Nelson Mandela, em Long Walk to Freedom (1995), afirmou que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. Frisemos: tanto para odiar quanto para amar, é preciso aprender.
Talvez com o espírito de ensinar a igualdade por meio da diversidade, e a partir desta o amor, no Brasil, em 9 de janeiro de 2003, entrou em vigor a Lei nº 10.639, que altera a Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), especificamente para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira.
Em síntese, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, desde 2003 tornou-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira (artigo 26-A da Lei 9.394/96). Dentro desse eixo temático, o conteúdo programático deve incluir o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (§ 1º do artigo 26-A da Lei 9.394/96).
Lei pegou?
Mas como no Brasil não basta a publicação de uma lei, mas especialmente que esta passe pelo complexo paradigma da Law-In-Books vs. Law-In-Action [1], inescapável é o questionamento: essa lei pegou ou é lei para inglês ver [2]?
Aos dados — para quem ainda acredita: em janeiro de 2024 estudo denominado Avaliação da Qualidade da Educação Infantil, realizado pelo Itaú Social e pela Fundação Marica Cecília Souto Vidigal deduziu que aprendizagens relacionadas à educação étnico-racial não estão presentes em 89,8% das turmas de creche e pré-escola. É dizer: nove em cada dez escolas não abordam aspectos étnicos-raciais nas aulas [3].
Aos dados novamente: de acordo com pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto Alana em parceria com o Geledés Instituto da Mulher negra, sete em cada dez secretarias municipais de educação não fizeram nenhuma ação ou tomaram poucas providências para adotar o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas [4].
Ora, se a origem de qualquer forma de preconceito é a desinformação; e se ninguém nasce odiando outro ser humano, como ensinou Mandela; a ausência de implementação de estudos afro-brasileiros em escolas, tema que é central na construção do Brasil, acaba por perpetuar o crime de racismo. A corroborar o que aqui afirmamos veja, por exemplo, o relatório da Unicef denominado O impacto do racismo na infância (2020) [5], ou, mais recentemente, reportagem da Folha de S.Paulo datada de 12 de agosto de 2024 denominada Professor viraliza com pesquisa sobre falta de fotos de alunos no Instagram. A enquete feita com 93 alunos aponta baixa autoestima e racismo como inibidores de presença nas redes [6]. Ou seja: racismo como afetação direta na personalidade de cada criança, a qual já cresce em ambiente de total desrespeito ao princípio dos princípios constitucionais: a dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1.º da Constituição de 1988).
A lei e o Procon
Esperando sinceramente o seu convencimento, caro leitor ou leitora, passamos ao segundo questionamento chave deste artigo: e o que os Procons têm a ver com isso? Adianta-se o final, ao estilo Memórias Póstumas de Brás Cubas: tudo! Em absoluto!
Em primeiro lugar, a Constituição registra na cabeça do artigo 206 que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família e, para os fins aqui visados, três princípios sobressaem: III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII – garantia de padrão de qualidade. Ou seja: podem coexistir estabelecimentos de ensino públicos (oficiais) juntamente com privados e ambos devem ter garantia de padrão de qualidade. Nos estabelecimentos públicos o ensino é gratuito e no privado pode haver remuneração como contrapartida da prestação de serviço.
Ora, se se verifica prestação de serviço em que de um lado há um consumidor — aluno, artigo 2.º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) — e de outro um fornecedor de serviços educacionais (fornecedor, artigo 3º, CDC) que os presta mediante remuneração a um destinatário final a hipótese não pode ser outra: cuida-se de relação jurídica de consumo [7].
Característica essencial dessa relação jurídica de consumo, como se pode intuir, é a alta carga de regulação da prestação dos serviços educacionais privados pelo poder público, haja vista a enorme vulnerabilidade do educado (artigo 4º, I, CDC), nomeadamente no que diz respeito ao atendimento do princípio constitucional da garantia do padrão de qualidade (inciso VII do artigo 206 da Constituição Federal de 1988), geralmente ao longo de anos a fio (prestação de serviços de execução continuada).
A rigor, este necessário dirigismo contratual [8] (para que seja cumprida a função social do contrato) conduz todo e qualquer prestador de serviço educacional (escola não pública) a uma condição de prestatividade, isto é, ao dever de garantir que seu conteúdo programático, seu projeto pedagógico, sua grade curricular, enfim, cumpram as exigências do órgão oficial. É dizer: não basta prestar serviço de educação, tem de prestar com respeito ao princípio de garantia do padrão de qualidade (mandamento constitucional), o que descamba naturalmente para a estrita observância do que dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), nomeadamente no artigo 26-A, que prescreve, como já dito e redito, a obrigatoriedade do ensino do estudo da história e da cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio privados.
