Em continuidade à nossa série de artigos comentando as propostas de reforma do Código Civil, desta vez destacamos a inclusão da filiação decorrente de reprodução assistida. Exploraremos os aspectos legais e práticos dessas mudanças e como elas poderão influenciar a atividade notarial e registral. A regulamentação da reprodução assistida, anteriormente sob a responsabilidade do Conselho Federal de Medicina1, com a proposta de reforma, passou também a ser disciplinada pelo Código Civil. Além disso, foram integradas as diretrizes do CNJ referentes ao registro de filhos concebidos por meio dessas técnicas.

 

A RHA – reprodução humana assistida é uma técnica médica que permite a concepção de um filho com o auxílio de intervenções tecnológicas. Essas práticas têm sido cada vez mais utilizadas, levantando questões jurídicas e éticas importantes sobre os direitos dos envolvidos. No Brasil, a regulamentação dessas técnicas é abrangente, buscando garantir a igualdade de direitos e a segurança de todos os participantes no processo reprodutivo.

 

O Código Civil de 2002 explora as técnicas de reprodução assistida como critério para determinação da incidência da presunção pater is de paternidade, nos incisos III a V do art. 1.597.

 

O inciso III do art. 1.597 do Código Civil de 2002 estabelece que os filhos concebidos por fertilização artificial homóloga – utilizando material genético do casal-, são reconhecidos como filhos legítimos, ainda que o marido tenha falecido. Esse método garante a origem do material genético, pois todo o processo é supervisionado por profissionais, ao contrário da reprodução natural. Portanto, presume-se que a criança é filha de ambos os cônjuges quando se utilizam essas técnicas com seu próprio material genético.

 

Essa presunção de paternidade não é invalidada pela morte do marido, desde que se trate de seu material genético. Embora o Código Civil não exija explicitamente, é necessária a autorização do marido para o uso de seu material genético na inseminação artificial, mesmo após seu falecimento.2

 

Com o objetivo de preencher o vácuo normativo acerca da reprodução assistida, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o provimento 52, de 14/5/16, posteriormente revogado pelo provimento 63, de 14/8/17. Referido provimento especifica os documentos necessários para o registro de crianças nascidas por reprodução assistida, esclarecendo os requisitos para a autorização mencionada. Ressalte-se que com a edição do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), o provimento 63 foi incorporado pelo provimento 149/23, que passou a regular a matéria nos arts. 512 a 515.

 

O provimento 63/17, incorporado pelo provimento 149/23, modificou os requisitos do anterior, permitindo que a autorização prévia do falecido seja materializada tanto por escritura pública quanto particular, desde que com firma reconhecida. Dessa forma, em casos de reprodução assistida post mortem, para que o nome do falecido conste no registro de nascimento, é necessário apresentar um termo de autorização prévia específica, elaborado por instrumento público ou particular com firma reconhecida. Essa orientação está alinhada com as normas do Conselho Federal de Medicina, que exigem que os pacientes interessados na criopreservação de seu material genético expressem, por escrito, a sua vontade quanto ao destino desses materiais em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento.3

 

Em relação à doação voluntária de gametas, o provimento 63/17, incorporado pelo provimento 149/23, proíbe a identificação do doador no registro de nascimento de crianças geradas por reprodução assistida, visando preservar o anonimato do doador, conforme as diretrizes do Conselho Federal de Medicina. Isso impede que os receptores e doadores conheçam suas identidades, exceto em casos de doação para parentes de até 4º grau, desde que não haja consanguinidade.4

 

O inciso IV do art. 1.597 do Código Civil de 2002 presume a filiação de embriões excedentários concebidos artificialmente durante o casamento. Isso se aplica à concepção in vitro, onde embriões excedentários são criados e armazenados. A lei de biossegurança (lei 11.105/05) regula a destinação desses embriões não utilizados. A presunção de paternidade se aplica se os embriões forem implantados posteriormente, pois o material genético é do casal. Ressalte-se que “da mesma forma que se exige a autorização do marido para a inseminação artificial post mortem com seu sêmen, exige-se sua autorização para implantação post mortem do embrião formado pelo seu material genético”.5

 

Por sua vez, o inciso V do art. 1.597 do Código Civil de 2002 aborda a fecundação heteróloga, na qual o material genético não pertence aos pais. Mesmo sem vínculo genético, a paternidade é presumida com base na autorização prévia dos cônjuges para o uso de material genético de terceiros. Com a revogação do provimento 52/16, essa autorização não precisa ser pública, bastando um documento particular assinado pelos participantes, conforme dispõe o item 4, Cap. I, da resolução CFM 2.320/22.

