1. A reprodução humana assistida

Com o avanço da ciência e das tecnologias, diversos problemas que afligiam o ser humano tiveram solução. Dentre esses problemas solucionados, pode ser citada a infertilidade, que impedia a reprodução humana. É nesse cenário que a reprodução humana assistida se mostra pertinente.

 

Assim, é preciso analisar os impactos jurídicos que essa inovação traz, especialmente quando o meio de reprodução é utilizado post mortem, ou seja, utiliza-se o material genético do genitor mesmo quando este não está mais vivo. Discute-se, então, se existem direitos sucessórios aplicáveis nesse caso e quais seriam, uma vez que o tema não possui regramento específico.

 

Maria Helena Diniz (2011, p.610) apresenta a reprodução humana assistida como os atos que objetivam unir os gametas feminino e masculino, seja por meio da inseminação in vitro ou in vivo.  De modo que a fecundação in vitro ocorre fora do corpo feminino, no processo em que se une o óvulo e o sêmen com a finalidade de implantá-lo no corpo da mulher. Já a reprodução in vivo ocorre diretamente no corpo da mulher, em que é implantado o sêmen.

 

1.1. A reprodução humana assistida heteróloga e homóloga

Sales (2023) explica que a inseminação heteróloga é aquela realizada “com material genético doado por terceiro, isto é, o material biológico (óvulo ou sêmen) não pertence ao casal, ocorrendo a substituição do material do genitor ou da genitora, ou, até mesmo, de ambos”.

 

Nesse cenário, conforme preceitua o Enunciado nº 104, da I Jornada de Direito Civil, o ato sexual é substituído pela vontade juridicamente qualificada. Ao passo que na reprodução artificial homóloga ocorre a “utilização dos gametas sexuais masculino e feminino provenientes de um casal, casado ou que vive em união estável, que assumirá a paternidade e a maternidade da criança assim gerada, em que pese esta não tenha sido concebida a partir de uma relação sexual” (Fernandes, 2000 apud in Rocha, 2018).

 

Dias (2021, p.225) leciona no sentido de que na fecundação artificial heteróloga há consenso entre o casal no procedimento reprodutivo adotado e que o sêmen utilizado será de terceiro. Desta forma, o fornecedor do material genético não possui vínculo com a paternidade, até mesmo porque o doador deve manter em sigilo sua identidade.

 

1.2. Do consentimento prévio para a realização do procedimento post mortem

Bueno (2021) aponta que ao se tratar de reprodução artificial heteróloga, “se exige a prévia autorização do companheiro, segundo o inciso V do artigo 1597, do Código Civil, para que a sua paternidade seja presumida”.

 

Por outro lado, na reprodução artificial homóloga quando o marido ainda está vivo, Maria Berenice Dias (2021, p. 223) afirma que na não há necessidade de autorização do marido, certo que o filho gerado é dele e ele que assume todos os encargos decorrentes do poder familiar. No entanto, a própria autora observa que na reprodução homóloga post mortem é obrigatório que haja autorização escrita do marido para que seu material genético seja aproveitado após sua morte.

 

Portanto, na técnica de inseminação artificial heteróloga é necessário o consentimento prévio para que o procedimento ocorra, pois o material genético utilizado não é somente do casal e o cônjuge precisa consentir para que ocorra a presunção de paternidade quanto ao filho que será gerado. Não obstante, na técnica de inseminação artificial homóloga é dispensável o consentimento decorrente do fato do material genético utilizado ser do próprio casal. Todavia, a doutrina aponta que se a inseminação homóloga for feita post mortem, é obrigatório que exista autorização escrita para que o material genético seja utilizado, baseado na impossibilidade de presumir que alguém que já faleceu, queira constituir família.

 

  1. Do impacto no direito sucessório

O Direito Sucessório é o ramo do Direito que se ocupa dos bens deixados pelo de cujus. Conforme o artigo 1.784, do Código Civil, a transmissão dos bens ocorre com a abertura da sucessão, de tal modo que os herdeiros passam automaticamente a serem coproprietários e copossuidores do patrimônio do morto.

 

Desta forma, é necessário avaliar se há possibilidade ou impossibilidade de aplicação de direitos a este filho que nasce após a morte do genitor. Para tecer tal consideração, é importante a análise dos princípios constitucionais relacionados ao tema.

