A Constituição exige lei complementar para a criação do ITCMD em casos de doador ou bens no exterior. Decisão do STF veda a instituição do imposto por Estados sem essa lei
A competência tributária para criação do ITCMD não foi outorgada de forma plena para os Estados, pois a Constituição fez depender de lei complementar em determinadas situações, como veremos.
De fato, a CF dispôs no art. 155, § 1º, III;
“§ 1º O imposto previsto no inciso I (ITCMD):
[…]
III – terá competência para sua instituição regulada em lei complementar:
- se o doador tiver domiciílio ou residência no exterior;
- se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
Embora decorridos mais de três décadas, e apesar de inúmeros projetos legislativos apresentados no Congresso Nacional nenhum deles foi aprovado até hoje.
Por isso, os Estados passaram a instituir o ITCMD para as hipóteses versadas no inciso III, do § 1º, do art. 155 da CF, causando a impugnação por parte dos contribuintes.
Depois de décadas de insegurança jurídica o STF decidiu pela vedação da tributação nessas hipóteses sem a prévia regulamentação por lei complementar, conforme se verifica da ementa abaixo:
“O Tribunal, por maioria, apreciando o Tema 825 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, vencidos os ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux (presidente) e Gilmar Mendes, que davam provimento ao recurso. Na sequência, por maioria, modulou os efeitos da decisão, atribuindo-lhes eficácia ex nunc, a contar da publicação do acórdão em questão, ressalvando as ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se discuta: (1) a qual Estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e (2) a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente, vencidos os ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, que reajustou seu voto nesta assentada. Tudo nos termos do voto reajustado do relator. Foi fixada a seguinte tese: “É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional”. No tocante ao apelo direcionado ao legislador, o Tribunal, por maioria, entendeu não ser o caso e divergiu do voto do relator. Ficaram vencidos nessa proposta os ministros Dias Toffoli (relator), Rosa Weber, Roberto Barroso e Nunes Marques. Plenário, Sessão Virtual de 19.2.2021 a 26.2.2021 (RE 851.108, rel. min. Dias Toffoli, DJe11-3-2021).
A fim de evitar impactos nas finanças dos Estados foram modulados os efeitos da decisão conferindo-lhe eficácia ex nunc, a partir da data da publicação do Acórdão.
Os embargos declaratórios interpostos contra essa decisão foram conhecidos e acolhidos em parte, conforme decisão abaixo:
Decisão: (ED-segundos) O Tribunal, por maioria, acolheu, em parte, ambos os embargos de declaração para, sanando obscuridade, esclarecer que possuem caráter alternativo, e não cumulativo, os itens (1) e (2) da ressalva quanto à modulação dos efeitos da decisão, nos termos do voto do relator, vencido o ministro Roberto Barroso. Plenário, Sessão Virtual de 27.8.2021 a 3.9.2021 (ERE 851.108, rel. min. Dias Toffoli, DJe 6-10-21)
De certa forma, a nossa doutrina, nesse particular, restou prestigiada pelo ponto de vista sustentado pelo STF1, todavia, no pressuposto de que o legislador ordinário irá cumprir a determinação constitucional de editar normas gerais a respeito, de aplicação em âmbito nacional.
Acontece que passadas cerca de quatro décadas de omissão tem-se, agora, a convicção de que o Congresso Nacional não está disposto a cumprir o mandamento constitucional.
Diante dessa realidade – omissão deliberada do Congresso Nacional – penso que a decisão da Corte Suprema não foi das mais felizes, conforme passaremos a demonstrar.
Primeiramente, é importante atentar para a dicção do § 1º, inciso III, letras a e b da CF, notadamente, da alínea b, para a perfeita compreensão da matéria:
“III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
- se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
- se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior”.
Nota-se que a lei complementar é reclamada apenas e tão somente quando o doador tiver domicílio ou residência no exterior, e quando o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior. É o que resulta do texto constitucional transcrito que não faz referência a herdeiros, porém, tão somente ao de cujus.
