Certamente um dos temas mais polêmicos e disputados, dentro da reforma do Código Civil, com amplo interesse popular e intensa cobertura midiática, foi a revisão e a atualização da natureza jurídica dos animais e dos temas que lhe são derivados.
A natureza jurídica dos animais na Parte Geral do Código Civil
Como se sabe, a Parte Geral do Código Civil não define a natureza jurídica dos animais. A qualificação tradicional dos animais como bens semoventes é decorrente da interpretação dada, sobretudo, ao atual art. 82, considerando que os animais são “suscetíveis de movimento próprio”, “sem alteração da substância ou da destinação econômica-social”.
A primeira proposta de reforma, contida no relatório da Subcomissão da Parte Geral, criando um art. 82-A no Código Civil, causou, de fato, uma tremenda preocupação, dado que qualificava os animais como “objetos de direito”. Essa mesma qualificação novamente constou do relatório final (de 26/2), com a diferença que deslocava o dispositivo para o art. 91-A, ainda no livro dos bens.
Essa preocupação transcendeu os trabalhos da Comissão e gerou uma reação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que emitiu nota técnica contrária a essa qualificação dos animais como objetos de direito, por entendê-la como retrocesso em termos de proteção do meio ambiente e dos animais.
Os embates em torno dessa qualificação surtiram efeito, de modo que, nas sucessivas redações do artigo apresentadas pela relatoria geral, a expressão “objetos de direito” foi suprimida do proposto art. 91-A.
O art. 91-A, aprovado pela Comissão e constante do anteprojeto de reforma do Código Civil, é o seguinte:
“Seção VI Dos Animais
Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
- 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.
- 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.”
Parece um pouco mais do que evidente que o caput do art. 91-A é um avanço em termos de natureza jurídica dos animais: não são qualificados como coisas, nem como bens, mas pelo que efetivamente são, ou seja, seres vivos sencientes, tal qual se extrai na interpretação do inciso VII, parágrafo primeiro, do art. 225 da Constituição.
A precisa e exata qualificação jurídica dos animais foi delegada à lei especial (§ 1º), a qual, no entanto, precisará respeitar dois vetores fundamentais: (1) deverá dispor sobre um tratamento físico e ético adequado aos animais; (2) deverá respeitar a natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes, por isso passíveis de proteção jurídica especial.
É possível crer que a construção da lei especial para proteger juridicamente os animais deverá ser fatiada, ou seja, várias leis especiais deverão ser aprovadas para constituir um estatuto dos animais, dada a diversidade de características entre as espécies de animais e os diferentes graus de dependência e vulnerabilidade em relação aos seres humanos, sobretudo entre animais domésticos e silvestres, o que poderia gerar dificuldades para a aprovação de um único estatuto geral dos animais.
Mas, o texto aprovado embute um perigo: a adoção do regime subsidiário de bens aos animais, enquanto não vier a lei especial exigida para a sua definitiva qualificação jurídica (§ 2º).
Não obstante esse perigo de manter os animais no passado, ainda qualificados como bens, é de se notar que a aplicação desse regime subsidiário de bens é atenuada ou mitigada, pois apenas serão aplicáveis aos animais as disposições sobre bens, que não forem incompatíveis com a sua natureza especial de seres vivos sencientes.
Isso quer dizer que, mesmo com esse regime patrimonial transitório, não se descarta a possibilidade de se atribuírem direitos a animais, pois isso está de acordo com a sua natureza especial de seres vivos sencientes e dotados de dignidade própria, como quer a Constituição,
Mais do que isso, esse regime subsidiário de bens, por ser aplicado de forma mitigada aos animais, de maneira a respeitar o estatuto da senciência, não perturba as leis estaduais mais avançadas, as quais já definem animais como sujeitos de direitos ou atribuem aos direitos determinados direitos fundamentais (Santa Catarina, 2018; Paraíba, 2018; Espírito Santo, 2019; Rio Grande do Sul, 2020; Minas Gerais, 2020; Roraima, 2022; Pernambuco, 2022; Goiás, 2023; Amazonas, 2023 e Distrito Federal, 2024).
De qualquer forma, o Congresso Nacional poderá adotar uma alternativa a esse regime subsidiário de bens: o regime de entes jurídicos despersonalizados. Como entes jurídicos despersonalizados, os animais deixam, definitivamente, a natureza jurídica de bens, ainda que não ingressem, como poderiam, na definição de pessoas.
