O atual estado da arte no que se refere à inserção das pessoas no chamado mundo virtual tomou tamanha grandeza que já se pode afirmar, tranquilamente, que muitas pessoas têm uma existência nesse universo que se mostra desvinculada daquela que marca a sua realidade enquanto pessoa natural que compartilha fisicamente os espaços públicos com os demais seres humanos.

 

Nesse plano existencial paralelo já há quem experiencie algumas perspectivas próximas àquelas concebidas apenas em contos fantasiosos e na ficção científica. Circunstâncias similares às trazidas em filmes como “Substitutos” (2009), ou “Jogador nº 1” (2018), ou ainda em séries como “Periféricos”, da Amazon Prime já não parecem tão distantes, especialmente para aqueles que acessam metaversos como Decentraland, Fortnite, Horizon Worlds, Second Life, entre outros. Esses mundos virtuais são concebidos de forma bastante peculiar, possuindo normas de conduta a serem seguida e até mesmo moeda própria.

 

Aqueles que fazem parte desses universos contam com a possibilidade de estabelecerem as características que os representarão enquanto inseridos naquele contexto virtual, sendo permitido que construam os caracteres que identificarão sua existência online. E nesse ponto se confere a esse sujeito a liberdade de construir a sua persona virtual sem que as amarras da realidade física o limitem, inexistindo qualquer obrigatoriedade de que haja uma compatibilidade com o que essa pessoa expressa na vida real, de sorte que já se trabalha com a perspectiva da existência de um corpo eletrônico distinto daquele.

 

A concepção de um corpo eletrônico já é objeto de inúmeros estudos, em diversas áreas do conhecimento, sendo de se ressaltar, no âmbito jurídico, a atenção destinada ao tema por Stefano Rodotá1, tratando dos dados existentes de cada pessoa no mundo virtual. Contudo aqui estamos pensando em algo mais “materializado”, na existência de uma personalidade específica daquela pessoa naquele universo, separada da realidade da vida off-line.

 

Essa persona presente no mundo virtual possui um anonimato2 que afasta a possibilidade imediata de se questionar se ela traz um correlato exato com o que caracteriza o usuário no mundo físico. A ausência da obrigatoriedade de identidade entre a representação virtual e a física atribui a cada pessoa uma autonomia de poder construir-se nesse novo ambiente segundo suas vontades e percepções, sem a existência de uma patrulha social a cercear a sua liberdade.

 

Ao estabelecer sua representação virtual pode expressar desejos e anseios existentes no mundo físico, de forma que alguém pode apresentar-se como uma pessoa de 1,94m de altura quando na verdade tem apenas 1,60m, sem que isso seja um problema. Assim pode construir seu avatar com elementos distintos daqueles do mundo físico, contemplando vontades muitas vezes reprimidas ou impossíveis de serem satisfeitas.

 

Ao montar o seu “eu virtual” é usual que se confira a possibilidade de que o usuário estabeleça suas características vinculadas à sexualidade, momento em que está livre para indicar aspectos associados ao sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero que o definirão enquanto estiver naquele universo, estabelecendo-se uma “sexualidade virtual” atrelada ao seu avatar.

 

Essa sexualidade virtual, distinta daquela expressada no mundo físico, é tema que já recebe atenção em alguns países, com estudos desenvolvidos em diversas áreas do conhecimento, mas que se mostra ainda bastante incipiente no Brasil. A vertente jurídica desse viés da sexualidade é praticamente ignorada, o que fez com que me sentisse compelido à análise do tema em um capítulo específico do meu Manual dos Direitos Transgênero3.

 

A concepção da existência de uma sexualidade virtual, apartada daquela expressada no mundo físico, ganhou certa notoriedade quando se veiculou na mídia a ocorrência de um estupro coletivo na plataforma Horizon Venues, um metaverso vinculado à Meta, que teve como vítima a britânica Nina Jane Patel, em novembro de 20214. Tal fato pode ser visto como mais um dos elementos a atestar a conexão entre mundo físico e virtual, corroborando a preocupação demonstrada já de longa data de que aquele mundo não estaria livre das piores características do “mundo real”5.

 

De toda sorte é inafastável que a sexualidade virtual seja um fato e que o anonimato caracterizador da constituição do avatar do usuário possibilita a expressão de caracteres sexuais distintos dos manifestados no mundo físico.

 

A escolha de indicativos de sexualidade virtual dissociados dos ostentados no mundo físico ou mesmo a opção por personagens que não representem fielmente aquela pessoa pode não significar qualquer tipo de elemento vinculado à sexualidade daquele indivíduo. O “gender-swapping” (troca de gênero) na representação virtual não tem necessariamente uma vinculação com a identidade de gênero daquela pessoa6, de sorte que um garoto que jogou Street Fighter com a Chun-Li, ou mesmo uma garota que optava por lutar como o Ryu não poderiam ser compreendidos como pessoas transgênero apenas por isso.

