDÃO DE NASCIMENTO DO PET!
E, por fim, conforme art. 129, LRP + art. 3º. da Normativa Mínima do CNJ há os documentos que deverão ser registrados no RTD para que tenham publicidade e efeitos “erga omnes”, além da CONSERVAÇÃO E GUARDA do seu conteúdo e de todos os dados que nele contém, tais como, carta de fiança, contratos de locação etc.
Então, animais de estimação poderão ter sua “certidão de nascimento” contendo seu nome, sobrenome, filiação humana, local e data de nascimento, cor, raça registrada no cartório de títulos e documentos, todavia, sem qualquer relevância no mundo jurídico, pelo menos não no Brasil.
Em alguns outros países, por sua vez, além da adoção de inúmeros métodos protetivos para os animais de estimação6-7-8-9 há aqueles que os posicionam como sujeitos de direitos. É dessa forma na Alemanha em que eles são seres sujeitos de direito já que o Código Civil Alemão, BGB, prevê, em seu § 90-A: “os animais não são coisas. Os animais são protegidos por leis especiais. Eles são regulados pelas regras relativas às coisas, com as necessárias modificações exceto se de outra maneira for previsto”.10 Nos EUA na maioria dos Estados, por testamento, eles podem receber herança11.
No Brasil, animais não podem ser beneficiários de herança, o que ser feito é deixar a herança, via testamento, para uma ONG especializada no cuidado de animais (vide inciso III do art. 1.799 do Código Civil) ou para pessoas de confiança do testador, com cláusulas específicas de cuidado para o animal de estimação, podendo ainda estabelecer uma outra entidade fiscalizadora da utilização dos recursos deixados com finalidade específica visando assim evitar desvios.
Um caso recente, o da gata Choupette que quase herdou R$ 460 milhões pela morte do seu tutor o estilista Karl Lagerfeld , retrata bem a diferença das legislações, pois, a morte do tutor deu-se na França onde as leis de sucessão são muito parecidas com as nossas e não permitem a transmissão, enquanto que se fosse na Alemanha a bichana seria herdeira.
- Conclusão
Cremos e pensamos relevante consignar que ter animais de estimação vai muito além de dar-lhes nomes, sobrenome, família multieséspecie e “certidão de nascimento”. Eles devem ter acesso à comida de qualidade, água fresca e limpa, ambiente higienizado e seguro. Precisam ser vacinados, vermifugados, terem local adequado para andar, recrear, dormir e para as suas necessidades. Logicamente, precisam de cuidados veterinários, de carinho e amor e tudo isso impacta nos bolsos de seus tutores.
Todavia, podemos analisar a questão da possibilidade de registo dos pets com certidão de nascimento como uma possibilidade de abertura de caminho para se chegar à aprovação da alteração do Código Civil para que eles sejam excluídos do conceito de “coisa”, servindo como uma reclamação da sociedade que quer dar os seus animais de estimação condição diversa da lei. E isso é tão premente que já vimos questões relacionadas à guarda, alimentos e visitas aos pets quando da separação de seus tutores, assim como, existe a discussão acerca da possibilidade de penhora de animais domésticos para pagamento de dívidas, como previsto no art. 837, II do CPC, já que pelo Código Civil os semoventes são “coisas”, comprovando a ambiguidade da nossa legislação que, de fato, precisa ser revista, mas com parcimônia até mesmo para impedir o ativismo judicial.
Recentemente um cachorro foi incluído como autor numa ação judicial12 e nos conduz a avaliar se os animais de estimação, ainda que possuidores de sentimentos, possam exercer diretamente direitos, como nós seres humanos podemos. Uma analogia com a inteligência artificial nos permite realizar nesse momento para nos levar à reflexão acerca de alguns exageros que as mudanças carregam consigo e o mal que podem nos causar como sociedade.
Cabe-nos, por enquanto deixar o alerta: a partir do momento que se traz um animal para casa, ele passa a ser de responsabilidade do seu tutor, que deve zelar não apenas por mantê-lo saudável e em ambiente seguro, mas também por qualquer dano que ele causar a outrem. Portanto, barulho excessivo, agressão e lesões físicas, o dono/tutor será responsabilizado, assim como pela saúde física e psicológica desse animal. Saiba que um animal, em média, vive cerca de 10 anos e depende exclusivamente do seu tutor para ter uma vida digna e feliz.
Uma curiosidade interessante: No Estado de São Paulo, temos os animais comunitários (gatos e cachorros que ficam em estacionamentos, comércios ou calçadas) e têm proteção legal, lei estadual 12.916/08 e são descritos como “aquele que estabelece, com a comunidade em que vive, laço de dependência e de afeto, embora não possua responsável único e definido”.