Também nos parece possível propor ao Congresso Nacional uma modificação topográfica do artigo sobre animais, como o fez a reforma do Código Civil português, em 2017, no sentido de localizá-lo fora do livro relativo aos bens da Parte Geral, prevenindo qualquer interpretação no sentido de atribuir aos animais essa qualificação reducionista e incompatível com o estatuto da senciência animal, de índole constitucional.
Com essa nova configuração em lei, abre-se à doutrina e à jurisprudência a importante tarefa de progredir o assunto, possibilitando uma tutela jurídica dos animais mais condizente com a realidade e a atualidade, inclusive pela atribuição de direitos.
Os animais nas relações familiares
Pouca resistência se apresentou para regulamentar dois temas muito frequentes na prática forense das varas de família: a convivência compartilhada dos animais de estimação e a repartição das despesas para sua manutenção após a dissolução do casamento ou da união estável.
Desses temas tratou o parágrafo terceiro do art. 1.566, constante no anteprojeto:
“Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges ou conviventes:
[.]
- 3º Os ex-cônjuges e ex-conviventes têm o direito de compartilhar a companhia e arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação, enquanto a eles pertencentes.”
Será possível ainda aperfeiçoar a redação desse dispositivo durante a tramitação legislativa no Congresso Nacional, até para substituir a expressão “a eles pertencentes” por outra mais condizente com o estatuto da senciência animal.
De qualquer forma, com esse dispositivo aprovado haverá pacificação da jurisprudência sobre os temas e ficará claro que as questões relativas à destinação do animal de estimação após a ruptura da sociedade conjugal ou convivencial são de Direito de Família (de competência das varas de família) e não de Direito das Coisas (decididas em varas cíveis).
A afetividade humana por animais como direito da personalidade
Do relatório parcial da Subcomissão da Parte Geral até os últimos momentos dos debates durante a decisiva semana de abril, o artigo referente aos animais na Parte Geral continha um parágrafo adicional, com a seguinte redação:
“§ 3º. Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.”
Esse parágrafo foi sugerido pela Prof.ª Rosa Maria de Andrade Nery, relatora-geral da Comissão, e parecia muito bem-vindo para deixar claro que animais também fazem jus à reparação de danos.
Nos estertores das discussões orais sobre esse artigo, optou-se por suprimir esse parágrafo da Parte Geral e deixar, apenas, um artigo semelhante no capítulo dos direitos da personalidade, com redação menos ousada:
“Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.”
O artigo é interessante para reconhecer que existe um “entorno sociofamiliar da pessoa” do qual animais também fazem parte. Além disso, conecta animais humanos e não-humanos por relações de afeto, nas quais há um dever humano direto em cuidar e proteger os animais, ante sua dependência e vulnerabilidade.
Será necessário avaliar, com mais vagar, as consequências jurídicas de estabelecer essa afetividade entre humanos e animais como direito da personalidade humana, dado que, inequivocamente, em alguns aspectos e em algumas situações, o interesse animal deverá sobrepujar o interesse humano. É o caso de animais silvestres utilizados, indevidamente, como pets. Nesse caso, a afetividade humana com animais, considerada como direito da personalidade humana, poderia redundar num cativeiro doméstico desses animais, conduta hoje considerada criminosa pela Lei dos Crimes Ambientais (art. 29 da lei 9.605/1998).
Considerações finais
O anteprojeto de reforma do Código Civil poderia ter ousado mais quanto à natureza jurídica dos animais. A Ciência já avançou para reconhecer a senciência animal. Precedentes do STF e STJ já reconhecem que animais têm dignidade própria. Inúmeras leis estaduais, e até municipais, já declaram os animais como sujeitos de direitos ou atribuem a eles direitos fundamentais.
Mais do que tudo, a Constituição, ao proibir a crueldade contra animais, reconhece o valor intrínseco e a dignidade própria dos animais, ensejando a construção hermenêutica da subjetividade jurídica dos animais, objeto, hodiernamente, da disciplina autônoma e transversal do Direito Animal.
Mas, compreendendo os limites do tempo e do pensamento, talvez se tenha coarctado o retrocesso e impulsionado, também na legislação civil, o progresso civilizacional representado pelas instituições animalistas.
O anteprojeto é um primeiro passo na escadaria que levará à atualização do Código Civil, tornando-o mais adequado para responder, eficazmente, às exigências de uma sociedade que já perpassa mais de duas décadas do novo século, com múltiplas alterações em seu tecido constitutivo.
O que realmente vai avançar, o que vai ficar como está ou mesmo o que corre o perigo de retroceder, está agora nas mãos do Congresso Nacional.
Fonte: Migalhas
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