Desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 132, a chamada reforma tributária, muito se fala sobre a oportunidade de famílias dotadas de patrimônio relevante avaliarem medidas no sentido de organizar e adiantar ao menos em parte a sucessão. Isso se deve à inclusão de regra na Constituição impondo a progressividade para o imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD).

 

A preocupação é compreensível. Como muitos estados atualmente preveem alíquotas fixas (casos de São Paulo, com alíquota geral de 4%, e de Mato Grosso do Sul, com alíquotas fixas de 3% para doações e de 6% para heranças), prevê-se que eles irão se adaptar. Adotarão a progressividade, o que implicará alíquotas mais baixas para heranças e doações menores, mas ônus mais pesado nas transferências de patrimônio expressivo. Por exemplo, em São Paulo, o encargo tributário poderá duplicar, indo de 4% para 8% (nesse sentido, o Projeto de Lei nº 7/2024, em trâmite na Assembleia Legislativa).

 

Afora isso, vale recordar que o Senado é quem fixa as alíquotas máximas para o ITCMD. Há longo tempo vigora a Resolução nº 9, de 1992, que fixa a alíquota máxima em 8%. Todavia, há projeto de resolução em trâmite no Senado para aumentar a alíquota máxima para 16% (Projeto nº 57/2019).

 

O risco, então, em alguns casos (a depender do estado e do montante do patrimônio), é de saltar em pouco tempo de uma tributação de 4% para 16%. O planejamento com vistas a adiantar (ainda que parcialmente) a sucessão torna-se atraente.

 

Entretanto, existem variáveis e riscos que necessitam ser considerados. Não fazê-lo implica a chance real de arrependimento posterior.

 

Assim, nos casos de famílias cujo patrimônio é formado em parte relevante por imóveis, urbanos ou rurais, uma recomendação comum é constituir uma pessoa jurídica, transferindo a esta os imóveis. A pessoa jurídica teria uma função mista de congregar o patrimônio, ou seja, uma mera “holding” e ao mesmo tempo exercer atividade econômica, como imobiliária ou produção rural. Os genitores, então, doariam a seus futuros herdeiros ações/quotas dessa pessoa jurídica. O fariam ainda em vida, aplicando as alíquotas atuais do ITCMD.

 

Entretanto, convém não esquecer que os atos relativos a um tributo podem gerar consequências, muitas vezes desvantajosas, no campo de outro tributo.

 

Realmente, a transferência de imóveis para uma pessoa jurídica é uma alienação. Coloca-se, então, a questão do tratamento para fins do imposto sobre a renda, o IR. O risco é a transferência de bens para uma pessoa jurídica holding, a fim de evitar maior custo do ITCMD, levar a um ônus não previsto de IR, por apuração de ganho de capital, com alíquotas de 15% a 22,5%. Neste cenário, economia de um tributo pode acabar se mostrando desvantajosa.

 

 

IR pode ser evitado

 

É certo que a exigência do IR pode ser evitada. Isso porque a legislação federal permite que a integralização de capital de bens e direitos pode ser executada “(…) pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado” (artigo 23, caput, da Lei nº 9.249/1995).

 

A resposta rápida, então, pode ser de que não há razão para maiores preocupações: basta realizar a integralização pelo valor da declaração de bens, afastando o ônus do IR. Esta resposta, porém, além de rápida seria superficial.

 

Existem regras a respeito da tributação do ganho de capital pelo IR na transferência de imóveis que não devem ser ignoradas.

 

Primeiro, há a antiga Lei nº 7.713/1988. Ela fixa reduções na apuração do ganho de capital para imóveis adquiridos entre 1969 e 1988. Quanto mais antiga é a data de aquisição do imóvel, maior o percentual de redução do ganho de capital tributável. No mesmo sentido, mas com outra forma de diminuição, é o tratamento dado pela Lei nº 11.196/2005. Ela criou dois “fatores de redução” do ganho de capital apurado na alienação a qualquer título de bens imóveis realizada por pessoa física (artigo 40).

 

Não são reduções de pouca relevância. Elas podem ter grande impacto. Um exemplo: um imóvel, como uma fazenda, adquirido há 25 anos, em 1999, por R$ 20 milhões, em região que passou por intensa valorização e que hoje tem valor de mercado de R$ 100 milhões. Não fossem os fatores de redução, o ganho de capital seria de R$ 80 milhões e o IR devido seria de R$ 16,7 milhões. Com os fatores de redução, o ganho de capital é reduzido para R$ 22,7 milhões e o IR passa a ser de R$ 4,17 milhões. Ou seja, verifica-se uma diferença de R$ 12 milhões, cerca de um quarto do valor que seria devido.

