Em reunião extraordinária semipresencial realizada no dia 2 de julho de 2023, a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara (CPD) aprovou o Projeto de Lei (PL) 5679/23, após deliberação que durou aproximadamente dois minutos e quarenta e cinco segundos. Conforme consta na ementa, o PL tem o objetivo de alterar a Lei do Planejamento Familiar (lei 9.263/1996) para prever que a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes ou com deficiência que impossibilite a expressão da vontade ocorra após autorização judicial e oitiva do Ministério Público, com prioridade de realização dentro dos procedimentos de esterilização cirúrgica eletiva.
Como justificativa, foram invocados os princípios da dignidade humana e da paternidade responsável, somados ao entendimento de que as especificidades envolvendo “pessoas com transtorno mental” seriam pouco conhecidas pelos profissionais da atenção básica nas equipes de Estratégia Saúde da Família, o que dificultaria a difusão das estratégias que estão ao alcance desse público-alvo para aqueles e aquelas que atuam nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Inicialmente, é de se estranhar que seja invocado o princípio da paternidade responsável como fundamento para esterilizar mulheres, que, em regra, são secularmente as responsáveis pelo cuidado e em vilipêndio à sua dignidade.
Além disso, as autoras do PL pontuam que o art. 10, § 6º da lei 9.263/1996, o qual estabelece que a “esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei”, carece de autoaplicação, o que desafia a regulamentação por lei, que inexiste atualmente. Em arremate, concluem pela maior suscetibilidade das pessoas que estariam sob a incidência do regramento a uma gravidez não planejada, o que poderia causar prejuízos aos filhos e onerar as famílias das mulheres que apresentam estas condições.
Ocorre que, sobretudo quando estão envolvidas pessoas vulnerabilizadas e em situação de marginalização social, a ponderação entre a proteção e a desarrazoada intervenção não é tarefa simples. Cabe relembrar as situações que impulsionaram o nascimento da bioética, por meio da publicação dos relatos de “pesquisas” realizadas com cidadãos considerados como de “menor valia”, grupo no qual estavam inseridas as pessoas com deficiências psíquicas, como recorda Henry Beecher na obra “Ethics and clinical ressearch”.
Este fato, dentre tantos outros, evidencia que as pessoas com deficiência já são alvo de interferências indevidas por procedimentos biomédicos desde longa data. Em função disso, é necessário verificar se os interesses invocados como merecedores de tutela devem de fato se sobrepor de forma absoluta ao direito à saúde, autonomia e integridade física, ou seja, à vida digna.
Embora tenha sido pontuada na justificativa do PL uma preocupação com o direito à vida das crianças que são geradas por pessoas com deficiências, indaga-se: teriam essas vidas maior valor do que a daqueles e daquelas que tem alguma deficiência? Mais do que isso: seriam as cirurgias de esterilização, tão invasivas e repletas de repercussões, as únicas alternativas para a proteção? Além disso, e as obrigações paternas? Qual o papel dos homens nos cuidados com as crianças nestes casos?
Convém ressaltar que o direito ao livre planejamento familiar está expressamente previsto no artigo 226, § 7º, da Constituição da República e foi, posteriormente, regulado pela Lei 9.263/1996. Albuquerque elucida sobre as pessoas com deficiência: “A dignidade humana como empoderamento consiste na capacidade individual de fazer escolhas livres, o que permite a construção do edifício dos direitos humanos centrado na promoção da autonomia individual. […] Ressalte-se, assim, que a desconsideração total de sua autonomia não é aceitável, porquanto mesmo quando absolutamente impossibilitada de qualquer entendimento ou de exercício de liberdade, há a adoção dos modelos de decisão substituta que buscam, de alguma forma, contemplar sua autonomia”1.
Ainda tendo como esteio uma norma com status constitucional, conforme o §3º do art. 5º da Constituição, é imperioso relembrar que o Decreto 6.949/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, estabelece que as ações do Poder Público e da sociedade civil devem ser direcionadas a promoção e garantia da dignidade das pessoas com deficiência. De acordo com Diniz, Barbosa e Santos: “O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2008. Isso significa que um novo conceito de deficiência deve nortear as ações do Estado para a garantia de justiça a essa população”2.
No que tange a legislação infraconstitucional, o artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) dispõe expressamente que a pessoa com deficiência não tem a capacidade civil afetada inclusive para “III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória”. No mesmo diploma, outro dispositivo violado pelo PL é o artigo 114, que alterou o Código Civil para prever que são absolutamente incapazes os apenas os menores de 16 anos. Logo, há uma incompatibilidade não apenas com a lei, como também uma evidente confusão entre capacidade civil e deficiência. Vale sempre repisar que findou com a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão a incapacidade absoluta para pessoas maiores de 16 anos, bem como a deficiência em si não mais constitui causa de incapacidade civil, sob pena de afronta ao texto constitucional.
