Leis são necessárias como instrumentos indispensáveis de se prevenir e reprimir a corrupção, mas temos de admitir que elas podem ter um efeito similar aos remédios aplicados contra quadros febris: não atacam a causa do problema mas tão somente seus sintomas, e em termos éticos podemos no máximo chegar ao agir “meramente pelo dever”, e não “por dever”, para usar a expressão de Kant (apud Dias, 2018). Temos legislação avançada em muitos campos do combate à corrupção, mas o problema persiste e persistirá enquanto não houver uma mudança de cultura ética de nossa sociedade.

 

Atualmente, além da previsão do crime de corrupção no Código Penal, previsto em seus artigos 317 e 333 – respectivamente corrupção passiva e ativa — temos a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), a própria Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13), a Lei Antitruste (Lei nº 12.529/11), a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) com a redação da Lei nº 12.683/12 — e tantas outras leis, artigos de leis e normas infralegais que são amplamente aplicadas aos casos que envolvem corrupção.

 

Da mesma forma, as instâncias públicas têm normativos que tratam de temas afetos diretamente à corrupção, a exemplo do Código de Conduta da Alta Administração Federal, aprovado em julho de 2000, que enumera vários normativos que regulamentam a conduta do servidor público federal, e também do Código de Ética do Servidor Público Civil do Poder Executivo (Decreto nº 1.171/94), além de regulamentos que chegam a tratar da concessão de audiências a particulares e recebimento de brindes e assim por diante.

 

Fica evidente que o problema não está na existência de normas, mas sim em sua eficácia e efetiva aplicação, o que passa por medidas de maior controle por parte das instituições públicas, e também pela implantação de programas de governança e compliance.

 

Qual moral e qual ética?

A par disso tudo, o Direito tem um papel fundamental quando tratamos da ética numa sociedade. O velho brocardo latino ubi societas ibi jus significa que onde está a sociedade, está o Direito, e para haver o Direito haverá uma ética social que lhe servirá de norte, de fundamento, conferindo legitimidade para o direito regular e controlar a sociedade, não permitindo que o valor individual se sobreponha aos valores da sociedade (Marconi, 2000).

 

Em cada sociedade há a legitimação de um sistema jurídico, a par de existirem valores morais de cunho individual ou ainda de etnias, de grupos religiosos, de indivíduos etc. O que o sistema jurídico faz é conferir a segurança jurídica dentro do arcabouço jurídico que busca refletir e se legitimar pela ética vigente da maioria da sociedade.

 

Neste ponto fica inevitável o questionamento: quais os valores morais e qual ética prevalecem numa sociedade? Como chegar a esse consenso? Não estaríamos abrindo a porta para valores que podem parecer completamente contrários à ética? Qual moral e qual ética, a minha ou a sua?

 

Essas questões são extremamente complexas e não cabem no escopo desta reflexão enfrentá-las. O filósofo e jurista Norberto Bobbio disse em seu A Era dos Direitos:

 

“1 – O Conceito de moral é problemático:

 

2 – Ainda que todos estivéssemos de acordo sobre o modo de entender a moral, ninguém até agora encontrou ‘indicadores’, para medir o progresso moral de uma nação, ou mesmo de toda a humanidade, tão claros quanto o são os indicadores para medir o progresso científico e técnico” (Bobbio, 2004, pág.27).

 

O importante aqui é reconhecer duas coisas: primeiro, que existem valores que necessariamente vão ser incorporados por uma sociedade moderna; e, segundo, que cabe ao Direito tipificá-los, codificá-los e sancionar aqueles que não os cumprirem, conferindo segurança jurídica a sociedade.

 

O papel do Direito na criação de uma cultura de ética

Neste sentido, e no estrito contorno do que nos propomos com este estudo, existem direitos tão caros e ligados à própria natureza humana que parecem incontestáveis no mundo civilizado atual, ou que se pretende civilizado. Assim, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à liberdade, à propriedade e outros, sendo talvez o grande marco moderno neste sentido a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que enuncia os direitos considerados inalienáveis da pessoa humana.