 

Vistas estas regras, o ponto que não deve ser ignorado é que, na alienação do imóvel por valor histórico, constante na declaração de bens, estas reduções são, simplesmente, perdidas em uma futura tributação do ganho de capital. Primeiro, porque a transferência para a pessoa jurídica representaria nova aquisição — agora pela pessoa jurídica — e os benefícios dos fatores de redução, se fossem aplicáveis, passariam a ser contados a partir deste novo marco temporal.

 

Segundo, porque os fatores de redução da Lei nº 11.196/2005 são direcionados somente a pessoas físicas. Portanto, a integralização do imóvel a valor histórico acarreta a perda da potencial redução do ônus tributário. Bem se vê que a economia de hoje pode representar o pesado custo tributário no futuro (sendo o ganho de capital na pessoa jurídica tributado a 35%, sendo 25% de IRPJ e 9% de CSL).

 

Portanto, eis a primeira preocupação a ser considerada: a transferência de imóveis há muito adquiridos para uma pessoa jurídica (com ou sem a função de holding), para posterior transferência em doação de ações/quotas aos futuros herdeiros, para fins de escapar de potencial aumento do ITCMD, poderá ou ocasionar exigência substancial de IR por ganho de capital, ou, para afastar esse ônus do IR, perder futura relevante redução de tributação.

 

 

Cuidados com o ITBI

 

O cenário complexo, de verdadeiro “trade-off” (o conflito de escolha, em que um caminho soluciona um problema, mas acarreta outro), não se limita ao IR sobre ganho de capital. Há de se considerar também o ITBI, o imposto “intervivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis (artigo 156, II, da Constituição). Mais uma vez, é imperioso avaliar se os atos para evitar a maior exigência de ITCMD não levariam à criação de um ônus relativo ao ITBI. Logo, também imperioso conhecer as regras aplicáveis a este imposto.

 

A própria Constituição contém exceções que levam à não incidência do ITBI. Ela estatui que esse imposto “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” (artigo 156, § 2º, I, da Constituição).

 

Essa regra constitucional, inicialmente, levaria a pensar que o ITBI seria afastado quando a pessoa jurídica, cujo capital venha a ser integralizado, tenha por atividade preponderante outras atividades, por exemplo, a produção rural e não a compra e venda ou locação de imóveis. Entretanto, a partir do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal — STF do RE nº 796.376/SC — Tema 796 de repercussão geral, as prefeituras passaram a entender que a não incidência do ITBI se limitaria ao montante do capital integralizado. Deste modo, eventual integralização por valor histórico, inferior ao de mercado, permitiria a exigência do ITBI sobre a diferença entre o valor da integralização e o valor de mercado do imóvel [1].

 

A despeito de essa interpretação ser questionável, ela vem sendo aceita por diversos tribunais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 10014028820228260597 [2]), o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (RN-Cv: 10363190029035001 [3]), o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (APL: 08014716420218120004 [4]) e o Tribunal de Justiça de Goiás (50419228720218090093 [5]).

 

Com isso, mais uma vez, tem-se a escolha entre dois caminhos, ambos com suas vantagens e desvantagens:

 

  • a transferência de imóveis por valor histórico, o que afasta o custo do IR pelo ganho de capital, mas que renuncia ao benefício dos fatores de redução e que pode acarretar um custo de ITBI;
  • ou a transferência de imóveis por valor de mercado, o que acarreta o custo do IR pelo ganho de capital, possivelmente reduzido pela aplicação dos fatores de redução, mas afasta a exigência do ITBI.

 

Em nosso entender não existe uma melhor decisão válida para todos os casos. Cada situação concreta deve ser analisada, em suas peculiaridades, para avaliar a opção mais apropriada. Assim, por exemplo, pode fazer sentido uma pessoa mais idosa já transferir patrimônio, mas não ser o caso para alguém de idade não tão avançada, que ou renunciará a um benefício relevante de redução do IR pelo ganho de capital, ou terá que arcar com gastos relevantes com tributos, que a descapitalizará parcialmente de maneira imediata.

 

Outras circunstâncias particulares de cada caso deverão ser consideradas, como mudança de carga tributária com eventual mudança do exercício da atividade econômica de pessoa física para pessoa jurídica. O que não se deve é realizar transferências patrimoniais açodadamente, sem cuidadosa análise e reflexão, pois poderão levar a futuros lamentos.

 

[1] O acórdão desse mesmo julgamento do STF contém um “obiter dictum”, que afastaria a incidência ITBI na transmissão de imóveis a pessoa jurídica por incorporação mesmo se a atividade preponderante do adquirente for atividade imobiliária. Não pretendemos aprofundar este tema neste artigo.