 

O princípio da igualdade entre os filhos está previsto pelo artigo 227, da Constituição: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Portanto, não há mais distinção entre os filhos havidos durante o casamento e os filhos havidos antes ou depois. Não havendo diferenciação entre os filhos, todos têm os mesmos direitos e, assim, os filhos nascidos da fecundação artificial homóloga post mortem não poderiam ser excluídos.

 

Ainda há os princípios do livre planejamento familiar e da paternidade responsável, ambos também previsto no artigo 227, da Constituição. O princípio do livre planejamento familiar implica dizer que é decisão do casal o modo que a família ser formada, não comportando nenhuma vedação. Portanto, é possível dizer este princípio abarca os métodos de reprodução assistida. Já o princípio da paternidade responsável é entendido como aquele em “que compete a ambos os cônjuges de sustentar, educar e guardar os filhos. Nesta mesma linha, o artigo 1.634 do Código Civil, esclarece que é responsabilidade de ambos os genitores o absoluto exercício do poder familiar, independentemente da situação conjugal” (Sales, 2022).

 

Os dois princípios se relacionam, certo que os pais tem a obrigação de tratar todos os filhos de modo igualitário e prover, por exemplo, assistência afetiva, educacional, patrimonial e material aos filhos.

 

Compreendido a aplicação constitucional, é preciso entender os efeitos jurídicos da sucessão homóloga post mortem. Neste sentido, há duas correntes principais, nas quais é demonstrado a possibilidade desse filho ser titular de direito sucessório e, por outro lado, há mais uma corrente que afirma não haver direito a ser atribuído.

 

2.1. Da possibilidade de reconhecimento do direito sucessório

Paulo Lôbo (2016, p.107-108) entende que para suceder nas hipóteses do artigo 1.597 do Código Civil é imprescindível que o filho já esteja concebido. O autor ainda segue explicando que qualquer lacuna deverá ser preenchida por meio da menção expressa em testamento, pois restará representada a última vontade do de cujus.

 

O artigo 1.798 do Código Civil indica que as pessoas nascidas ou concebidas no momento da abertura da sucessão poderão suceder. No mesmo modo, o artigo 1.799 apresenta três outras possibilidades para que ocorra a sucessão testamentária:

 

“Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

 

I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;

 

II – as pessoas jurídicas;

 

III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.”

 

Assim, o inciso I configura exceção, pois permite aos filhos não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, e vivas ao abrir-se a sucessão, possam receber a herança. Ressalta-se que a própria legislação previu termo para que a condição se concretizasse, no prazo de dois anos (artigo 1.800, parágrafo quarto, do Código Civil).

 

No entanto, os autores Farias, Rosenvald e Nett (2020, p. 1.386) adiantam que a maior parte da doutrina rejeita esta possibilidade, já que o próprio Código Civil deixa expresso que a prole eventual será composta por pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas no momento que a sucessão é aberta. Ocorre que o embrião neste caso não configuraria pessoa viva e nem pessoa a nascer.

 

Já a segunda corrente aponta para a possibilidade do reconhecimento de direitos sucessórios através do reconhecimento da legítima e de princípios constitucionais.

 

A sucessão legítima é a forma de sucessão que se opera por força de lei e que ocorre em caso de inexistência, invalidade ou caducidade de testamento e, também, em relação aos bens nele não estão compreendidos (Gonçalves, 2017, p. 169). Assim, a legítima se refere aos 50% do patrimônio do de cujus que deve ser reservada para os herdeiros necessários, não sendo possível o autor da herança dispor desses bens por mero ato de vontade. Os herdeiros necessários são compostos pelos descendentes, ascendentes e o cônjuge.

 

A obra de Caio Mário da Silva Pereira (2017, p.86) aponta que é possível “reconhecer a legitimação sucessória, a regra constitucional da absoluta igualdade entre filhos, independentemente da existência de qualquer outra norma infraconstitucional” para que esses filhos sejam considerados herdeiros.

 

Maria Berenice Dias (2019, p. 176) reafirma este entendimento, já que “a norma constitucional que consagra a igualdade da filiação não traz qualquer exceção. Assim, presume-se a paternidade do filho biológico concebido depois do falecimento de um dos genitores. Ao nascer, ocupa a classe dos herdeiros necessários”.

