Este artigo explora a relevância da perspectiva de gênero no Direito das Famílias, destacando a importância do Protocolo de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como uma ferramenta essencial para promover a equidade de gênero e a inclusão social no sistema jurídico brasileiro.
Discutem-se as dinâmicas de gênero nas relações familiares, os desafios impostos às mulheres em processos judiciais e a necessidade de uma transformação estrutural que permita uma análise interseccional. Afirma-se que a implementação do Protocolo de Gênero é um passo crucial para uma justiça mais justa e humana.
O Direito das Famílias é uma das áreas mais progressistas do sistema jurídico, especialmente em temas como multiparentalidade, socioafetividade e união estável homoafetiva. No entanto, essa área é também marcada por uma resistência conservadora, especialmente em questões de gênero, classe e raça.
O Protocolo de Gênero do CNJ, instituído pela Resolução 492/2023, visa a aplicação de uma perspectiva interseccional nos julgamentos, exigindo capacitação dos magistrados(as) e promovendo um Direito das Famílias mais inclusivo e consciente dos impactos sociais das decisões judiciais.
A implementação do Protocolo de Gênero do CNJ representa uma mudança estrutural necessária no Judiciário brasileiro, permitindo que fatores interseccionais sejam considerados nas decisões judiciais. Esse protocolo, além de promover a inclusão e a equidade, sugere uma releitura das normas sob a ótica da pluralidade e diversidade.
A interseccionalidade é destacada como um elemento essencial para uma justiça verdadeiramente igualitária, reconhecendo que gênero, raça, classe e outras características sociais influenciam as vivências das pessoas.
Importante destacar que as questões de gênero dizem respeito a todas e todos, pois escutar uns aos outros é fundamental, conforme destaca Marcia Tiburi (2018). Isso porque homens historicamente não escutam mulheres, brancos não escutam negros, ricos não escutam pobres, heterossexuais não escutam pessoas da comunidade LGBTQIAPN+.
Historicamente, o Direito das Famílias foi moldado para manter a estrutura patriarcal, muitas vezes ignorando ou relativizando as demandas e a credibilidade das mulheres em processos judiciais. Casos de alienação parental, por exemplo, são frequentemente utilizados para enfraquecer as denúncias de violência contra as mulheres, promovendo uma distorção da justiça em favor de homens acusados de violência. Assim, o Protocolo de Gênero do CNJ atua como uma ferramenta para assegurar que as mulheres sejam ouvidas de forma justa e para evitar que seus direitos sejam minimizados ou desrespeitados.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, não é um fim em si, é um meio, e esse meio é importante para alcançar a chamada justiça, mas, de forma efetivamente mais justa, sem variáveis estigmatizadoras e rotuladoras, bem como sem diminuição de direitos em virtude das assimetrias de gênero.
Importância das nomenclaturas
O Protocolo de Gênero do CNJ pode ser separado em três partes: a primeira possui forte fundamentação teórica, com interseccionalidades, gênero e conceitos. A segunda conta com um “Guia passo a passo”, orientando magistrados e magistradas na atuação prática. Já a terceira parte aborda as ramificações especificas do Direito, uma delas descrita como “Direito de Família”, sem a tão importante pluralidade no nome, pois a letra “S” no final da palavra anuncia de onde estamos vindo, como nos posicionamos e para quem estamos falando. Ou seja, de forma mais ampla e crítica deveria estar descrito “Direito das Famílias”.
Outra observação importante diz respeito à utilização do termo “menor” ao longo do texto, quando se faz referência a criança, sendo que “menor” é extremamente pejorativo e remete ao Código de Menores, e o Estatuto da Criança e do Adolescente busca abandonar termos como esse.
O enfrentamento aos atravessamentos de gênero na área de família perpassa, também, pelos termos utilizados. Assim, é importante ter atenção com as nomenclaturas. Mas as questões apontadas aqui não são críticas destrutivas ao Protocolo de Gênero do CNJ; são somente observações que precisam ser feitas para reformas possíveis de melhorias. Ainda, o Direito das Famílias está presente ao longo de todo protocolo e não só em um tópico específico.
‘A cidade é deles’
Uma pergunta ecoa: como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pode ser difundido entre as pessoas ligadas ao sistema de justiça?
A educação pode ser um caminho próspero, pois é essencial para transformar o sistema jurídico em uma estrutura mais justa e humana. Para que o Protocolo de Gênero seja efetivo, é necessário que operadores do Direito, magistrados e estudantes sejam capacitados para compreender as dinâmicas de gênero e os impactos das assimetrias sociais nos processos judiciais. Citando Paulo Freire (2019), “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”, daí a importância de construir um saber jurídico consciente e comprometido com a justiça social.
A todo momento as pessoas estão sendo educadas: na infância, com brinquedos, cores de roupa, performatização de um jeito de ser, algo que é cobrado pela família, relações sociais, escola. Margareth Rago (2015), afirma que os espaços produzem comportamentos, tipos de relações. Basta observar as cidades, sua arquitetura masculina, as estátuas de homens, nomes de ruas predominantemente de homens. Esses signos passam um recado: “a cidade é deles”. Diante disso, a construção do conhecimento é determinante para mudança e transformação social, pois a educação, seja ela, formal, informal, escolarizada, popular, tem um papel determinante.