 

A presunção de paternidade na fertilização heteróloga baseia-se na intenção procriacional, não no vínculo genético. Isso também se aplica à gestação por substituição, onde a mãe registral pode não ser a mãe biológica. A intenção de ter filhos é o que estabelece a filiação, não os vínculos biológicos ou de parto. Dessa forma, o registro civil não incluirá o nome da parturiente na DNV – Declaração de Nascido Vivo, sendo necessário um termo de compromisso da doadora temporária do útero.6

 

Embora a filiação civil prevaleça sobre a biológica nesses casos, isso não implica uma superioridade abstrata da filiação civil. A exclusão da filiação biológica se deve ao consentimento dos doadores e da “barriga solidária”, que renunciam ao vínculo parental, permitindo que este seja estabelecido com os beneficiários do procedimento. Conforme dispõe Kümpel e Ferrari: “a filiação socioafetiva pressupõe o comportamento reiterado dos envolvidos, que têm o condão de criar uma situação filiatória aparente (posse do estado de filho) ao longo do tempo. Sendo assim, a filiação decorrente de reprodução assistida não pode ser considerada propriamente uma filiação socioafetiva, já que não decorre de um fato sociojurídico protraído no tempo, mas de um conjunto de manifestações de vontade antecedentes ao próprio nascimento da criança”.7

 

Como proposta de reforma ao Código Civil, revogam-se os incisos do artigo 1.597 e acrescenta-se o Capítulo V intitulado “Da filiação decorrente de reprodução assistida”, que inclui os arts. 1.629-A a 1.629-V.

 

O art. 1.629-A estabelece que a reprodução humana assistida deve utilizar técnicas médicas cientificamente aceitas, que interferem diretamente no ato reprodutivo para viabilizar a fecundação e a gravidez. Esta norma busca assegurar que os procedimentos utilizados sejam seguros e eficazes, baseando-se em evidências científicas consolidadas. Conforme o art. 1.629-B, todas as pessoas nascidas por meio de técnicas de reprodução assistida têm os mesmos direitos e deveres daqueles concebidos naturalmente. Qualquer forma de discriminação é vedada, com exceção das disposições específicas do art. 1.798.8 Isso reforça o princípio da igualdade, assegurando que a origem do nascimento não interfira nos direitos fundamentais dos indivíduos.

 

Visando garantir a autonomia dos indivíduos em decidir sobre sua própria capacidade reprodutiva, o art. 1.629-C estabelece que qualquer pessoa maior de dezoito anos pode se submeter ao tratamento de reprodução assistida, desde que seja capaz de manifestar sua vontade de forma livre e inequívoca.

 

Quanto às limitações com o objetivo prevenir abusos e garantir que as técnicas reprodutivas sejam usadas de maneira ética e responsável, o art. 1.629-D impõe várias restrições ao uso, proibindo:

 

    • A fecundação de óvulos humanos para finalidades distintas da procriação;
    • A criação de seres humanos geneticamente modificados;
    • A criação de embriões para investigação científica;
    • A escolha de sexo, eugenia ou criação de híbridos ou quimeras;
    • Qualquer intervenção sobre o genoma humano para modificações, exceto para terapias gênicas relacionadas ao tratamento de doenças graves.

Por sua vez, a “Seção II” aborda as regras para a doação de gametas, permitindo a doação pura e simples, mas proibindo sua comercialização (art. 1.629-F). Os doadores devem ter mais de dezoito anos e manifestar sua vontade por escrito (art. 1.629-G). A escolha dos doadores é responsabilidade do médico, que deve garantir a maior semelhança fenotípica e compatibilidade com os receptores (art. 1.629-H).