Igualmente preocupante é o poder atribuído ao Judiciário para intervir nos corpos, uma vez que a ausência de parâmetros objetivos e mensuráveis permite uma margem de discricionariedade demasiada, o que pode resultar em uma seletividade extremamente danosa para a sociedade e um retorno ao passado, que definitivamente encontra obstáculo na CDPD. Como exemplo, cita-se a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Esterilização da Mulher que foi instaurada em 1992, com o objetivo de investigar a esterilização em massa de mulheres negras, após a verificação de um número alarmante de procedimentos de laqueadura no Brasil. O controle e a docilização do corpo feminino é reflexo de uma sociedade patriarcal, que impõe sobre as mulheres com deficiência restrições ainda mais severas em sua autonomia, com feição de punição.
Contudo, mesmo após a CPI, seguiram sendo prolatadas decisões judiciais favoráveis a laqueadura mesmo contra a vontade das mulheres, tendo sido amplamente noticiado o “Caso Janaína”. Em 2018, Janaina Aparecida Quirino, que na época tinha 36 anos, foi ao hospital ter seu oitavo filho. Na oportunidade, a casa de saúde não apenas realizou a cesárea, como submeteu Janaína a uma laqueadura cumprindo a ordem judicial, depois de o Ministério Público ter ingressado com uma Ação Civil Pública requerendo a esterilização, sob a alegação de que ela era usuária de entorpecentes e já tinha sete filhos.
Embora não se trate de um julgamento envolvendo pessoa com deficiência, o caso demonstra a seletividade que envolve este tipo de cirurgia e suscita outra preocupação: ao prever a atuação do Ministério Público, o PL parece acrescentar uma proteção, quando na verdade a atuação do órgão já é obrigatória nos casos em que há incapazes, conforme o art. 178, II, do Código de Processo Civil. Além disso, a garantia de prioridade na esterilização compulsória, mencionada no PL, descortina o caráter eugênico, eis que a celeridade milita em desfavor das mulheres, além das ofensas processuais.
Ao comentar o caso Janaína, Schulman elucida: “enfatiza-se a garantia constitucional do planejamento familiar como direito fundamental (§7º do art. 226 da Constituição Federal), a essencial proteção aos direitos reprodutivos (Lei Brasileira de Inclusão, art. 6º, inc. II), o direito de decidir sobre o número de filhos (Lei Brasileira de Inclusão, art. 6º, inc. III), o direito ao corpo, bem como o direito de conservar a fertilidade (Lei Brasileira de Inclusão, art. 6º, inc. IV)”3.
Em sentido semelhante está o entendimento expresso no ARE 1.195.999-RS, julgado em 2019 pela Ministra Carmen Lúcia. Trata-se do caso de uma mulher que era interditada por problemas psiquiátricos irreversíveis, razão pela qual foi autorizada em primeira instância sua laqueadura tubária e, após diversos recursos, o STF não autorizou o procedimento, com fundamento no artigo 226, §7º da CF, no Estatuto da Pessoa com Deficiência e na Lei do Planejamento Familiar. A Ministra pontua ainda que não foram ouvidos os pais da interditada, a própria, os médicos, o Ministério Público e tampouco peritos médicos. Assim, o recurso foi provido para não autorizar a laqueadura.
Por todo o exposto, a previsão de uma regra de esterilização compulsória destinada especificamente para pessoas com deficiência parece discriminatória e, portanto, inconstitucional e com demarcado caráter eugênico. Mais do que buscar proteger as pessoas invadindo seus corpos, propõe-se a promoção do respeito e cuidado. Não há no Congresso Nacional projetos de lei que promovam a educação sexual de forma acessível, o fomento da capacitação de agentes de saúde para o aumento do uso de preservativos e outras formas de contracepção. A esterilização forçada representa uma violência de gênero que desumaniza as mulheres com deficiência, tendo a autodeterminação corporal violada e ceifada.
Conforme as palavras de Leo Pessini: “Isso exigirá uma transformação em termos de cultura organizacional, que envolve mudanças de outros elementos, entre os quais destacamos a passagem de um modelo de cuidados de saúde biomédico para um novo modelo mais holístico que vê o ser humano em sua integralidade; do enfoque hospitalar para o comunitário”4. Em suma, uma transformação que deixe de partir do pressuposto que um corpo com deficiência é um corpo sem sujeito.
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1 ALBUQUERQUE, Aline. Esterilização compulsória de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. Bioethikos, São Paulo, v. 7, n. 1, 2013, p. 20.
2 DINIZ, Debora; Barbosa, Lívia; SANTOS, Wederson Rufino dos. Deficiência, Direitos Humanos e Justiça. SUR. REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, v. 6, 2009, p. 66. Disponível aqui. Acesso em 14 jul. 2024.
3 SCHULMAN, Gabriel. Esterilização Forçada, Incapacidade Civil e o Caso Janaína: não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. REDES – Revista Eletrônica Direito e Sociedade, v. 6, 2018, p. 114
4 PESSINI, Leo. A medicina atual: entre o dilema de curar e cuidar. In: TEIXEIRA; Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (coord.). Dos hospitais aos tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 08.
Fonte: Migalhas
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