 

No que diz respeito ao prazo para que ocorra a implantação, Maria Berenice Dias (2021, p.225) apoia-se no prazo estabelecido pela prole eventual.

 

Para requerer o direito a herança, uma vez que nascerão posteriormente a abertura da sucessão, estes herdeiros utilizarão a petição de herança. Sales (2022) afirma:

 

“Diante da ausência de pacificação doutrinária e jurisprudencial, pode o filho concebido após a morte do seu genitor ingressar judicialmente, por meio de uma petição de herança, buscando sua parte no quinhão hereditário deixado pelo falecido, pois o Código Civil de 2002 reconhece, em seu artigo 1.597, inciso III, a paternidade do filho concebido por inseminação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, e tendo em vista que o prazo prescricional de tal ação é de 10 anos, conforme dispõe o artigo 205 do Código Civil de 2002” (SALES, 2022).

 

2.1. Da impossibilidade de reconhecimento do direito sucessório

Esta corrente é também chamada de restritiva, pois mesmo que ocorra a inseminação artificial post mortem, não será válido o consentimento previamente concebido pelo de cujus, certo que com a morte do genitor revogaria a autorização, não sendo cabível a este filho os direitos sucessórios (SALES, 2022).

 

Rocha (2018, p.137) pontua que a concepção se dá com a fixação do embrião na parede do útero e “os espermatozoides e o óvulo antes de sua fusão ou implantação são, portanto, considerados meros concepturos, aqueles que ainda não foram concebidos, embora haja a esperança de que venham a sê-los, pois podem ter sido idealmente colhidos para uma fusão futura”.

 

Neste caso, se observada apenas a fecundação na clínica, não haveria concepção, pois o embrião não ocuparia a posição de nascituro. No mesmo modo, o filho que não se encontraria concebido no momento da abertura da sucessão e, por conseguinte, não seria possível atribuir ao filho do falecido direito hereditário.

 

Outro ponto que apoia a impossibilidade está relacionado à insegurança jurídica. Apontam Gagliano; Pamplona (2019, p.149) que “o prazo para a implantação geraria o grave inconveniente de prejudicar por meses ou anos o desfecho do procedimento de inventário ou arrolamento, em detrimento do direito dos demais herdeiros legítimos ou testamentários”.

 

Deste modo, a impossibilidade se justifica pela tentativa de preservar os direitos dos sucessores vivos e garantir que estes não fiquem aguardando o nascimento de filho incerto para concretizar a partilha dos bens.

 

  1. Considerações finais

Conforme analisado, é pacificado a necessidade do cônjuge deixar declaração formal e assinada, confirmando a vontade de ser pai, mesmo após o falecimento. Diante desta afirmação, surge a discussão da possibilidade ou impossibilidade desses filhos gerados por reprodução artificial post mortem possuírem direitos sucessórios.

 

Há três principais correntes sobre o tema: duas estabelecem a possibilidade e a terceira aponta para a impossibilidade. A primeira corrente aponta que há possibilidade do direito ser aplicado, entretanto, depende de testamento. Já a segunda corrente favorável baseia-se nos princípios constitucionais, de tal modo que é direito de cada família escolher os meios de reprodução e que os filhos não podem ter direitos diferentes por nascerem em momentos diferentes.

 

Para ambas as correntes, o problema temporal seria solucionado pela utilização análoga do prazo de dois anos utilizado na prole eventual. Passado este prazo, o filho seria reconhecido como tal, mas não poderia ser considerado herdeiro.

 

Por outro lado, a terceira corrente considera a situação existencial do filho, ou seja, de acordo com o Código Civil, somente poderiam suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Neste caso, a impossibilidade está atrelada ao 1.798 do Código Civil, pois o filho ainda seria concebido.

 

Portanto, não se pode negar a necessidade de uma legislação específica sobre o tema, pois a discussão é, em grande parte, doutrinária. Assim, os magistrados julgam com base em analogias e por normas advindas de outras áreas, como as normas dos Conselhos de Medicina. O que se espera é que sejam observados os direitos e que em breve exista regulamentação sobre o tema.

 

 

Fonte: Conjur

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