A construção do saber de forma universalizada ampara as pessoas, mas apaga e invisibiliza muitas delas. O protocolo de gênero do CNJ vem dizer que não se deve falar em mulher e menina, mas em mulheres e meninas, em seus marcadores sociais, para verificar as especificidades de cada uma. Com isso, dúvidas pairam no ar: se hierarquiza opressões? Violências? Para isso se faz necessário lembrar dos ensinamentos de Audre Lorde (2019), que diz não haver hierarquia de opressão, pois, opressão é opressão, mas determinadas mulheres ou meninas experienciam diferentes tipos de opressões a depender das intersecções que as acompanham.
‘Sonhar com as mãos’
No meio jurídico parece haver uma descrença quanto à efetividade do Protocolo de Gênero do CNJ, como se com o passar o tempo, este cairá no esquecimento. Alguns conservadores ousam dizer que o protocolo veio para destruir parte do Judiciário, que é exagerado, que a criticidade vai gerar desigualdades, isso tudo na tentativa de invalidá-lo. Marcia Tiburi (2020) diz, porém, que “a crítica não é a destruição daquilo que se quer conhecer, mas sim, uma desmontagem organizada que permite a reconstrução do objeto anteriormente desmontado”. Assim, é possível pensar que o protocolo é um instrumento capaz reconstruir, desmontando o que for preciso, para montar novamente, olhando para o que se precisa com outras lentes, outros olhares.
Mas, se o conhecimento crítico se disseminar e for cada vez mais compreendido e observado por todas e todos que atuam na máquina do Poder Judiciário, isso gerará saberes que atuarão com mãos humanas, e isso, como diz o poeta Sérgio Vaz, é “sonhar com as mãos”. Assim, falar em releitura do Direito das Famílias a partir do protocolo é falar nas modificações estratégicas das formas de atuação, que perpassa pela educação, nas aulas de graduação ou pós-graduação, nas doutrinas jurídicas, produções teóricas e demais áreas da educação.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ nasce em 2021, como uma recomendação, porém, com o advento da Resolução 492/2023 do CNJ, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, bem como a sua aplicabilidade na prática judiciária. Para cobrar a efetividade do Protocolo de Gênero, é preciso conhecê-lo com profundidade para exigir a sua aplicação.
Os resquícios patriarcais são muitos e, diante disso, os operadores do Direito devem estar atentos em seus escritos, nas abordagens nos casos em que atuam, pois não é incomum processos que contenham fotos íntimas de mulheres, para demonizar a imagem delas. Muitos advogados e advogadas usam linguagem pejorativa contra mulheres para defender seu cliente, ofendendo as mulheres, praticando outra violência contra uma mãe, uma mulher, uma menina. Tais atos geram responsabilidades civis, por isso, é imprescindível filtrar o que a parte fala, para que no momento de redigir uma petição, por exemplo, não contenha palavras ofensivas em relação as mulheres ou meninas.
Enfim, é necessário observar que “o sistema jurídico também tende a reproduzir, tanto em suas normas quanto no momento de aplicação no caso em concreto, as assimetrias de gênero em prejuízo das mulheres”, principalmente as mulheres negras, trans, periféricas, com diversidade funcional, indígenas, que possuem, além do marcador gênero, outros marcadores que multiplicam suas opressões.
Djamila Ribeiro faz a seguinte reflexão: “pensar a partir de novas premissas é necessário para se desestabilizar verdades”. Que a partir do conhecimento da existência do Protocolo de Gênero do CNJ, se possa olhar para as mulheres e reconhece-las como sujeitas que devem ter todo olhar e a proteção do poder judiciário, as reconhecendo-as, pensando um direito das famílias a partir de novas premissas com o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero.
Por fim, o Protocolo de Gênero do CNJ é uma medida necessária e urgente para corrigir desigualdades históricas e estruturais no sistema de justiça brasileiro. Ao promover a capacitação dos profissionais do Direito e considerar fatores interseccionais, o protocolo contribui para a criação de um ambiente judicial mais justo e menos discriminatório. Essa abordagem garante que o Direito das Famílias seja verdadeiramente inclusivo, atendendo às necessidades de todas as pessoas, especialmente das mulheres e grupos vulnerabilizados. É fundamental, portanto, que essa iniciativa seja amplamente conhecida, aplicada e respeitada dentro do Judiciário.
Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 492, de 10 de novembro de 2023. Institui o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero no âmbito do Poder Judiciário.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
LORD, Audre. Violências. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.) Pensamentos Feministas: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 235-238. HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Duke University Press, 2016.
RIBEIRO, Djamila. Exploração Sexual Infantil. 5ª Edição. Youtube, 18 de maio de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzHzG7a9PvI. Acesso em 20 set. 2024.
TIBURI, Márcia. Feminismo em Comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Editora Record (Rosa dos Tempos), 2018.
Fonte: Conjur
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