 

Todos os dados relacionados a doadores e receptores devem ser tratados com o mais estrito sigilo, não podendo ser divulgadas informações que permitam a identificação das partes envolvidas (art. 1.629-I). O objetivo é manter o anonimato do doador ou da doadora, conforme as diretrizes do CFM a, que proíbem a divulgação da identidade dos doadores para os receptores e vice-versa. Essas diretrizes estabelecem a confidencialidade sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, assim como dos receptores, exceto nos casos de doação de gametas para parentes de até 4º grau de um dos receptores, desde que não haja consanguinidade, conforme já analisado.

 

Ressalte-se que é garantido o sigilo ao doador de gametas, mas permite-se que a pessoa nascida através de reprodução assistida conheça sua origem biológica mediante autorização judicial, se necessário para preservar sua saúde física ou psicológica (art. 1.629-K). Busca-se equilibrar o direito à privacidade do doador com o direito à informação do nascido.

 

Além disso, as clínicas são obrigadas a informar ao Sistema Nacional de Produção de Embriões sobre os nascimentos resultantes de reprodução assistida, garantindo um controle e rastreamento adequado pelos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais, em razão de verificação de impedimentos em procedimento pré-nupcial para o casamento (art. 1.629-J), isto é, se o casal é composto, por exemplo, por pais e filhos ou avós e netos.

 

No que toca à cessão temporária de útero (barriga solidária), é permitida apenas em casos em que a gestação não é possível por causas naturais ou contraindicações médicas (art. 1.629-L). A cessão não pode ter finalidade lucrativa e deve, preferencialmente, envolver uma cedente com vínculo de parentesco com os autores do projeto parental (art. 1.629-M e 1.629-N). Tal cessão deve ser formalizada em documento escrito antes do início dos procedimentos médicos, detalhando a atribuição do vínculo de filiação (art. 1.629-O). O registro de nascimento será feito em nome dos autores do projeto parental, e as informações sobre a gestação não serão publicizadas (art. 1.629-P). Nesse sentido, dispõe o §1º do art. 513 do provimento 149/23 (CNN/ CN/CNJ-Extra): “Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.”

 

O registro de nascimento de crianças geradas por reprodução assistida será feito no Livro A, sem precisar de autorização judicial prévia, conforme a legislação vigente e com a presença de ambos os pais e a documentação necessária. Caso os pais sejam casados ou em união estável, um deles pode realizar o registro sozinho, desde que apresente a documentação exigida. Para filhos de casais homoafetivos, o registro deve incluir os nomes dos ascendentes sem diferenciar entre pais e mães.9 Destaque-se que para o registro e emissão da certidão de nascimento, é necessário apresentar os seguintes documentos:

 

    • Declaração de Nascido Vivo – DNV;
    • Declaração com firma reconhecida do diretor técnico da clínica onde foi realizada a reprodução assistida heteróloga, indicando os beneficiários;
    • Certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença reconhecendo a união estável do casal.10

Por sua vez, o art. 1.629-Q permite o uso de material genético de pessoas falecidas, desde que haja autorização expressa em documento escrito, indicando o destino do material e a pessoa que deverá gestar.11 A filiação post mortem estabelece os mesmos direitos jurídicos de uma relação paterno-filial.

 

O consentimento informado é essencial para a realização de procedimentos de reprodução assistida. Todos os envolvidos devem assinar o termo de consentimento após receberem todas as informações necessárias (art. 1.629-S e 1.629-T). Se os pacientes forem casados ou estiverem em união estável, é necessária a concordância expressa do cônjuge ou convivente (art. 1.629-U).

 

O termo de consentimento deve especificar o destino do material genético criopreservado em caso de rompimento da relação conjugal, doença grave ou falecimento dos envolvidos, bem como em caso de desistência do tratamento (art. 1.629-V). Os embriões criopreservados podem ser destinados à pesquisa ou para outras pessoas necessitando de material genético, mas não podem ser descartados.

 

Note-se, após a análise dos referidos artigos, que uma das possibilidades de inseminação não foi considerada na proposta de reforma do Código Civil: A auto-inseminação, também conhecida como reprodução caseira. Este procedimento deveria ser realizado com a supervisão do Oficial do Registro Civil, que teria a função de ouvir as partes envolvidas e obter a manifestação do ministério Público. Assim, é recomendável que todas as partes envolvidas assinem um acordo de consentimento informado, detalhando as intenções e responsabilidades relacionadas ao procedimento.12

 

A auto-inseminação, também conhecida como inseminação caseira, é um procedimento em que a pessoa ou o casal realiza a inseminação artificial fora de um ambiente clínico. Este método pode ser escolhido por diversas razões, incluindo custo, privacidade e conveniência. No entanto, a prática suscita questões importantes de ordem médica, legal e ética. Tal procedimento envolve a introdução de esperma no trato reprodutivo feminino sem a assistência de profissionais médicos. O esperma pode ser obtido de um banco de esperma, doado por um amigo ou parceiro, ou do próprio cônjuge, no caso de casais heterossexuais.

