Em seu perfil liberal, o Direito Civil, historicamente, sempre foi palco das situações patrimoniais, proeminentes no tráfego jurídico conduzido pelas leis civis. No entanto, a partir da Constituição da República de 1988, a centralidade da pessoa humana em sua intrínseca dignidade desafia uma constante renovação do Direito Civil, agora voltado à tutela concreta da pessoa humana, em especial dos vulneráveis, apto a coibir os atos de discriminação que oprimem e subalternizam ainda mais grupos minoritários.

 

A afirmação abstrata da proeminência das situações existenciais, diretriz nuclear a guiar a interpretação das normas civilistas, desconsidera a complexidade do mosaico social, nichado por múltiplas discriminações, diretas e indiretas, e perpassadas pela interseccionalidade, que num país de profunda desigualdade social agrava a exclusão social e não concretiza o direito à vida digna.

 

Gênero e sexualidade sempre foram assuntos até pouco tempo atrás pouco debatidos no universo do Direito, que habitualmente reproduzia o paradigma dominante binarista e biológico. Contemporaneamente, é indispensável as lentes de gênero para a releitura do direito posto, sob pena de perpetuação das violências e discriminações em nome da abstrata igualdade legal. Vale dizer que a perspectiva de gênero deve considerar seu viés dinâmico e fluído, sob o ângulo da performance social, de modo a evitar a naturalização dos arquétipos biológicos. Por sua vez, a sexualidade sempre foi aprisionada pelo Direito, que contemplava apenas a matriz heterossexual, seja nas relações afetivo-familiares, seja no próprio desenvolvimento da identidade no meio social. Em sua dimensão plural, indispensável proteger as dissidências sexuais, reconhecendo as diferentes formas de exercício da sexualidade e disposição do afeto.

 

O florescer do fenômeno de reconhecimento da emergência das pautas ligadas ao gênero e às sexualidades inicialmente se restringiu aos impulsos do movimento feminista na seara jurídica. Interessante notar, no entanto, que a igualdade de gênero e a promoção da diversidade sexual não é uma pauta exclusivamente feminista ou que apenas deve ser discutido de forma segmentada. Tal temática se impõe e desafia como central a toda comunidade jurídica, que deve reler e reinterpretar o ordenamento como um todo, de forma unitária, na busca incessante por uma igualdade real e concreta entre os gêneros, que não mais se curva ao modelo binário e determinista.

 

Diante desse cenário, a responsabilidade civil é convocada a atuar de forma a repensar a qualificação e quantificação de danos decorrentes de atos de discriminação com base no gênero e nas dissidências sexuais. Em sua feição inicial de viés reparatória e desatenta aos impactos de uma sociedade patriarcal, sexista, machista e heteronormativa, a responsabilidade civil é desafiada a efetivamente ser um instrumento de inibição, prevenção e compensação dos danos injustos sofridos por grupos vulnerabilizados.

 

Ao contrário, apesar do seu potencial e de sua função vital para a harmonia da coexistência humana, a responsabilidade civil ainda parece distante de desempenhar sua vocação de remédio paliativo, mormente emergencial, para os casos de injustos danos por atos de violência e de desigualdade de gênero, de discriminação por homotransfobia e assimetria de poder estruturalmente absorvidas pelo Direito. Infelizmente, a compreensão da responsabilidade civil ainda está distante das diretrizes constitucionais de redução das desigualdades e não-discriminação. Os tradicionais filtros reparatórios, infelizmente, vêm sendo utilizados como obstáculos à efetiva reparação/compensação dos danos discriminatórios injustos, o que reflete na própria quantificação que igualmente desconsidera as especificidades de tais danos.

 

Nesse cenário, como visto, não resta inalterada a seara da responsabilidade civil, de feição residual e instrumento de reparação/compensação, que cada vez mais é acionada diante de um ordenamento que ainda não tem respostas enérgicas e eficazes aos atos de discriminação. Diante dessa conjuntura, foi gestada a obra coletiva “Responsabilidade civil, gênero e sexualidades”, sob o selo do IBERC – Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil e os tipos da Editora Foco, que contou com a adesão de profissionais e pesquisadores(as) de diferentes regiões do país, com a presença de estudiosos de formações acadêmicas e trajetórias de vida diferentes, o que permite uma visão plural do tema sob diferentes ângulos.

