Durante o período mais crítico de enfrentamento à pandemia de Covid-19, o Poder Judiciário promoveu significativas adaptações em seus procedimentos, visando garantir a efetividade da prestação jurisdicional sem comprometer os direitos das partes litigantes. As medidas de distanciamento social, impostas por normas emanadas de distintas esferas de competência, consolidaram a prática das audiências virtuais ou, ao menos, em formato híbrido, como solução para a continuidade das atividades processuais.
Com o arrefecimento da fase emergencial da pandemia, constata-se uma nova realidade no âmbito do Judiciário, na qual a manutenção das audiências virtuais passou a se revelar corriqueira em diversos feitos.
Não obstante, permanece a controvérsia sobre a prevalência da audiência virtual como regra ou exceção.
Neste contexto, é pertinente questionar até que ponto as audiências virtuais constituem um direito da parte que litiga em juízo. Existem limitações quanto à sua realização? Pode o magistrado determinar a realização de uma audiência presencial, em desfavor do pleito das partes pela realização de audiência virtual?
Como cediço, a Resolução nº 481, de 22 de novembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revogou as Resoluções vigentes à época da pandemia do coronavírus e alterou as Resoluções nº 227/2016, 343/2020, 345/2020, 354/2020 e 465/2022, naturalmente, todas no CNJ.
Em suma, a decisão estabeleceu o retorno dos magistrados e servidores do Poder Judiciário ao trabalho presencial, em decorrência do término da situação de emergência sanitária.
Todavia, tal determinação não resultou na extinção dos atos processuais realizados por meio de videoconferência ou por outros instrumentos de transmissão audiovisual. Ao contrário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) manteve a possibilidade de execução de tais atos, promovendo, inclusive, a revisão de normativas regulamentares aplicáveis. Ademais, o disposto no art. 236, §3º, do Código de Processo Civil (CPC) permanece vigente, assegurando a realização de atos processuais por videoconferência.
Para empancar qualquer dúvida, vejamos o que o CNJ, em sua página oficial, noticiou em 16/11/2022, em reportagem intitulada como “Retorno do Judiciário contará com audiências presenciais e telepresenciais”, ipsis verbis:
“O Plenário do CNJ decidiu que, em regra, as audiências devem ocorrer de forma presencial. Entretanto, audiências telepresenciais podem acontecer, com o magistrado presente na unidade judiciária, desde que dentro das hipóteses previstas na Resolução CNJ n. 354/2020, ou seja, haja pedido de um dos participantes, quando um ato processual deva ser praticado virtualmente ou em algum dos seguintes casos: (…).
(…)
De acordo com o art. 2º da Resolução CNJ n. 354/2020, as partes possuem a prerrogativa de optar pela audiência telepresencial, a menos que a audiência envolva réus presos. Nesses casos, o juiz terá o poder de decidir o modo pelo qual realizará interrogatório, de acordo com as circunstâncias descritas no segundo parágrafo do artigo 185 do Código de Processo Penal (CPP).” Texto: Manuel Carlos Montenegro
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias
Isso se extrai do próprio preâmbulo da Resolução nº 481, que elenca os motivos determinantes da alteração normativa:
“CONSIDERANDO o dever constitucional e legal de o magistrado residir na comarca em que atua;
CONSIDERANDO o necessário retorno de magistrados e servidores do Poder Judiciário à atividade presencial em razão do fim da emergência sanitária criada pelo Coronavírus – Covid-19;
[…]
CONSIDERANDO as conquistas que a evolução tecnológica trouxe para o cotidiano da atividade judiciária durante a pandemia do Coronavírus, bem como a necessidade de conjugar os ganhos na qualidade de vida de servidores e magistrados com o trabalho remoto, em especial em decorrência das dificuldades de mobilidade urbana, assim como a redução de gastos registrada por vários tribunais;”
A leitura do excerto acima permite concluir que a resolução em questão não visou a abolir os atos processuais realizados de forma virtual. Pelo contrário, ela reconhece as “conquistas que a evolução tecnológica trouxe para o cotidiano da atividade judiciária“. A real intenção da nova Resolução, conforme indicado em seu preâmbulo, é compatibilizar essas conquistas com a presença física dos magistrados em suas respectivas comarcas, a qual se tornou novamente necessária e viável após o término da pandemia de Covid-19.
É importante ressaltar que permanece em vigor a Resolução nº 354/2020 do CNJ, que regulamenta a realização de audiências e sessões por videoconferência e telepresenciais, bem como a comunicação de atos processuais por meio eletrônico nas unidades jurisdicionais de primeira e segunda instâncias da Justiça dos estados, federal, trabalhista, militar e eleitoral, excetuando-se o Supremo Tribunal Federal.
Na verdade, é preciso consignar que a própria Resolução nº 481/2022 do CNJ deu nova redação ao artigo 3º da Resolução nº 354/2020, nos seguintes termos, in verbis:
“Art. 3º. As audiências só poderão ser realizadas na forma telepresencial a pedido da parte, ressalvado o disposto no § 1º, bem como nos incisos I a IV do § 2º do art. 185 do CPP, cabendo ao juiz decidir pela conveniência de sua realização no modo presencial. Em qualquer das hipóteses, o juiz deve estar presente na unidade judiciária. (redação dada pela Resolução n. 481, de 22/11/2022)
- 1º. O juiz poderá determinar excepcionalmente, de ofício, a realização de audiências telepresenciais, nas seguintes hipóteses: (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)
I – urgência; (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)
II – substituição ou designação de magistrado com sede funcional diversa; (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)
III – mutirão ou projeto específico; (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)
IV – conciliação ou mediação no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de Conflito e Cidadania (Cejusc); (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)
V – indisponibilidade temporária do foro, calamidade pública ou força maior. (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)
VI – atos processuais praticados em Pontos de Inclusão Digital, na forma da Resolução CNJ 508/2023. (incluído pela Resolução n. 508, de 22.6.2023)
- 2º. A oposição à realização de audiência telepresencial deve ser fundamentada, submetendo-se ao controle judicial. (redação dada pela Resolução n. 481, de 22.11.2022)”
Nessa toada, ressoa inconteste que o pedido da parte para que a audiência seja telepresencial é suficiente, cabendo ao juiz, na hipótese de indeferir, fundamentar pela conveniência no modo presencial.