 

No Brasil, a auto-inseminação não é regulamentada de maneira específica, de forma que algumas questões legais podem surgir, especialmente no que diz respeito à doação de esperma e aos direitos de paternidade. A ausência de um quadro legal claro pode complicar a determinação de paternidade e os direitos de filiação. Em casos de doação de esperma informal, sem a intermediação de um banco de esperma ou instituição reconhecida, pode haver disputas sobre direitos e responsabilidades parentais.

 

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1 Quanto aos aspectos éticos e bioéticos da atuação médica, a prática está regulamentada pela Resolução 2.320/22, do Conselho Federal de Medicina e quanto aos aspectos registrais do assento de nascimento, pela Seção III, do Provimento 63/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, atualmente incorporado no Provimento nº 149/2023 (CNN/ CN/CNJ-Extra).

 

2 VIII -Reprodução Assistida Post Mortem. Resolução CFM nº 2.320/2022. É permitida a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização específica para o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente. Dispõe o artigo 513, §2º do Provimento nº 149/2023: § 2.º Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.

 

3 Resolução CFM nº 2.320/2022 – V – Criopreservação de Gametas ou Embriões (…) 3. Antes da geração dos embriões, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino dos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los.

 

4 Cap. IV, itens 2 e 4 da Resolução CFM nº 2.320/2022.

 

5 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais, vol. 2, São Paulo, YK Editora, 2022.

 

6 Art. 513, §1º do Provimento nº 149/2023.

 

7 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial cit. nota 5 supra. P. 543

 

8 Art. 1.798 – proposta de reforma ao Código Civil -: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão, bem como os filhos do autor da herança gerados por técnica de reprodução humana assistida post mortem, nos termos e nas condições previstos nos parágrafos seguintes. § 1º Aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até cinco anos a contar dessa data, é reconhecido direito sucessório. § 2º O direito à sucessão legítima dos filhos concebidos ou gerados por técnica de reprodução humana assistida, concluída após a morte, quer seja por meio do uso de gameta de pessoa falecida ou por transferência embrionária em genitor supérstite ou, ainda, por meio de gestação por substituição, depende da autorização expressa e inequívoca do autor da herança para o uso de seu material criopreservado, dada por escritura pública ou por testamento público, observado o disposto nos arts. 1.629-B e 1.629-Q. § 3º A autorização de que trata o §2º é revogável a qualquer tempo. § 4º O juiz poderá nomear curador ao concepturo em caso de ausência de genitor supérstite ou conflito de interesses com o inventariante ou com os demais herdeiros, para resguardar os interesses sucessórios do futuro herdeiro, até o seu nascimento com vida. § 5º O curador ou o genitor sobrevivente podem requerer a reserva do quinhão hereditário pelo período a que se refere o § 1º. § 6º O limite temporal do § 1º deste artigo não repercute nos vínculos de filiação e de parentesco.”

 

9 Art. 512, §§ 1º e 2º do Provimento nº 149/2023.

 

10 Art. 513 do Provimento nº 149/2023.

 

11 Art. 513, §2º do Provimento nº 149/2023: Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.

 

12 Conforme dispõe Maria Berenice Dias: “(…) No entanto, uma das hipóteses de inseminação foi ignorada: a chamada auto inseminação ou reprodução caseira.  Só que esta é uma prática recorrente. Quer em face dos elevados custos dos procedimentos nas clínicas de reprodução assistida; quer porque o projeto parental envolve mais pessoas e, muitas vezes, é desejo de todos assumirem a parentalidade.” (Projeto do Código Civil: avanços, retrocessos e omissões, 08/04/2024, in https://berenicedias.com.br/projeto-do-codigo-civil-avancos-retrocessos-e-omissoes/ [27/06/2024])

 

Fonte: Migalhas

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