 

A presente coletânea é estruturada em 5 eixos temáticos, o que permite uma análise dos temas a partir de uma visão unitária. Na primeira parte, são enfrentadas as funções da responsabilidade civil, não discriminação e comunidade LGBTQIAPN+. Nelson Rosenvald e Wagner Inácio Freitas Dias enfrentam o tema do “Direito dos danos e indenização: A diferença que pesa onde não deveria importar na quantificação dos lucros cessantes”. Vitor Almeida aborda a temática da responsabilidade civil e discriminação por orientação sexual diante dos atos de homofobia. Por sua vez, Thiago G. Viana trata do caso Olivera Fuentes versus Peru julgado pela Corte Interamericana de Direito Humanos (Corte IDH). Sérgio Lorentino examina o tema da responsabilidade civil das agremiações religiosas pela prática de culto de teor discriminatório em razão das questões de gênero e de orientação sexual. O último artigo do primeiro eixo é de Silmara D. Araújo Amarilla sobre a responsabilidade paterna em razão dos danos causados à prole dissidente da heteronormatividade.

 

Em seguida, no eixo sobre responsabilidade civil, transgêneros e intersexo, Carla Watanabe nos brinda com artigo sobre “O apagamento, o lawfare e o cyberbullying como estratégias de discriminação contra pessoas trans”. Vanessa de Castro Dória Melo e Leandro Reinaldo da Cunha enfrentam o tema da responsabilidade civil do Estado pela insuficiência de unidades hospitalares credenciadas para a realização do processo transexualizador. Em parceria com Teila Rocha Lins D’Albuquerque, Leandro Reinaldo da Cunha incursiona pela temática da responsabilidade civil em decorrência da violação póstuma da identidade de gênero. O eixo temático é encerrado com a contribuição de Natan Galves Santana e Tereza Rodrigues Vieira que investigam a luta das pessoas trans pelo direito fundamental à igualdade.

 

Em terceiro lugar, a obra se dedica ao emergente problema da responsabilidade civil e violência de gênero. Inicia-se com o texto de Ana Carla Harmatiuk Matos e Jacqueline Lopes Pereira que investigam o contemporâneo tema da “Responsabilidade civil, gênero e violência obstétrica”. Fernanda Nunes Barbosa e Renata Peruzzo enfrentam as repercussões nos domínios da responsabilidade civil do dano direto e reflexo nos casos de violências de gênero no contexto da violência doméstica. Por fim, Gilberto Fachetti Silvestre analisa a extensão do dano à mulher na violência doméstica ou familiar.

 

No penúltimo eixo temático, emerge as discussões atinentes à responsabilidade civil, planejamento familiar e cuidado sob a ótica do gênero. Cíntia Muniz de Souza Konder enfrenta o polêmico tema da “Responsabilidade civil por concepção indesejada”. Em perspectiva inovadora, Fernanda Paes Leme e Pedro Gueiros propõe análise sobre os úteros artificiais e as novas fronteiras ao planejamento familiar. Andressa Regina Bissolotti dos Santos nos apresenta relevante reflexão sobre a responsabilidade civil pelo tempo dedicado ao cuidado como forma de promover a igualdade material. Finaliza o eixo, o texto de Lígia Ziggiotti de Oliveira e Francielle Elisabet Nogueira de Lima sobre a possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance em hipótese de ausência de divisão de cuidados parentais.

 

Por fim, analisa-se o cruzamento entre discriminação, dados pessoais e gênero. Tal eixo temático inicia com artigo de Ana Frazão e Maria Cristine Lindoso sobre responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados em perspectiva de gênero. Fabíola Albuquerque Lôbo e Camila Sampaio Galvão discorrem sobre o atual tema da responsabilidade civil dos pais pela hipersexualização das filhas influenciadoras mirins. No âmbito da proteção dos dados pessoais, Fernanda Pantaleão Dirscherl e José Luiz de Moura Faleiros Júnior enfrentam a temática da “Responsabilidade civil e dados pessoais sensíveis sobre gênero”. Por fim, encerra a obra o texto de Dóris Ghilardi e Ariani Folharini Bortolatto que trata da responsabilidade civil em razão da exposição não consensual de imagens íntimas a partir da perspectiva da violência de gênero.

 

A coletânea representa movimento de todo indispensável na conformação do ordenamento jurídico aos desígnios constitucionais voltados à promoção de uma sociedade sem discriminações, igualitária e livre. Cuida-se, a rigor, de uma contribuição ao repensar as estruturas da responsabilidade civil, mas sobretudo suas funções, em especial para fins de proteção das dimensões do gênero e da sexualidade a partir do espectro emancipatório e solidarista desenhado pelo constituinte de 1988. Um percurso indispensável de humanização e emancipação da responsabilidade civil voltada à concreta tutela da pessoa humana.

 

Fonte: Migalhas

Deixe um comentário