Segue-se, portanto, que é irrelevante juridicamente o domicílio do herdeiro para definir o local de pagamento do ITCMD.
Esse é o primeiro ponto.
Em segundo lugar, a outorga constitucional de imposto privativo para cada ente político decorre diretamente da forma federativa do Estado Brasileiro que assegura a independência e autonomia político-administrativa aos entes políticos regionais e locais (arts. 18 e 30 da CF).
Por óbvio, não cabe falar em independência político-administrativa sem independência financeira. Daí a rígida discriminação constitucional de impostos (arts. 153, 155 e 156 da CF).
Logo, a omissão do legislador ordinário em editar a lei complementar, para regular em nível nacional determinado imposto privativo do Estado, não pode inibir o exercício da competência tributária pelo ente político contemplado na regra de partilha constitucional de rendas tributárias.
Em matéria de competência concorrente, como é o caso do direito tributário (art. 24, I da CF), deve-se observar as seguintes regras:
- cabe à União apenas editar normas gerais (§ 1º);
- a competência da União de editar normas gerais não exclui a competência supletiva dos Estados (§ 2º);
- na ausência de normas gerais da União, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender as suas peculiaridades (§ 3º); e
- a superveniência de lei federal suspende a eficácia da lei estadual, no que lhes for contrário (§ 4º).
Os parágrafos do art. 24 da CF são de uma clareza lapidar, não comportando qualquer tipo de discussão.
Foi com base nesse § 3º, do art. 24 da CF que os Estados-membros instituíram o ITCMD em sua plenitude. A hipótese não encerra qualquer novidade, nem pode ensejar qualquer dúvida.
É sabido que a União, até hoje, não editou a lei complementar para a tributação do IPVA, como manda o art. 146, III, a da CF, mas, nem por isso os Estados abriram mão da arrecadação desse imposto, cuja omissão impactaria, também, as finanças dos municípios que fazem jus a 50% do produto de arrecadação do referido imposto estadual (art. 158, III da CF).
É verdade que a falta de regulamento do IPVA em nível nacional causou conflitos de competência entre os Estados, porque alguns proprietários buscavam registrar seus veículos nos Estados onde a alíquota era menor.
Contudo, no ano de 2020 o STF afastou o conflito entre os Estados decidindo que o IPVA deve ser pago no local do domicílio do proprietário, confundindo, ao que tudo indica, com o local de registro do veículo que efetivamente pode ser feito tanto no domicílio do proprietário, como no local de sua residência, conforme prescrição do art. 120 do CBT. (RE 1.016.60/RG-MG, rel. min. Marco Aurélio, relator para Acórdão, min. Alexandre de Moraes, DJe 16-12-20).
Por que há de ser diferente no caso do ITCMD?
Eventual conflito de competência entre os Estados deve ser dirimido pelo STF se e quando isso vir a ocorrer, conforme aconteceu em relação ao IPVA, igualmente, sem previsão na lei complementar, nunca impedir a tributação do imposto pelos Estados interferindo na independência dos Estados assegurada pelo art. 18 da CF em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CF).
Tendo em vista cerca de quatro décadas de omissão legislativa, os Estados deveriam reiniciar a tributação do ITCMD nas hipóteses previstas no inciso III, do § 1º, do art. 155 da CF, a fim de proporcionar ao STF a oportunidade de rever a infeliz decisão proferida.
Consigne-se, por derradeiro, que a EC 132/23, que implantou a reforma parcial do sistema tributário, pelo seu art. 16 instituiu um regime tributário de transição até que a lei complementar venha regular a matéria, possibilitando a tributação pelos estados tanto da doação feita por doador domiciliado no exterior, quanto dos bens situados no estrangeiro ou de herança transmitida por de cujus, cujo inventário se processou no exterior.
———————
1 Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 31ª Ed. Belo Horizonte: Dialética, 2022, p. 662.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário