O transporte marítimo é um dos pilares do comércio internacional, responsável por grande parte do escoamento de mercadorias entre países. O contêiner, como principal equipamento de movimentação de cargas, é fundamental para garantir a eficiência e a segurança nas transações comerciais globais. Nesse cenário, surgem institutos como a demurrage e a detention, que disciplinam a utilização e a devolução de contêineres, bem como o prazo para a realização dessas operações.

Neste ensaio analisaremos esses institutos, explorando conceitos, diferenças, e a natureza jurídica das cobranças, a relevância do “free time” e a importância da previsão contratual, enfocando a jurisprudência contemporânea, destacando as responsabilidades de transportadores, importadores e outros atores da cadeia logística.

O transporte marítimo de cargas remonta às primeiras civilizações, quando os oceanos se tornaram rotas estratégicas para o comércio. O contêiner desempenha um papel essencial nesse cenário, funcionando como uma unidade padronizada que protege a carga e facilita o manuseio, armazenamento e transporte.

No Brasil, a legislação confere ao contêiner o status de equipamento acessório ao navio, não sendo considerado embalagem das mercadorias. A lei 6.288/75, posteriormente revogada pela Lei 9.611/98, estabelecia que o contêiner deve atender às normas técnicas e de segurança, sendo parte integrante das operações logísticas. Essa regulamentação buscava garantir previsibilidade e eficiência no uso desses equipamentos, cuja indisponibilidade pode comprometer as atividades comerciais do armador.

Ademais, os contêineres proporcionaram uma verdadeira revolução logística, permitindo maior eficiência no transporte intermodal, reduzindo custos operacionais e mitigando os riscos de avarias ou roubos. Essa padronização também facilita a adoção de soluções tecnológicas, como rastreamento em tempo real, contribuindo para a transparência das operações.

A demurrage e a detention são institutos próprios do Direito Marítimo que disciplinam o uso e a devolução dos contêineres, respectivamente pelos importadores e pelos exportadores.

A demurrage refere-se à sobreestadia do contêiner em um terminal ou porto após o término do prazo de “free time”, tendo como objetivo compensar o armador pela indisponibilidade do contêiner. A demurrage possui natureza indenizatória, sendo preestabelecida em contratos ou tabelas publicadas pelos armadores.

A detention, por sua vez, aplica-se quando o contêiner é devolvido ao armador após o prazo estipulado, para as providências de embarque. É considerada uma indenização pelos custos associados à indisponibilidade do equipamento, afetando diretamente a logística do armador. Embora menos mencionada que a demurrage, sua aplicação depende igualmente de previsão contratual.

A natureza jurídica de ambos os institutos tem sido amplamente discutida nos tribunais. Por possuírem caráter indenizatório, sua cobrança não depende da comprovação de prejuízos diretos, mas sim da configuração do descumprimento contratual. Tal entendimento é fundamental para garantir a segurança jurídica nas relações comerciais internacionais.

O “free time”, como é sabido, é o período de franquia concedido ao consignatário e/ou embarcador da carga, durante o qual não incidem as cobranças por demurrage ou detention. Esse prazo é essencial para que o importador conclua o desembaraço aduaneiro, transporte e a desova do contêiner. No entanto, a ausência de previsão contratual, embora não seja prescindível, pode gerar litígios e interpretações conflitantes.

Uma previsão contratual robusta e transparente deve incluir a definição do prazo de “free time”, os valores aplicáveis por demurrage e detention, o formato da cobrança e, ainda, as situações excepcionais que possam justificar a extensão do prazo sem cobrança adicional.

Quando bem estruturados, tais contratos evitam ambiguidades, fortalecendo o princípio da boa-fé e minimizando os riscos de judicialização das cobranças.

Como não poderia ser diferente, o Conhecimento Marítimo (Bill of Lading – BL), como documento essencial no transporte marítimo que é, cumpre três funções principais: recibo da mercadoria, título de propriedade e evidência do contrato de transporte. Há uma questão relevante e comum nessa cadeia logística, e que repercute em relação ao tema pode trazer repercussão quanto a responsabilidade em relação a demurrage e detention, que são os casos com emissão de Master BL (MBL) e House BL (HBL).

O Master BL é aquele emitido pelo armador ou transportador de fato, que regula a relação contratual entre este e o agente de carga. O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador, regulando obrigações entre o agente e o consignatário.

Esses documentos são frequentemente objeto de disputas quanto à responsabilidade pelas taxas de demurrage e detention. A ANTAQ, em decisão recente (processo nº 50300.019623/2020-00), destacou que o consignatário do House BL não tem legitimidade para questionar os termos do Master BL, reforçando o princípio da individualidade contratual.

