A previdência social é uma técnica de proteção social destinada a debelar as necessidades sociais decorrentes de contingências que reduzem ou eliminam a capacidade de autossustento do trabalhador e/ou de seus dependentes.1 Uma dessas contingências mais relevantes é a morte do trabalhador, que gera necessidade no conjunto dos dependentes.

 

Para fazer face a tal contingência, é previsto o benefício de pensão por morte, rateado entre os dependentes. Há uma ordem de prioridade para recebimento da pensão por morte, considerando a previsão do art. 16 da Lei 8.213/1991, que trata do Regime Geral de Previdência Social, a cargo do INSS. Em primeiro lugar, o benefício é concedido aos indicados no inciso I do art. 16 da Lei 8.213/1991, ou seja, os filhos, em regra até 21 anos de idade, cônjuge e companheira(o).  Não havendo dependente dessas classes, os pais são indicados no inciso II, e podem receber a pensão, desde que provem dependência econômica em relação ao falecido segurado. Inexistindo os dependentes indicados nos incisos I e II, poderão ter direito os irmãos, em regra até os 21 anos de idade, devendo também provar a dependência econômica. Como se verifica, há pontos de contato entre o direito previdenciário e o direito de família, vez que os beneficiários previstos possuem vínculos de parentesco ou conjugalidade com o segurado falecido.

 

A emancipação antecipa a cessação da condição de dependente para o filho e o irmão que tenham menos de 21 anos de idade. Quanto ao cônjuge e companheiro(a), há questões interessantes sobre o rateio do benefício como se verifica no art.76, § 2º, da lei 8.213/1991, autorizando a sua aplicação entre  os filhos do falecido e o ex-cônjuge (divorciado, separado judicialmente ou de fato) que recebia pensão alimentícia à época do falecimento. Atualmente, a mesma possibilidade se defere ao ex-cônjuge separado ou divorciado extrajudicialmente, conforme o art.373, da Instrução Normativa Pres/INSS nº128/2022. A seguir a Súmula nº336/STJ, a mulher renunciante de alimentos ao tempo da separação judicial terá direito a essa pensão previdenciária, se comprovar a necessidade econômica superveniente.

 

Mas como a legislação previdenciária define o vínculo entre companheiros? E qual é tratamento dispensado à união paralela ao casamento ou à união estável quando os cônjuges ou companheiros preservam a vida em comum, não estando separados de fato?

 

A legislação previdenciária (art. 16, § 3º, da lei 8.213/1991 e art. 16, § 6º, do decreto 3.048/1999) considera união estável a mantida entre pessoas não casadas na forma do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, configurada na convivência pública, contínua e duradoura entre pessoas, estabelecida com intenção de constituição de família, observado o disposto no § 1º do art. 1723 do Código Civil. Aplicam-se os impedimentos do art. 1521 do Código Civil, salvo se houver separação de fato, judicial ou extrajudicial. Assim, o segurado(a) casado(a) não pode manter união estável com outra pessoa, salvo se provada a separação de fato ou a separação judicial/extrajudicial.

 

Poderia se reconhecer o direito à pensão ao sobrevivente dessas uniões não eventuais, quando era provada a sua dependência econômica. Permitia-se o rateio do benefício entre cônjuge/companheiro e o sobrevivente das uniões não eventuais de longo período, corriqueiramente nomeadas como “concubinato de longa duração”. Mas a  possibilidade foi extinta em 2021, após o STF decidir o Tema 526 de Repercussão Geral e fixar a seguinte tese: “É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável”.

 

Na ementa do voto foi reiterada a impossibilidade do rateio entre esposa e concubina no caso de convivência simultânea ao casamento, e que o que o concubinato – união entre pessoas impedidas de casar – não geraria efeitos previdenciários, citando os princípios da exclusividade e da boa-fé, bem como os deveres de lealdade e fidelidade, na fundamentação jurídica da decisão. Ressalte-se que, no caso de prova da separação de fato entre o(a) segurado(a) e seu cônjuge, a conformação de uma nova união estável permitirá a concessão de direitos ao companheiro(a) sobrevivente, nos termos da legislação vigente.

 

Todo o entendimento acima indicado também se aplica a servidores públicos, abrangidos por regimes próprios de previdência social.

