Qual é a natureza jurídica da Comissão de Representantes, que é obrigatória no caso de incorporação imobiliária? A resposta é que a sua natureza jurídica é de sujeito de direito despersonalizado. Trataremos disso neste artigo.
A teoria da personalidade jurídica tem de lidar com situações sui generis que não se encaixam perfeitamente no seu figurino. Cuida-se dos sujeitos de direito despersonalizado.
Por conta disso, é equivocado dizer que somente quem tem personalidade jurídica pode ter direitos e deveres.
De um lado, a personalidade jurídica é definida como a aptidão de ter direitos e deveres. As pessoas naturais e as pessoas jurídicas detêm personalidade jurídica.
De outro lado, o ordenamento Aparecida, de modo excepcional, por imperativo prático-jurídico, viu-se forçado a admitir que determinadas massas patrimoniais ou aglomeração de pessoas possam ter direitos e deveres.
É o caso, por exemplo, do espólio, que é uma massa patrimonial que, por razões prático-jurídicas, precisa ser reconhecida como sujeito de direito para, por exemplo, celebrar contratos, ser parte em ações judiciais etc. Com a morte da pessoa natural, o patrimônio desta é indivisível até a partilha entre os herdeiros (art. 1.791 do Código Civil – CC). Enquanto isso, há necessidade de “dar voz” a esse patrimônio, para que, até a concretização da partilha, ele possa praticar atos jurídicos estritamente necessários à conservação e à boa gestão dos objetos e das relações jurídicas do falecido. Por isso, o espólio pode ser parte em processos judiciais e em contratos, por exemplo.
Há outros entes despersonalizados, como os fundos de investimento, a massa falida, o condomínio edilício1 etc.
A diferença prática entre o sujeito de direito personalizado e o despersonalizado não é um exercício diletante de etiquetagem doutrinária. Gera repercussão prática, conforme já tivemos a oportunidade de detalhar em artigo intitulado “Entes Despersonalizados: Controvérsias jurídicas e lacunas legislativas”.2
O sujeito de direito personalizado – que é aquele dotado de personalidade jurídica – sujeita-se a uma legalidade ampla no Direito Privado. Tudo lhe é permitido, salvo o proibido em lei. Por isso, uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica têm aptidão para celebrar qualquer tipo de contrato e praticar qualquer outro ato jurídico.
Já o sujeito de direito despersonalizado submete-se a uma legalidade estrita: Tudo lhe é vedado, salvo lei, costumes ou princípios. Esse é o motivo de um condomínio edilício não poder comprar imóveis em outras cidades para fins meramente especulativos, ainda que tenha contado com a unanimidade dos seus condôminos. Ele não tem aptidão de ter direitos e deveres sem conexão estritamente com a sua razão de ser. Condomínio edilício existe para garantir a coexistência dos condôminos, que estão unidos obrigatoriamente por conta do compartilhamento jurídico-arquitetônico das edificações.3 Isso protegeria os condôminos minoritários de um delírio da maioria em aprovar “taxas extras” altíssimas para levar o condomínio a fazer operações desconexas com a finalidade existencial do condomínio edilício, como comprar ações na Bolsa de Valores, “montar uma empresa” etc.
Nesse contexto, entendemos que a Comissão de Representantes, apesar do laconismo legal, é um sujeito de direito despersonalizado.
Ela, por lei, reúne todos os adquirentes de “imóveis na planta” ou, em palavras mais técnicas, todos os adquirentes de unidades autônomas em regime de incorporação imobiliária.
A constituição da Comissão de Representantes é obrigatória no prazo de seis meses do registo da incorporação imobiliária. E será composta, no mínimo, por três membros escolhidos entre os adquirentes. A constituição dá-se por ata de assembleia devidamente registrada no Cartório de Títulos e Documentos (art. 50, caput e § 1º, lei 4.591/64).
Como sujeito de direito despersonalizado, a Comissão de Representantes pode ser parte em atos jurídicos que tenham estrita conexão finalística com sua razão de ser.
Mas é preciso tomar cuidado: A Comissão de Representantes atua como um síndico do condomínio protoedilício.
O condomínio protoedilício é uma espécie de nascituro do futuro condomínio edilício e nasce com o registro da incorporação. Carlos E. Elias de Oliveira e Flávio Tartuce utilizaram essa expressão (condomínio protoedilício) para unificar doutrinariamente diversos nomes empregados pela legislação para se referir ao mesmo sujeito, como estes: Condomínio sobre as frações ideais (art. 32, § 15, da lei 4.591/64) e condomínio por frações autônomas (art. 213, § 10, da lei 6.015/73).4
O condomínio protoedilício também é um sujeito de direito despersonalizado.