O correto entendimento dos papéis desempenhados por cada um dos atores envolvidos é de suma importância para o deslinde de disputas relacionadas com demurrage e detention.

A evolução tecnológica também impactou o uso do BL, com a crescente adoção do e-BL (Bill of Lading eletrônico). Essa inovação busca reduzir custos, aumentar a eficiência e mitigar riscos relacionados à manipulação de documentos físicos, sem comprometer sua segurança jurídica.

A jurisprudência, há muitos anos, é farta em casos que discutem a incidência da cobrança após o término do “free time”. Em recente decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Apelação nº 0000643-32.2018.8.24.0050), concluiu-se que, mesmo diante de condições climáticas adversas, a responsabilidade pelo pagamento da demurrage recai sobre o importador, considerando que a previsibilidade desses eventos está íntima ao risco da atividade logística.

Também em julgamento recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enfrentou questões centrais envolvendo a cobrança de demurrage. A ação foi proposta pela transportadora visando o pagamento de quantia que entendia ser devida pela sobreestadia de contêineres.

A decisão abordou aspectos relevantes, como a natureza jurídica da demurrage, reconhecendo que a demurrage possui caráter indenizatório, destinado a compensar o transportador pela indisponibilidade dos contêineres, rejeitando o argumento de que a cobrança seria abusiva ou que dependeria de previsão contratual específica ou em sua forma física.

Noutro aspecto, analisando a questão da alegação de impedimento de devolução do equipamento por fato de terceiro, sob o argumento de que a retenção dos contêineres pela Receita Federal configuraria caso fortuito ou força maior, sobreveio o entendimento de que tal situação não exclui a responsabilidade pelo pagamento da demurrage, uma vez que os riscos associados ao trâmite aduaneiro fazem parte da atividade de importação.

Essa decisão demonstra a tendência jurisprudencial de reforçar a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais do transporte marítimo, afastando argumentos baseados em supostas exceções não devidamente comprovadas.

Também em decisão recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu de forma diversa, entendendo que a atuação da Receita Federal, classificada como subjetiva em relação a escolha das mercadorias que serão submetidas a uma análise mais rigorosa, o que representaria uma excludente da obrigatoriedade de pagamento pela incidência da demurrage.

A responsabilidade pelo pagamento de demurrage e detention recai, respectivamente, sobre o consignatário e embarcador da carga, que deve garantir a devolução oportuna do contêiner, de acordo com cada contrato. No entanto, há casos em que o transportador também pode ser responsabilizado, como em situações de negligência ou falhas operacionais que causem atrasos.

Além disso, a má-fé de qualquer uma das partes pode levar a disputas judiciais. Se o importador retém deliberadamente o contêiner, ou se o transportador impõe cobranças excessivas, ambos podem ser responsabilizados. Em tais casos, o princípio da boa-fé objetiva e a necessidade de previsão contratual são frequentemente invocados pelos tribunais.

A prática demonstra que a previsão de sanções equilibradas e a adoção de um diálogo transparente entre as partes são fundamentais para evitar litígios e preservar relações comerciais.

O que não se pode admitir, é que os riscos a que estão expostos os importadores inerentes a operação de importação sejam repassados a terceiro, no caso o transportador, que cumpriu a sua obrigação contratual, mas que será penalizado com a indisponibilidade do seu equipamento, em face de uma questão que lhe é absolutamente estranha, mas que é previsível pelo importador.

A atuação fiscalizadora da Autoridade Aduaneira decorre de lei, que a desempenha segundo os seus próprios critérios, não sendo plausível se alegar que essa atuação represente um fato inusitado e alheio ao processo. O importador, ao mensurar o seu empreendimento e uma operação de importação, tem em conta todos os cenários possíveis, inclusive uma eventual submissão a um procedimento fiscalizatório mais rigoroso.

A alegação de que a atuação da Receita Federal é ilegal, muitas vezes, equivale a afirmação de que a Autoridade Aduaneira agiu de forma contrária à lei por exercer a sua atribuição de fiscalizar os procedimentos de importação de mercadorias, o que de fato corresponde ao exercício do seu dever legal.

A demurrage e a detention são instrumentos essenciais para a regulação do uso de contêineres no transporte marítimo. A jurisprudência brasileira tem contribuído significativamente para a consolidação desses institutos, reafirmando sua natureza indenizatória e a necessidade de cumprimento das obrigações contratuais.

Por fim, a previsão do “free time” e o respeito as obrigações contratuais são fundamentais para evitar litígios e garantir a eficiência das operações logísticas. Transportadores, importadores e demais envolvidos devem buscar maior clareza em suas relações contratuais, promovendo assim maior segurança jurídica e previsibilidade no comércio internacional.

Fonte: Migalhas

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