A autocontenção judicial e o ativismo judicial.

Decisões judiciais invisíveis são proferidas aos milhões todos os dias. Digo invisíveis, porque agir conforme o Direito, respeitando os limites institucionais, dificilmente excita o algoritmo e gera visualizações, curtidas, salvamentos, comentários ou compartilhamentos.

No entanto, quando uma decisão judicial é proferida em descompasso com o Direito, como decorrência de uma indevida apropriação de poder, invariavelmente se transforma em manchete de sites e de redes sociais, gerando engajamento para o deleite dos críticos e dos defensores.

É nessa faixa do campo que joga o ativismo judicial – de judicial activism, expressão do historiador americano Arthur Schlesinger Jr -, alimentado pela própria sociedade (nemo judex sine actore), inclusive pela doutrina.

Para Julio Grostein, o ativismo judicial se caracteriza por exprimir uma criação judicial, evidenciar uma atuação judicial seletiva e discricionária, produzir efeitos negativos à democracia e à pluralidade, e denotar uma indevida politização do Poder Judiciário.

Numa outra perspectiva, Marco Jobim e Zulmar Duarte enxergam o ativismo como uma postura judicial ativa na resolução dos conflitos, extraindo do direito positivo “toda a sua plenitude e eficácia, sem diminuir ou reduzir as possibilidades de desenvolvimento dos seus comandos no que atrelados a tal finalidade.”

Ao final, propõem um ativismo judicial dialógico, que equilibraria a atividade jurisdicional a partir de um debate envolvendo as partes, os interessados, os demais poderes e a sociedade civil.

Posiciono o ativismo judicial como indevida tomada de poder instrumentalizada por um drible na ordem jurídica natural ou no processo político majoritário, para decidir à margem do Direito.

Sob este prisma, não existe ativismo do bem; o ativismo judicial é sempre do mal, e como tal deve ser tratado, embora não se de deva julgar a regra pela exceção.

Como diz Georges Abboud, “O ativismo judicial é um pernicioso atalho, que se alija do caminho democrático do dissenso e da deliberação política.”

A investidura dá ao juiz o poder de dizer o direito (de juris dictio), aplicando o Direito (de directus, reto, sem curvas) ao caso, e de efetivá-lo, não o poder de criar uma ordem jurídica própria.

Nem mesmo a existência de uma ordem natural, moralmente inviolável, cujas normas se impõem à vontade do legislador (José Pedro Galvão de Sousa), confere ao juiz esse poder criativo, porque a ela o magistrado também se submete.

Juiz não legisla, nem sob a escusa: de concretizar princípios ou direitos fundamentais programáticos, de fazer um pseudo-controle de constitucionalidade, transformando questões infraconstitucionais (ou constitucionais por reflexo) em questões diretamente constitucionais, ou ainda, transformando o controle de constitucionalidade em mero juízo de razoabilidade, de proporcionalidade ou de ponderação; da vedação ao non liquet ou de suprir uma suposta omissão ou atuação deficiente de outro Poder.

Além disso, juiz não elabora políticas públicas, nem dá prazo para que sejam elaboradas, desestabilizando a harmonia entre os poderes.

Subterfúgios genéricos, como estado contínuo de desconformidade, estado inconstitucional de coisas ou situação permanente de irregularidade, não conferem capacidade institucional ao Judiciário para administrar.

Nesse contexto, o amplo diálogo processual e a tentativa prévia de conciliação, importantíssimos para o processo, não são poções mágicas capazes de converter uma incapacidade numa capacidade institucional.

Ao jogar fora de casa, numa arena estritamente política, o julgador, cuja legitimidade deve ser preservada, esquece de que a sua independência foi historicamente conquistada quando deixou de decidir de acordo com poder político para decidir de acordo com o Direito.

O ativismo judicial é também uma fonte de insegurança jurídica, especialmente de imprevisibilidade e de quebra de confiança na ordem jurídica.

Juiz não salva a democracia, não faz justiça social, nem combate a impunidade. Estas podem ser consequências de sua atuação, nos limites da ordem natural e constitucional, não o objeto dessa atuação.

Também não é dado ao juiz o poder de criar filtros processuais de admissibilidade, nem o poder engendrar procedimentos. O magistrado pode adaptá-los às partes e ao direito em discussão, respeitados o contraditório e o dever de motivação (a respeito do tema, vale a leitura da obra Flexibilização Procedimental, de Fernando Gajardoni), mas o rito não lhe pertence como se fosse um objeto particular.

A complexidade das relações jurídicas atuais e a ausência do consenso conduzem o legislador à adoção cada vez mais frequente de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados. A interpretação de tais cláusulas e de tais conceitos exige uma maior atuação do magistrado na revelação da norma, mas exegese, ainda que distinta da literal, não é pretexto para expansão voluntarista de comando normativo, não se confunde com discricionariedade judicial e não dispensa uma fundamentação analítica ou racional, ainda que sucinta.

A propósito, o Direito brasileiro também se deixou enfeitiçar pelos princípios – e não é de hoje -, o que me faz lembrar de duas frases bem humoradas: “Estes são os meus princípios. Se não lhes agrada, tenho outros (Groucho Marx); e “Eu quero é regra” (Beclaute Oliveira).

Como pau que bate em Chico, bate em Francisco, também ocorre, de forma igualmente excepcional, um certo ativismo judicial vertical, com o CNJ avançando a cada dia novas jardas sobre o campo estritamente jurisdicional.

Ressalto, porém, que ativismo judicial não se confunde com atenção às circunstâncias particulares do caso e aos fins normativos (circunscritos ao próprio Direito). Processo é meio de resolver problemas com sensatez, não de criá-los ou de ampliá-los.

Em tempos de estranho relativismo, a autocontenção judicial, quase sempre invisível aos olhos da mídia e da sociedade, ainda é a regra, que não pode se deixar seduzir pelos encantos traiçoeiros da seletiva exceção ativista, para o bem do próprio Judiciário, do pluralismo político e da democracia.

Fonte: Migalhas

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