Violação ao CDC
Na esteira do dever de garantia de qualidade apontado na Constituição de 1988, o Código de Defesa do Consumidor igualmente possui, na parte final do parágrafo segundo do artigo 20, disposição normativa sobre essa temática:
“CDC. Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (…) § 2º São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles não atendam as normas regulamentares de prestabilidade” (grifos do colunista).
É como se o CDC dissesse, dizemos nós: é impróprio o serviço educacional prestado por estabelecimento não oficial que ignora a Lei de Diretrizes de Bases da Educação (Lei 9.394/96), especialmente no que é atinente ao ensino obrigatório de história afro-brasileira.
Vamos além: é ilegal, e novamente viola o Código de Defesa do Consumidor, a conduta de colocar no mercado de consumo serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes, como é o caso, uma vez mais, da Constituição Federal (artigo 206) e da Lei de Diretrizes de Bases da Educação (Lei nº 9.394/96). Assim:
“CDC. Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas (…) VIII – colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro)”
Ora bem, com base neste diálogo de fontes [9] o que se verifica é violação direta a diversos dispositivos normativos postos no amplo plexo de defesa do cidadão, o que não se pode admitir de sobremaneira em tema que possui conexão direta com a perpetuação do racismo estrutural [10], institucional [11] e multidimensional [12] notado nas relações jurídicas de consumo brasileiras.
E aqui acionamos, como uma convocação ao combate ao racismo nas relações de consumo, os quase mil Procons [13] espraiados por estas terras de dimensões continentais, já que são os Procons (artigos 9º, 10 e 11 do Decreto 2.181/1997), não exclusivamente, mas com maior proximidade e por vezes estrutura, os responsáveis pela fiscalização das relações de consumo de que tratam a Lei 8.078/1990, o Decreto 2.181/1997 e as demais normas de defesa do consumidor. E isto por dever legal, já que o artigo 56 do Código de Defesa do Consumidor aponta que qualquer ofensa à norma de defesa do consumidor (mais amplo do que somente ao CDC, percebam [14]) enseja a aplicação de sanções administrativas.
A lição de Luther King
Ao assim procederem, atenderão, a um só tempo, ao que dispõe a Constituição (artigo 206), ao que dispõe o Código de Defesa do Consumidor (artigo 20, § 2º; artigo 39, VIII) ao que prescreve a Nota Técnica da Secretaria Nacional de Do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre o Enfrentamento ao Racismo nas Relações de Consumo [15]; aos 10 princípios para o enfretamento do racismo nas relações de consumo (Procon-SP Racial) [16] e, ademais, ao ensinamento de Martin Luther King Jr. em sua autobiografia, quando confessa que ainda jovem percebeu que o enfrentamento ao racismo e a força de movimento dos direitos civis (os Procons não podem fugir dessa marca, que a propósito é historicamente a de sua criação) deveriam necessariamente passar não só pela luta por publicação, via parlamento, de dispositivos normativos que pregassem a igualdade; mas também, e especialmente, pela educação:
“(…). Pela educação, buscamos mudar atitudes e sentimentos internos (preconceito, ódio etc.); pela legislação e por determinação dos tribunais, buscamos regulamentar o comportamento. Qualquer um que parta da convicção de que o caminho para a justiça social tem uma única via inevitavelmente criará um congestionamento e tornará a viagem infinitamente mais demorada” [17].
Mãos à obra!
[1] PUASCHUNDER, Julia M., Behavioral International Law: Law-In-Books vs. Law-In-Action Resembling the Neoclassical Economics Vs. Behavioral Economics Debate (8 de agosto de 2022). Puaschunder, JM (2022). Behavioral International Law: Law-in-books vs. Law-in-action Resembling the Neoclassical Economics vs. Behavioral Economics Debate. Anais da 28ª conferência da Research Association for Interdisciplinary Studies (RAIS), pp. 1-9, junho de 2022., disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=4183996.
[2] Para inglês ver. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/artigos/para-ingles-ver. Acesso: 12 ago. 2024.
[3] Nove em cada dez escolas não abordam aspectos étnico-raciais. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/educacao-basica/2024/01/6787065-nove-em-cada-10-escolas-nao-abordam-aspectos-etnico-raciais-nas-aulas.html. Acesso: 12 ago. 2024.