Diante disso, quando a lei 4.591/64 prevê direitos e deveres à Comissão de Representantes, ela, na verdade, está endereçando seus comandos ao condomínio protoedilício, que será operacionalizado pela Comissão de Representantes (que é o síndico desse tipo de condomínio).
Houve certa atecnia da lei 4.591/64, pois ela, em alguns casos, menciona o síndico (no caso, a Comissão de Representantes) quando deveria ter citado o condomínio protoedilício. Essa atecnia, porém, é inofensiva, pois o importante é a tutela dos direitos dos adquirentes das unidades em regime de incorporação imobiliária.
Em suma, entendemos que, como parte dos atos jurídicos devidos (como contratos, propositura de ações etc.), o condomínio protoedilício é que deverá figurar como parte, sob a representação da Comissão de Representantes.
Sob essa ótica, citamos exemplos.
Conforme a lei 4.591/64, a Comissão de Representantes tem direito de exigir do incorporador a entrega trimestral do andamento da obra e, no caso de haver patrimônio de afetação, dos extratos desse patrimônio (art. 31-D, IV e VI; e art. 43, I). Na verdade, a titularidade do direito aí é do condomínio protoedilício, que será representado pelo seu “síndico” (a Comissão de Representantes). Se o incorporador descumprir esse dever, o condomínio protoedilício poderia figurar como parte no polo ativo de uma ação judicial para exigir a entrega desses documentos: a Comissão de Representantes atuará apenas como representante do condomínio protoedilício.
Também, à luz do texto legal, a Comissão de Representantes agirá nas hipóteses de destituição do incorporador, de assunção da condução das obras e em outras hipóteses similares (art. 31-F; art. 43; todos da lei 4.591/64). Na verdade, quem praticará os atos jurídicos é o condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes.
Há momentos, porém, em que o legislador agiu com a mais adequada técnica. Por exemplo, de modo extremamente técnico, o art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73 prevê que, em procedimentos de retificação imobiliária, será exigida a manifestação do condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes.5
Alertamos que, embora o art. 43, § 3º, II, “c”, da lei 4.591/64 faça menção à obtenção do CNPJ pelo condomínio protoedilício por provocação da Comissão de Representantes após a destituição do incorporador, a lei não vedou qualquer obtenção de CNPJ anteriormente.
Aliás, entendemos que é dever do Fisco fornecer o CNPJ ao condomínio protoedilício mesmo antes da destituição do incorporador, sempre que houver requerimento da Comissão de Representantes. Os atos infralegais da Receita Federal precisam ser atualizados nesse ponto.
Na prática, porém, em grande parte dos casos, não há muita utilidade na obtenção do CNPJ. É que, antes da destituição do incorporador, o papel da Comissão de Representantes concentra-se em basicamente fiscalizar o incorporador e tutelar o direito de propriedade dos adquirentes (como no procedimento de retificação extrajudicial na forma do art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73).
O fato é que, mesmo CNPJ, o condomínio protoedilício pode figurar como parte em processos judiciais e em contratos.
Afinal de contas, CNPJ não é um conceito de Direito Civil; não define quem pode ter direitos e deveres. CNPJ é apenas um número didático-fiscal, de natureza cadastral, para viabilizar a atividade de fiscalização tributária.
Enfim, o condomínio protoedilício é um sujeito de direito despersonalizado; seu “síndico” é a Comissão de Representantes, que também é um sujeito de direito despersonalizado.
Quanto à organização interna, a lei 4.591/64 dá liberdade aos adquirentes, que podem eleger um administrador para “assinar” em nome da Comissão de Representantes ou podem até exigir sempre a “assinatura concomitante” de todos os adquirentes na atuação da Comissão de Representantes. Deixaremos, porém, esse debate da organização para outro momento.
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1 Há quem sustente que o condomínio edilício é dotado de personalidade jurídica. Deixamos de aprofundar o tema aqui.
2 Disponível aqui.
3 Anotamos que, do ponto de vista prático, nada mudaria se, tal como sugere o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, fosse expressamente reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício com a proibição de que pratique atos alheios à sua finalidade existencial. O texto do Anteprojeto está disponível aqui.
4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Disponível aqui. Publicado em 23 de janeiro de 2023.
5 “Art. 213. (…)
(…)
- 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte:
I – o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos;
II – o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes”.
Fonte: Migalhas
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