 

Ali ela não se vê necessariamente representada pelo personagem que está controlando, sendo certo que sua escolha muito possivelmente está baseada nas habilidades demonstradas por esses personagens na dinâmica do jogo ou nos benefícios que pode ter enquanto está inserido naquele universo, sendo uma escolha meramente uma estratégica7.

 

Contudo o estímulo para a escolha pode ser exatamente o desejo de se ver representado, ainda que no mundo virtual, de forma que não “pode” se expressar no mundo físico, conferindo-lhe a realização, ainda que efêmera, de ser quem entende que é no que concerne à sexualidade. Não são poucos os relatos de pessoas integrantes de minorias sexuais, especialmente homossexuais e transgêneros, que puderam expressar pela primeira vez socialmente sua sexualidade no universo online, sem os perigos que essa revelação ordinariamente traz no mundo offline.

 

Por vezes a situação pode se colocar em um lugar extremamente conflituoso e delicado para a compreensão da sexualidade, como retratado no episódio “Striking Vipers” de Black Mirror (5ª temporada), onde dois rapazes heterossexuais na vida real têm seus avatares (um masculino e o outro feminino) se envolvendo amorosamente no universo de um jogo virtual. Quem está nutrindo um sentimento é a pessoa no mundo físico ou a sua persona no metaverso? Há como apartar as duas nesse momento?

 

Importante deixar bastante claro que não estou aqui tratando da conduta deliberada de apresentar-se como alguém de outro gênero com o objetivo de ludibriar ou obter de benefícios econômicos, o que se costuma denominar de “catfish”, o que afasta a discussão acerca do tipo penal do estelionato.

 

O intuito é trazer para discussão a compreensão do que denomino de “transgênero virtual”, figura que se assentaria na “incongruência entre o gênero da vida física e o da persona/representação/avatar criado em alguma plataforma de realidade virtual ou jogo”8, similar ao conceito de “gender switching” ou “online travestism” utilizados por Lynne D. Roberts e Malcolm R. Parks9.

 

Toda a construção aqui desenvolvida tem por fim desembocar na assertiva de que todo o arcabouço da sexualidade virtual goza das mesmas proteções que ordinariamente se confere àquela apresentada no mundo físico10, de sorte que qualquer tipo de preconceito, segregação ou discriminação praticados em decorrência da constatação de que se trata de uma pessoa “transgênero virtual” ou “trans virtual” haverá de ser tratado com os mesmos rigores existentes com relação aos praticados contra uma pessoas transgênero no mundo físico11.

 

Ainda que estejamos distantes de uma sociedade que efetivamente compreenda os parâmetros mínimos do que é a sexualidade e seus alicerces constitutivos não se pode ignorar que é necessário começar a expor desdobramentos mais complexos do tema.

 

Discutir a sexualidade virtual (ou seria a sexualidade 2.0?) na perspectiva jurídica em uma realidade em que preceitos elementares sobre o tema ainda não são dominados pela população de forma geral é um desafio, mas não posso fugir do encargo de enfrenta-lo.

 

Esse é um mister que me compete.

 

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1 Stefano Rodotà. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017.

 

2 Lynne D. Roberts; Malcolm R. Parks. The social geography of gender-switching in virtual environments on the internet. Information, Communication & Society, London, n. 2, v. 4, 2009, p. 524.

 

3 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024.

 

4 Disponível aqui. Acesso em: 28 dez. 2022

 

5 Anita L. Allen. Gender and Privacy in Cyberspace, Stanford Law Review, v. 52, 2000, p. 1179.

 

6 Haeyeop Song; Jaemin Jung. Antecedents and Consequences of Gender Swapping in Online Games, Journal of Computer-Mediated Communication, Volume 20, Issue 4, 1 July 2015, p. 434-449

 

7 Rosa Mikeal Martey; Jennifer Stromer-Galley; Jaime Banks; Jingsi Wu; Mia Consalvo. The strategic female: gender-switching and player behavior in online games. Information, Communication & Society, 17:3, p. 286, 2014. Tradução livre do autor.

 

8 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024.

 

9 Lynne D. Roberts; Malcolm R. Parks. The social geography of gender-switching in virtual environments on the internet. Information, Communication & Society, London, n. 2, v. 4, 2009, p. 521.

 

10 Juliana Luiza Mazaro. A tutela jurídica e o reconhecimento da ‘pessoa virtual’ e da ‘sexualidade virtual’ no ciberespaço. 285 f. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Ciências Jurídicas da Universidade Cesumar, 2023.

 

11 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 172.

 

Fonte: Migalhas

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