Da análise do texto do artigo 3º da Resolução 354/20 do CNJ a realização de audiência telepresencial por requerimento da parte é regra, que — pelo próprio texto — comporta duas exceções:
- a) decisão por conveniência do juízo (artigo 3º da Resolução 354/20 do CNJ);
- b) oposição fundamentada da outra parte (artigo 3º, §2º, da Resolução 354/20 do CNJ).
Primeiro, portanto, a parte (inclusive a Fazenda Pública) pode requerer que as suas audiências sejam realizadas na forma telepresencial. O artigo 3º da Resolução nº 354/2020, com redação dada pela Resolução nº 481/2022 não permite outra conclusão. E o indeferimento só pode ocorrer em duas hipóteses: por conveniência do juízo e por oposição fundamentada da outra parte.
E aqui cabe um registro: a simples discordância de uma das partes para de que a audiência seja telepresencial não é suficiente ao indeferimento do ato. Ou seja, a normativa não pressupõe concordância de ambas as partes para que o ato seja realizado de forma virtual. Basta o requerimento de uma das partes; essa medida só pode ser indeferida, repita-se, por conveniência do juízo e por oposição fundamentada da outra parte, nunca por apenas liberalidade. Essa parece ser a melhor interpretação aplicável ao caso.
Cumpre ressaltar que, devido ao funcionamento adaptado durante a pandemia, o Judiciário agora possui a viabilidade técnica para a realização de audiências por videoconferência ou em modalidade híbrida. Assim, a alegação de inconveniência por motivos técnicos, salvo casos pontuais como problemas provisórios de acesso à internet, não parece mais justificável.
Outrossim, o Código de Processo Civil, em seu artigo 8º, estabelece que “o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.
Evidentemente, o juízo de conveniência do juiz para a não realização da audiência telepresencial deve perpassar pelos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, inclusive administrativa (artigo 37, caput, CF), assim como também se deve observância aos vetores constitucionais da efetividade jurisdicional e da duração razoável do processo (artigo 5º, XXXV e LXXVIII, CF).
Certamente, o leitor pode ter enfrentado ou ouvido relatos de colegas sobre situações como as seguintes. Uma audiência presencial é marcada, mas não ocorre na data e hora previstas devido a motivos como: a) ausência de intimação de uma das partes; b) ausência do representante do Ministério Público, cuja presença é obrigatória; c) esgotamento da pauta, resultando em conflito com outra audiência, entre outros.
Em todas essas circunstâncias, o tempo — um recurso de valor inegável na atualidade — poderia ter sido melhor aproveitado se a audiência, que acaba sendo cancelada por adversidades, tivesse sido originalmente designada para ocorrer de forma telepresencial.
Audiências no juízo 100% digital
Ademais, há outro aspecto que reforça o entendimento que vem sendo desenhado nessas breves considerações.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução n. 345/2020, ainda instituiu o “Juízo 100% Digital”; segundo a normativa, “no âmbito do “Juízo 100% Digital”, todos os atos processuais serão exclusivamente praticados por meio eletrônico e remoto por intermédio da rede mundial de computadores” (artigo 1º, §1º, redação dada pela Resolução nº 378, de 9/3/2021).
A escolha pelo “Juízo 100% Digital” incumbe às partes, de acordo com o artigo 3º, da Resolução nº 345/2020, devendo o demandante realizar a opção quando do ajuizamento e à parte adversa se opor a tal escolha até sua primeira manifestação nos autos, sob pena de preclusão (salvo no processo do trabalho, em que essa oposição deverá ser deduzida em até cinco dias úteis contados do recebimento da primeira notificação). Ademais, a qualquer tempo, o magistrado poderá instar as partes a manifestarem o interesse na adoção do “Juízo 100% Digital”, ainda que em relação a processos anteriores à entrada em vigor da Resolução, importando o silêncio, após duas intimações, aceitação tácita (artigo 2º, §4º).
Destarte, a implementação do “Juízo 100% Digital” conforme a Resolução nº 345/2020 do Conselho Nacional de Justiça representa um avanço significativo na digitalização do processo judicial. Ao estabelecer que todos os atos processuais sejam realizados exclusivamente por meio eletrônico e remoto, a norma visa a modernizar e otimizar o funcionamento dos tribunais. Esse modelo reflete um esforço contínuo para adaptar o sistema judiciário às necessidades contemporâneas e promover a eficiência processual, tornando o sistema mais acessível e dinâmico.
As audiências telepresenciais estabeleceram-se como uma realidade indiscutível no cenário jurídico contemporâneo, configurando um marco irreversível na evolução dos procedimentos judiciais. Este modelo, consolidado e inegável, representa uma transformação permanente na condução das sessões judiciais, refletindo a adaptação irreversível do sistema judicial às demandas da era digital.
Fonte: Migalhas
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