A certidão imobiliária é fruto da publicidade inerente aos registros públicos, seja para desencadear a eficacização dos direitos reais erga omnes, seja para garantir certeza e segurança jurídica às transações imobiliárias.1 Justamente por isso, os artigos 16 e 17 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos – LRP), impõem ao registrador a emissão de certidões e de informações quando solicitado, independentemente de motivação.

 

Contudo, após o advento da LGPD, Lei nº 13.709/2018, ganhou força o discurso contra a publicidade registral e notarial de forma indistinta. Assim, tornou-se necessário ressignificar a publicidade registrária, elemento basilar dos direitos reais, e compatibilizá-la com os dispositivos de proteção e tratamento de dados pessoais e da privacidade, posto que, aparentemente, apontam em sentidos opostos, evidenciando a atualidade e a relevância do tema.

 

Em outra ocasião, reforçamos a ideia de que a LGPD não trouxe no rol dos direitos dos titulares de dados previsto no art. 18 da lei o direito ao sigilo ou mitigação da publicidade.2 Muito embora, a proteção à privacidade (inc. I) e à intimidade (inc. IV) sejam alguns dos fundamentos do sistema de proteção de dados pessoais nos termos do art. 2º da LGPD, in verbis:

 

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

 

I – o respeito à privacidade;

 

II – a autodeterminação informativa;

 

III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

 

IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

 

V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

 

VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

 

VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

 

Observe-se que tão importante quanto os fundamentos acima destacados, a LGPD traz no inciso V outro, qual seja: “o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação”. Neste sentido, deve-se compreender a importância da certidão imobiliária para o desenvolvimento econômico do país, pois é um instrumento imprescindível para a segurança dos negócios jurídicos imobiliários.

 

Isto porque a inscrição de um título no assento imobiliário, seja em decorrência de ato de registro ou ato de averbação (artigo 167 da LRP), ocorre somente após a devida qualificação registrária, realizada à luz do sistema legal e normativo vigentes, uma vez que os atos desempenhados pelos delegatários no exercício da função fundamentam-se, preponderantemente, no regime jurídico de direito público, no qual vigora o princípio da legalidade estrita.

 

Destaca-se que o princípio da legalidade está diretamente relacionado ao princípio da publicidade registrária, posto que não há como o registro ser público se não for conhecido e não há como ter oponibilidade erga omnes se o ato não estiver em consonância com os preceitos legais e não puder ser comprovado documentalmente.3

 

Logo, o registro lato sensu de um título gera presunção relativa de veracidade, prevalecendo a favor ou contra quem por ele for atingido, o que faz com que o efeito em face da coletividade decorra da publicidade da inscrição.4

 

As certidões, por sua vez, instrumentalizadas em papel de segurança ou de forma eletrônica, podem ser expedidas em inteiro teor (transcrição integral, ipsis litteris da matrícula); em breve relatório (informações essenciais e atuais do imóvel e dos titulares); por quesitos (respostas às indagações formuladas pela parte, embora se imponha a indicação das alterações posteriores ao ato cuja certidão é emitida, independentemente do pedido); ou ainda, expedidas em forma de certidão da situação jurídica atualizada do imóvel, nos termos do artigo 19 da LRP, com nova redação dada pela lei 14.382/2022.

 

Importante consignar a existência da certidão eletrônica, em qualquer destas modalidades, e pode ser solicitada por intermédio do SERP (Registro Eletrônico dos Registros Públicos) e materializada por qualquer registrador, mediante o uso de assinatura avançada ou qualificada, assim como pode ser visualizada eletronicamente e impressa pelo próprio usuário, conforme artigo 17 da LRP, tratando-se de grande facilitador para propagação da publicidade dos assentos imobiliários.

 

Diante deste complexo contexto, um debate crucial é se definir se a emissão de certidão seria ou não compartilhamento de dados, o que nos parece que não, na medida em que se trata de uma atividade fim do Registro de Imóveis em virtude do que determina a lei e as normas regulamentadoras.5

 

Então qual seria o impacto da Lei Geral de Proteção de Dados às atividades de notas e de registros, uma vez que é aplicável por expressa determinação dos §§ 4ª e 5º do art. 23 da LGPD.

 

Nesta coluna, foi objeto de análise a regulamentação da aplicação da LGPD às serventias extrajudiciais em âmbito federal, pois o Provimento n. 134/2022 do CNJ, já estabeleceu regras importantes sobre controlador, a necessidade de indicação do encarregado de dados, a exigência de políticas de boas práticas e governança, o mapeamento das atividades de tratamento e a definição de procedimentos para o cumprimento de medidas técnicas e administrativas, além de outros, demandando análise cuidadosa de seu escopo de incidência.6

 

Este provimento foi incorporado no Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (Provimento nº 149/2023), notadamente quanto à identificação do requerente e a indicação de finalidade para emissão de certidão de registro lato sensu e prestação de informação (arts. 123 a 128).