 

[2] “Ação Anulatória de Lançamento Fiscal. ITBI. Integralização de bens imóveis ao capital social. Alegação de imunidade tributária, independentemente do valor pelo qual conferidos os bens à pessoa jurídica. Sentença que julgou improcedente a ação. Pretensão à reforma. Desacolhimento. Valor originário de aquisição, admitido para fins de declaração do IR, ou montante declarado para fins de integralização do capital social, que não correspondem ao valor venal do imóvel transmitido em condições normais de mercado, o qual é a base de cálculo do ITBI. Distinguishing do caso presente e aquele em que fixada a tese do Tema 1.113 do C. STJ. Tese firmada no Tema 796 de Repercussão Geral do STF. Incidência do ITBI sobre o excesso de integralização. Finalidade da imunidade constitucionalmente prevista que é a mobilização de bens imóveis para o desenvolvimento da atividade empresarial. Reconhecimento do direito à imunidade constitucional que deve ser limitado ao valor histórico atribuído aos bens imóveis para fins de integralização. Observância do procedimento estabelecido pelo art. 148 do CTN pela autoridade lançadora. Montante relativo ao excesso de integralização, considerado, no caso, o valor venal dos imóveis (valor atual de venda à vista em condições normais do mercado) menos o valor da integralização, que é a base de cálculo do ITBI. Sentença mantida. Recurso não provido.” ((TJ-SP – AC: 10014028820228260597 SP 1001402-88.2022.8.26.0597, data de julgamento).

 

[3] “APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – ITBI – INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL – IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 156, § 2º, INCISO I DA CR/88 – VALOR DO IMÓVEL QUE SUPERA O CAPITAL SUBSCRITO – INCIDÊNCIA DO ITBI SOBRE A DIFERENÇA – CABIMENTO – TEMA 796 DO STF – VALOR DO IMÓVEL ATRIBUÍDO PELO FISCO – SENTENÇA REFORMADA PARA DENEGAR A SEGURANÇA. 1. A imunidade do ITBI em relação à transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital encontra-se prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição da República. 2. O col. Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 796 da repercussão geral, fixou a tese de que ‘A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso Ido § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado’. 3 – Considerando que o valor do imóvel, conforme avaliação do Fisco Municipal, supera o valor utilizado para integralizar e incrementar o capital da sociedade impetrante, revela-se correta a incidência do ITBI sobre a diferença. 4 – Sentença reformada em remessa necessária para denegar a segurança.” (TJ-MG – Remessa Necessária-Cv: 10363190029035001, data de julgamento: 09/11/2021).

 

[4] “APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS (ITBI). INCORPORAÇÃO DE IMÓVEL RURAL PARA FINS DE INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA QUE NÃO ALCANÇA A AVALIAÇÃO DO BEM QUE EXCEDE O VALOR HISTÓRICO. INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA ARBITRAMENTO DO VALOR VENAL. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Consoante posição firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (Tema 1.113), o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, podendo a credibilidade da declaração ser afastada pelo Fisco mediante regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do Código Tributário Nacional). 2. No caso, comprovada que a contribuição, por parte da pessoa que pretende integralizar o capital social, atinge quantia superior ao montante subscrito no capital social da agropecuária impetrante, é de rigor reconhecer a incidência do imposto (ITBI) sobre o excedente integralizado (Tema 796, do Supremo Tribunal Federal). 3. Recurso Provido.” (TJ-MS – APL: 08014716420218120004, data de julgamento: 30/03/2022).

 

[5] “REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. ITBI. VALOR DO IMÓVEL SUPERIOR AO DO CAPITAL SOCIAL INTEGRALIZADO. TEMA 796/STF. APLICABILIDADE. TRIBUTAÇÃO DO EXCEDENTE. SENTENÇA REFORMADA. 1. A imunidade tributária do imposto de transmissão de bens imóveis intervivos em realização de capital, está prevista no art. 156, § 2º, II, da CF. 2. No caso, a impetrante pretende seja considerado o valor por ela atribuído ao bem, o qual equivale ao valor constante da Declaração de Imposto de Renda, que corresponde ao exato valor do capital social integralizado, contudo, a base de cálculo do ITBI é, por força de lei, o valor venal do bem ou direito transmitido (art. 38, CTN), existindo, portanto, uma diferença a ser tributada. 3. Não se afasta a aplicação do Tema 796/STF, pois todo excesso à integralização de capital social é, por definição, formação de capital de reserva, não estando o excesso acobertado pela regra da não incidência. 4. REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDAS E PROVIDAS. SEGURANÇA DENEGADA.” (TJ-GO 50419228720218090093, data de publicação: 11/02/2022).

 

 

Fonte: Conjur

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