[4] “Em 2022, os institutos ouviram 1.187 gestores das secretarias municipais, o que corresponde a 21% das redes de ensino, sobre o cumprimento da lei. A pesquisa ressalta que os municípios são os principais responsáveis pela educação básica. Do total, 29% das secretarias têm ações consistentes e perenes no atendimento da legislação; 53% por cento fazem atividades periódicas com alguns projetos isolados em datas esparsas; enquanto 18% não realizam nenhum tipo de ação. ” In: Especialistas pedem cumprimento da lei sobre ensino da cultura afro-brasileira. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/10/19/especialistas-pedem-cumprimento-da-lei-sobre-ensino-da-cultura-afro-brasileira. Acesso: 12 ago. 2024.
[5] 10 maneiras de contribuir para uma infância sem racismo. 1. Eduque as crianças para o respeito às diferenças. Ela está nos tipos de brinquedos, nas línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e pessoas de diferentes culturas, raças e etnias. As diferenças enriquecem o nosso conhecimento. 2. Textos, histórias, olhares, piadas e expressões podem ser estigmatizantes com outras crianças, culturas e tradições. Indigne-se e esteja alerta se isso acontecer – contextualize e sensibilize!. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/racismo-e-discriminacao-contra-criancas-e-adolescentes-sao-comuns-em-paises-de-todo-o-mundo. Acesso: 12 ago. 2024.
[6] Professor viraliza com pesquisa sobre falta de fotos de alunos no Instagram. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/blogs/hashtag/2024/08/professor-viraliza-com-pesquisa-sobre-falta-de-fotos-de-alunos-no-instagram.shtml>. Acesso: 12 ago. 2024.
[7] Assim o STJ: Enunciado 595 STJ: As instituições de ensino superior respondem objetivamente pelos danos suportados pelo aluno/consumidor pela realização de curso não reconhecido pelo Ministério da Educação, sobre o qual não lhe tenha sido dada prévia e adequada informação.
[8] “(…) espécie de elemento mitigador da autonomia privada, fazendo presente a influência do direito público no direito privado pela interferência estatal na liberdade de contratar”. JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 65. Dirigismo contratual e decadência do voluntarismo: morte do contrato? In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Instituições de Direito Civil: contratos. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2016. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/instituicoes-de-direito-civil-contratos/1499798131. Acesso em: 13 de agosto de 2024.
[9] “O diálogo das fontes é um método de interpretação, de integração e de aplicação das normas que contempla os principais desafios de assegurar a coerência e efetividade do direito a partir do projeto constitucional e do sistema de valores que impõe”. BENJAMIN, Antonio; MARQUES, Claudia; BESSA, Leonardo. IV. Diálogo das Fontes In: BENJAMIN, Antonio; MARQUES, Claudia; BESSA, Leonardo. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/manual-de-direito-do-consumidor/1250397051. Acesso em: 13 ago. 2024.
[10] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2021, p. 32.
[11] SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2023, p. 56.
[12] In: SOUZA, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021, pp. 27-28.
[13] Boletim SINDEC e Boletim PROCONSUMIDOR 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/11.03.2024PDFBoletim_ProConsumidor_Sindec_2023_final_compressed1.pdf. Acesso: 13 ago. 2024.
[14] Assim: “Destaque-se que não é apenas a violação a direito do consumidor estabelecido na Lei 8.078/1990 qye faz incidir a sanção administrativa, mas a infração a qualquer norma que objetiva a tutela dos interesses materiais e morais do consumidor. O caput do art. 56 é claro no sentido de que as sanções são aplicadas em face de ‘infrações das normas de defesa do consumidor’, e não de violações do CDC. Na verdade, a delimitação dos deveres do fornecedor decorre de análise conjunta de diversas normas, em diálogo das fontes, com relevo para a Constituição Federal e o CDC (art. 7.º. caput). BESSA, Leonardo Roscoe. Código de Defesa do Consumidor Comentado. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 493.
[15] Nota Técnica da Senacon apresenta sugestões para o enfrentamento ao racismo nas relações de consumo. Disponível em: < https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/nota-tecnica-da-senacon-apresenta-sugestoes-para-o-enfrentamento-ao-racismo-nas-relacoes-de-consumo>. Acesso: 13 ago. 2024.
[16] Procon Racial São Paulo. Disponível em: < https://www.procon.sp.gov.br/procon-racial/>. Acesso: 13 ago. 2024.
[17] KING, Martin Luther. A autobiografia de Martin Luther King: organização Clayborne Carson, tradução Carlos Alberto Medeiros. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 68.
Fonte: Conjur
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