 

No entanto, merece referência, ainda quanto ao rateio da pensão por morte, a disposição constante do art. 178, § 5º, da Instrução Normativa PRES/INSS nº 128, de 28 de março de 2022. Trata-se de uma expressa  exceção ao entendimento acima indicado para permitir o reconhecimento de união estável entre uma pessoa indígena e mais de um(a) companheiro(a). In verbis,

 

  • 5º Será reconhecida, para fins previdenciários, a união estável entre um segurado indígena e mais de um(a) companheiro(a), em regime de poligamia ou poliandria devidamente comprovado junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (grifo intencional).

 

Em respeito às peculiaridades culturais de grupos indígenas que adotam a poligamia e a poliandria, admite-se a união estável com mais de um(a) companheiro(a) e, consequentemente, o rateio de pensão por morte entre os sobreviventes, quando comprovada a situação perante a FUNAI. Considere-se o art.231, da Constituição que reconhece ao povo indígena a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, garantindo-lhes a correspondente tutela. Soma-se ainda, os termos do artigo 1°, item 1, alínea b, da Convenção nº169, da Organização Internacional do Trabalho –  OIT, e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que reconhecem e preservam a autoidentificação como elemento essencial para determinar a condição de indígena.

 

A declaração fornecida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI tem sido considerada documento suficiente para comprovação da união estável envolvendo pessoas indígenas, dispensando-se, inclusive, a apresentação dos documentos listados pela Portaria nº, do INSS.2

 

Voltando, porém, à concessão do benefício aos(às) companheiros(as) sobreviventes do segurado falecido, seria o caso de reconhecimento de união poliamorosa ou de uniões paralelas? A resolução é aberta ao reconhecimento das peculiaridades de cada comunidade indígena quanto à sua organização social e aos seus costumes, referindo-se expressamente aos casos de poligamia ou poliandria. Trecho de Gilberto Freyre rememora que a monogamia não era um princípio hegemônico entre os povos indígenas:

 

“Entre os indígenas do Brasil, notou nos meados do século XVI o padre Anchieta que a mulher não se agastava com o fato de o homem, seu companheiro, tomar outra ou outras mulheres: “ainda que a deixe de todo, não faz caso disso, porque se ainda é moça, ela toma outro”. E “se a mulher acerta ser varonil e virago, também ela deixa o marido e toma outro.”33 Era ponto, naturalmente, esse de variar marido de mulher e mulher de marido, com o qual não podia transigir, nem transigia no Brasil, a moral católica: isto é, a dura, ortodoxa, representada pelos padres da Companhia.”3

 

Com o passar dos anos, a fricção cultural e a força do continuado processo de colonização dos povos, a monogamia atravessou os costumes de muitas comunidades indígenas, como ressalta a historiadora Vania Moreira. Segundo ela, o combate a poligamia era uma “obsessão” dos missionários dedicados a sua evengelização.4 Não obstante a isso, a legislação acolheu a possibilidade de uniões paralelas ou simultâneas entre pessoas indígenas, quando a prática é considerada um costume da comunidade indígena correspondente.

 

Ressalta-se que a poligamia, assim considerada a união entre uma pessoa do gênero masculino com duas ou mais pessoas do gênero feminino; e a poliandria, a união entre uma pessoa do gênero feminino com mais de duas pessoas, do gênero masculino não se confundem conceitualmente com o poliamor que se constitui mais como uma “filosofia de vida”. Ainda que caracterizada pela “possibilidade de uma pessoa manter um relacionamento amoroso íntimo e afetivo com duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, com o conhecimento e consentimento dos envolvidos”.5 O relacionamento poliamoroso fechado há uma relação estável entre mais de duas pessoas que compartilham uma comunhão plena de vida por elas qualificada como família.

 

O mesmo raciocínio pode ser estendido às pessoas refugiadas polígamas, egressas de um país no qual a prática é consentida. Altas taxas de poligamia podem ser verificadas na Nigéria, por exemplo. Entre nós, embora a monogamia seja um princípio geral de direito de família, recentemente reforçado pelo STF em decisões recentes, de acordo com a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/97), os efeitos da condição de refugiado são extensivos ao respectivo cônjuge. Nessa medida, como recusar a tutela jurídica aos cônjuges do refugiado polígamo? De igual sorte, se o refugiado consegue um emprego e se afilia ao sistema da previdência social, em caso de morte, como recusar o rateio do pensionamento às esposas ou companheiras sobreviventes?