 

Na realidade, o citado artigo contém conceito aberto, qual seja, “finalidade do pedido”, que possui conteúdo e valoração eminentemente subjetivos, de modo com que mais parece uma tentativa de adequação formal da privacidade e proteção de dados à atividade registrária do que, propriamente, uma via concreta de efetivação de tais direitos.

 

Isso devido ao fato de que não se mostra razoável atribuir ao registrador emitir juízo de valor quanto à finalidade indicada pelo requerente: uma porque o conceito aberto de finalidade permite a pluralidade de interpretação entre as serventias e impede a adequada prestação do serviço público, em prejuízo ao usuário; outra porque acarreta mitigação da publicidade dos atos registrários, comprometendo toda a sistemática imobiliária, que se fundamenta no efeito erga omnes do registro.

 

Por outro lado, a submissão de tal pedido ao Juízo competente mostra-se em dissonância com a exegese do artigo 18 da lei 6.015/73, do artigo 10, inciso IV e do artigo 13, inciso III da lei 8.935/947 e, ainda, pode causar potencial problema de ordem pública, uma vez que a grande demanda de pedidos no país ensejaria maior burocratização do serviço, tornando-o menos eficiente e célere, o que, nitidamente, não é o intuito.8

 

Nesse cenário, imputar ao requerente da certidão imobiliária a indicação da finalidade do pedido aparenta descabido, já que não tem o condão de evitar eventuais danos ao titular do direito real, porque após a emissão de tais documentos inexiste qualquer controle daquilo que será feito com os dados fornecidos.

 

Por fim, há de se pontuar que a ética é, acima de tudo, produto cultural e não jurídico, de modo com que aquilo que será feito com os dados pessoais contidos em um assento imobiliário transcende o campo do direito, que não deve ser utilizado como ferramenta para mitigação da ampla publicidade inerente ao registro imobiliário, sob pena de ao se valer de normas protetivas de tratamento e de dados pessoais, acabar por comprometer a confiabilidade e a transparência do sistema registrário, mundialmente conhecido por sua segurança e eficácia.

 

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1 KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistema de Transmissão da Propriedade Imobiliária sob a Ótica do Registro. São Paulo: YK, 2021.

 

2 LIMA, Cintia Rosa Pereira de; LIMA,  Marilia Ostini Ayello Alves de. Proteção de dados pessoais e publicidade registral: uma longa caminhada de um tema inesgotável. In: Migalhas de IA e Proteção de Dados. Disponível aqui, acesso em 22 de agosto de 2024.

 

3 ALMADA, Ana Paula P. L. Registro de imóveis. In: GENTIL, Alberto (Coord.). Registros públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.p.363.

 

4 CARVALHO, Afranio de. Registro de imóveis. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 163 e p. 194. Para o referido autor, o princípio da inscrição configura a versão contemporânea da tradição do direito romano, já que o direito real imobiliário decorre de dois elementos diferentes: o título, que consubstancia a vontade das partes e a inscrição, que transforma o direito obrigacional em direito real e possui efeito perante toda a coletividade. Dessa forma, a inscrição tem o mesmo papel da tradição do direito romano.

 

5 LIMA, Cintia Rosa Pereira de; LIMA,  Marilia Ostini Ayello Alves de. Proteção de dados pessoais e publicidade registral: uma longa caminhada de um tema inesgotável. In: Migalhas de IA e Proteção de Dados. Disponível aqui, acesso em 22 de agosto de 2024.

 

6 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; PERROTTA,  Maria Gabriela Venturoti. O provimento 134/22 do CNJ e a aplicação da LGPD aos serviços notariais e de registro. In: Migalhas de IA e Proteção de Dados. Disponível aqui, acesso em 22 de agosto de 2024.

 

7 KÜMPEL, Vitor Frederico. Tratado Notarial e Registral.São Paulo: YK Editora, 1ª Ed., 2020, vol.5, tomo I, p.550.

 

8 CHEZZI, Bernardo. Aplicação da LGPD ao registro de imóveis. In: GALHARDO, Flaviano;  PARO, João Pedro; NALINI, José Renato; BRANDELLI, Leonardo (Coords). Direito registral e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 140.

 

Fonte: Migalhas

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