 

Vale aqui ressaltar que o combate à corrupção pode ser encarado como essencial e inevitável visando a consolidação dos valores da honestidade/integridade/probidade, o que parece incontestável e imprescindível para uma sociedade. E é inegável que, em nossa sociedade, como de resto na imensa maioria dos países ditos civilizados, há clamor social de que o problema da corrupção seja enfrentado. Em suma, que sejam adotadas as medidas legislativas pertinentes ao tema, pois é algo validado pela ética e moral da nossa sociedade.

 

Ainda quanto ao papel do Direito nesta temática, é importante constatar que se por um lado a demanda ética e moral impõe o combate à corrupção, a existência de legislação a respeito e sua efetiva aplicação auxilia na sedimentação do valor da honestidade e da ética nas relações. Ou seja, o Direito acaba por ter um papel fundamental na criação e propagação de uma cultura de ética na sociedade, o que é o principal objetivo dos programas de compliance, sendo uma via de mão-dupla: a demanda da sociedade por ética nas relações sociais é fortalecida e passa a ser cogente pela existência de um arcabouço jurídico que impõe obrigações de ordem ética, conferindo fundamento e reforçando a necessidade e demanda da sociedade de satisfazer essa demanda.

 

Ética administrativa

No que tange a administração pública, existe a chamada ética administrativa, decorrente do artigo 37 da Constituição, que enuncia como princípio da administração pública a legalidade, publicidade, moralidade, finalidade e eficiência (Brasil, 1988). A moralidade aqui implica, na clássica e sempre atual lição do saudoso Hely Lopes Meirelles, que:

 

“o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o Honesto do Desonesto. E ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético da sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo do injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto” (MEIRELLES, 2012, pág. 90).

 

Quando falamos em ética própria da administração pública, temos que ter em mente que ela está legislada e enunciada pela moralidade administrativa e pela finalidade do ato público, ambos princípios de cunho constitucional, e consubstanciada no conceito de probidade administrativa, prevista em legislação própria. Ou seja, no campo do Direito Administrativo, portanto para os servidores públicos, o norte ético esta devidamente previsto no ordenamento jurídico, em se fazer somente o que é permitido por lei e cumprir as determinações legais, o que se justifica pelo papel essencial do Estado-Administração na questão da efetividade de uma cultura de ética.

 

Cultura de integridade

No campo privado, as leis e regulamentos de compliance impostos as empresas, além da autorregulação dos diversos setores econômicos, são essenciais para exigir e balizar a existência dos programas de integridade. Mas o grande desafio continua sendo sua eficácia, sua efetiva atuação para fomentar uma cultura de integridade e ética nas relações público-privada e privada-privada.

 

Por fim, a par da essencial regulamentação jurídica, o que deve ser efetivamente buscado por toda a sociedade, no campo público e no campo privado, é o estabelecimento de uma verdadeira mudança nos valores e o estabelecimento de uma cultura de ética e integridade nas relações, pena de usarmos o arcabouço legal de forma reativa e patinarmos na necessária evolução da sociedade brasileira na consolidação dos valores da honestidade/integridade/probidade.

 

Referências

 

Bobbio, N. (2004). A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier.

 

Dias, M. G. (2018). A Filosofia Moral de Kant. site Conteúdo Jurídico, http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51227/a-filosofia-moral-de-kant, visitado em 29/09/2021.

 

Marconi, I. d. (01 de setembro de 2000). Uma Questão de Valores: Direito, Ética e Seu Papel na Remodelação da Sociedade Perante a Modernidade Líquida. Fonte: âmbito Jurídico: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/sociologia/uma-questao-de-valores-direito-e-etica-e-seu-papel-na-remodelacao-da-sociedade-perante-a-modernidade-liquida/

 

Meirelles, H. L. (2012). Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiro Editores.

 

Fonte: Conjur

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