 

Na unidade do ordenamento jurídico, é possível afirmar que as teses recentes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal não afastam, por completo, a possibilidade da existência de uniões estáveis paralelas ou mesmo de uniões poliamorosas.

 

Outra interessante decisão do STF, tomada em março de 2024, ao decidir o Tema 1072 de Repercussão Geral, diz respeito a casais formados por duas mulheres, nos quais uma delas tenha dado à luz. Discutia-se se o salário-maternidade deveria ser concedido a apenas uma delas ou a ambas. A tese fixada pelo STF foi:

 

A mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade.

 

Assim, a mãe não gestante só terá direito ao salário-maternidade se sua companheira não tiver usufruído do benefício. Terá, não obstante, o direito ao salário-paternidade. Ou seja, o STF reconheceu os mesmos direitos de uniões entre pessoas de sexos diferentes.

 

O prazo do salário-maternidade é de 120 dias e da licença paternidade é de 5 dias, sendo que no âmbito do Regime Geral de Previdência Social há a possibilidade de ampliar o primeiro para 180 dias e o segundo para 20 dias, no caso de empregados de empresa que adira ao Programa Empresa Cidadã (Lei 11.770/2008). No âmbito de regimes próprios de previdência de servidores públicos, o prazo já é de 180 dias para a licença maternidade.

 

A licença-paternidade, prevista atualmente no § 1º do art. 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, é, em regra, de cinco dias até que haja regulamentação. Em dezembro de 2023, o STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 20, reconheceu que há omissão inconstitucional na regulamentação da licença-paternidade prevista no art. 7º, XIX, da Constituição, e fixou o prazo de dezoito meses para o Congresso Nacional legislar a respeito da matéria. Caso não o faça, não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, caberá ao STF fixar o período da licença-paternidade. Eis a tese de julgamento fixada:

 

  1. Existe omissão inconstitucional relativamente à edição da lei regulamentadora da licença-paternidade, prevista no art. 7º, XIX, da Constituição. 2. Fica estabelecido o prazo de 18 meses para o Congresso Nacional sanar a omissão apontada, contados da publicação da ata de julgamento. 3. Não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, caberá a este Tribunal fixar o período da licença paternidade

 

Há assim possibilidade de o Congresso Nacional regulamentar a licença-paternidade e contribuir para uma maior igualdade entre os pais na fruição do benefício e no cuidado e atenção com os filhos.

 

______________

 

1 Dias, Eduardo Rocha e Macedo, José Leandro Monteiro de. Direito Previdenciário. Leme/São Paulo – Editora Mizuno, 2023, p.18.

 

2 PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. COMPANHEIRO. REGISTRO ADMINISTRATIVO DE CASAMENTO DE ÍNDIO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPROVAÇÃO. CONSECTÁRIOS LEGAIS. 1. Em se tratando de indígena, a expedição de certidão e os registros administrativos realizados pela FUNAI constituem início de prova material, pois têm fé pública e são previstos expressamente no Estatuto do índio (Lei nº 6.001/73). 2. Comprovada a união estável entre o casal, a dependência econômica é presumida, sendo devida a concessão da pensão por morte à companheira. 3. Consectários legais fixados nos termos do decidido pelo STF (Tema 810) e pelo STJ (Tema 905). A partir de 09/12/2021, deve ser observada para fins de atualização monetária e juros de mora, de acordo com art. 3º da EC 113/2021, o índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente. (TRF-4 – AC: 50019369320234049999, Relator: ALEXANDRE GONÇALVES LIPPEL, Data de Julgamento: 28/03/2023, QUINTA TURMA).

 

3 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. Rio de Janeiro: Global, 2003. p. 168.

 

4 MOREIRA, Vania Maria Losada. Casamentos indígenas, casamentos mistos e política na América portuguesa: amizade, negociação, capitulação e assimilação social. Topoi (Rio de Janeiro), [S.L.], v. 19, n. 39, p. 29-52, set. 2018. FapUNIFESP (SciELO).

 

5 SANTOS, Anna Isabella de Oliveira; VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas. Poliamor: conceito, aplicação e efeitos. Cadernos de Pós-Graduação em Direito PPGDir/UFRGS. Ed. Digital. Porto Alegre. Vol. XII, n.2. 2017, p.263.

 

Fonte: Migalhas

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