É bom que reflitamos, apesar da lei material, ANIMAL DE ESTIMAÇÃO NÃO É COISA, NEM BEM DE ESTIMA, TEM E SABE EXPRESSAR SENTIMENTOS, mas não é gente e tentar “humanizá-los” demais não é bom nem para eles e nem para nós. Amar, cuidar, proteger e respeitar é o bastante. É nesse sentido que caminha a legislação comparada e sentimos ser esse o anseio dos nossos cidadãos.
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1 “O Instituto Pet Brasil (IPB) divulgou o balanço de 2022, com base no desempenho do mercado pet até 31 de dezembro. O documento aponta que o faturamento do setor cresceu 16,4% em 2022, chegando aos R$ 60,2 bilhões.” Disponível em: https://caesegatos.com.br/marco-historico-varejo-pet-cresce-164-em-2022-e-fatura-r-602-bilhoes/
2 Antes do Código Civil, a primeira legislação a tratar do tema foi o Decreto nº 24.645, de 10/07/1934, que em seu artigo 3º. Conceituava os maus-tratos em seus 31 incisos. Após, a Lei 9.605/1998, de 12 de fevereiro de 1998, previu em seu artigo 32 que: “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal”.
Por fim, a novel Lei 14.064 de 24 de setembro de 2020 acrescentou mais um parágrafo ao artigo 32 da Lei 9.605 /98, e aumentou a pena “§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.”
3 Percebem pelos sentidos
4 “A família multiespécie é conceituada como aquela lastreada essencialmente na afetividade inerente na relação humano-animal, tendo em vista que modernamente os animais são considerados como seres sencientes, portanto, dotados dos mais variados sentimentos”. https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1566/Fam%C3%ADlia+multiesp%C3%A9cie:+an%C3%A1lise+da+(in)+viabilidade+de+tutelar+judicialmente+as+demandas+de+guarda,+regulamenta%C3%A7%C3%A3o+de+visitas+e+alimentos+para+os+animais+de+estima%C3%A7%C3%A3o+ap%C3%B3s+a+ruptura+do+v%C3%ADnculo+conjugal
5 Artigo 1º. Da Normativa mínima do CNJ elenca os princípios do RDTPJ: (i) segurança jurídica; (ii) legalidade; (iii) territorialidade; (iv) compatibilidade; (v) preponderância; (vi) finalidade; (v) confiança; (vi) boa-fé. Podemos incluir: conservação, autenticidade de data, valor probante do original, prioridade e competência residual.
6 Na Nova Zelândia não é permitido utilizar animais em qualquer espécie de pesquisa e testes científicos.
7 O art. 22 da Lei de proteção animal da Catalunha veda que animais de estimação fiquem sozinhos por mais de 24 horas.
8 Em Portugal, há decreto 276/2001, com atualização no mesmo sentido. Na União Europeia existe o passaporte europeu para animais de companhia ou o certificado sanitário do animal são os únicos requisitos para que os cães, gatos e furões atravessem as fronteiras da UE, REGULAMENTO (UE).
9 “Na França, o Code Civil foi alterado pela Lei n. 2015-177, de 16 de fevereiro de 2015, recebendo o novo artigo 515-14, que assim dispõe:
“Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime dos bens.” https://estadodedireito.com.br/posicoes-juridicas-titularizadas-por-animais-nao-humanos-parte-ii/
10 Disponível em: https://www.arpensp.org.br/noticia/85358#!
11 Nova York: Em Nova York, é possível criar um “Fundo de Cuidados para Animais” para garantir os cuidados do animal de estimação após a morte do proprietário.
Califórnia: A Califórnia permite a criação de um “Fundo de Cuidados para Animais” ou a nomeação de um cuidador e a alocação de recursos financeiros para garantir o bem-estar do animal.
Flórida: Na Flórida, é possível criar um “Fundo de Cuidados para Animais” ou nomear um cuidador por meio de um testamento ou confiar a um banco ou organização de caridade para garantir os cuidados adequados do animal.
Massachusetts: Em Massachusetts, é permitido criar um fundo de confiança para animais ou designar um cuidador para receber recursos financeiros e cuidar do animal. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/comparativo-entre-heranca-nos-estados-unidos-e-no-brasil-aspectos-diferencas-e-relevancia-da-reforma-tributaria-brasileira/1896261802
12 ” Na decisão, a juíza afirmou que “os animais, enquanto sujeitos de direitos subjetivos, são dotados da capacidade de ser parte em juízo (personalidade judiciária), cuja legitimidade decorre não apenas do direito natural como também do direito positivo estatal.” Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/394755/juiza-inclui-cao-tokinho-como-autor-em-processo-de-maus-tratos
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Disponível em: www.oz.mze.cz
Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2022/22/enacted
Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32013R0576#d1e32-21-2
Fonte: Migalhas
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