O artigo 24-A, da Lei nº 9.656/98, prevê a indisponibilidade de bens dos administradores, conselheiros, gerentes e outros sujeitos que tenham concorrido com o quadro de anormalidade causador da instauração do regime de direção fiscal ou da liquidação extrajudicial. Contudo, a lei e a regulamentação da saúde suplementar são vacilantes quanto ao limite temporal de manutenção dessa medida cautelar administrativa restritiva de direito.
A ausência de previsão objetiva, entretanto, não pode ser concebida como autorização para sua imposição por tempo indeterminado. Tal impossibilidade apresenta-se bastante clara quando analisada sob a perspectiva da razoabilidade e da proporcionalidade, mas também pode ser verificada com objetividade, a partir da lei e da regulamentação, numa específica hipótese deflagrada cotidianamente em casos concretos.
Essa hipótese está relacionada à necessária vinculação que as medidas cautelares devem manter com o potencial provimento final a ser proferido no processo principal, cuja eficácia buscam resguardar.
Indisponibilidade de bens é medida cautelar administrativa
Medidas cautelares objetivam cessar lesões ou estabelecer outras providências voltadas a resguardar a eficácia do provimento final a ser produzido num processo principal. Por isso, elas devem ser provisórias e vinculadas a um processo principal, durando apenas pelo tempo razoável e necessário à produção do provimento final.
Existem casos excepcionais em que elas não são vinculadas imediatamente a um processo principal. Mas, ainda assim, somente se justificam na hipótese de o provimento final ainda poder ser alcançado, vale dizer, enquanto ainda for juridicamente possível instaurar processo principal hábil a alcançar o provimento acautelado.
A indisponibilidade de bens, prevista no caput do artigo 24-A, da Lei nº 9.656, é dirigida a assegurar a eficácia de um específico provimento administrativo futuro e incerto, a ser promovido num específico processo principal, qual seja, a potencial responsabilização dos administradores, conselheiros e gerentes de operadora de planos de saúde a ser apurada e liquidada, por meio de inquérito administrativo, se e quando decretada liquidação extrajudicial.
Quando instaurada em razão de regime de direção fiscal, a cautelar não fica vinculada a um processo administrativo principal, representando hipótese excepcional. Isso, contudo, não dispensa a existência de um nexo, ainda que remoto, com um provimento final futuro e incerto. Como dito, é a possibilidade/praticabilidade desse provimento futuro e incerto que confere fundamento de existência à indisponibilidade.
Entendo que, se, a partir do quadro jurídico imediato, for constatada circunstância objetiva que inviabilize a produção futura do provimento final, por meio do específico processo principal previsto em lei, a medida cautelar não é cabível, por ausência de suporte fático hábil a autorizar sua incidência.
Dessa forma, a indisponibilidade de bens ora analisada, enquanto cautelar administrativa, somente poderá ser manejada em razão da instauração de regime de direção fiscal ou decretação de liquidação extrajudicial, a fim de resguardar a eficácia de futura e incerta responsabilização, que poderá vir a ser apurada e liquidada através do inquérito previsto no artigo 23 da RN nº 522/22. No entanto, constatado quadro jurídico que prejudique a possibilidade de apuração futura da responsabilidade no âmbito da ANS, resta afastada a hipótese de cabimento da medida cautelar de indisponibilidade.
Como dito, no caso de sua imposição a partir do regime de direção fiscal, a medida não fica imediatamente vinculada a um procedimento principal, pois sequer há certeza se ele virá a existir. A apuração da responsabilidade somente ocorrerá se, e quando, advir decretação da liquidação extrajudicial. É dizer que a indisponibilidade pode surgir e findar, sem que nunca tenha existido um processo principal e, por conseguinte, sem que nunca tenha existido efetiva possibilidade de produção do provimento final, cuja eficácia ela pretendia acautelar.
Conforme mencionado anteriormente, a Lei nº 9.656/98 não prevê expressamente limite de prazo para manutenção da indisponibilidade. No entanto, existe objetiva previsão para o prazo [1] de duração do regime de direção fiscal.
Assim, em princípio, a indisponibilidade deveria durar pelo mesmo prazo do regime de direção fiscal que a deflagrou, somente sendo mantida, caso houvesse decretação de liquidação extrajudicial em sequência.
Nada obstante, os regimes de direção fiscal não são convolados necessariamente em liquidação extrajudicial. Aliás, isso acontece na minoria dos casos [2].
Quando o regime de direção fiscal não é convertido em liquidação, ele pode sofrer solução de continuidade ou poderá ser instaurado um novo regime, o que, pragmaticamente, acaba gerando sua manutenção por mais 365 dias. E, além disso, não há limites para quantidade de direções fiscais que podem ser instauradas sequencialmente. Dessa forma, pragmaticamente, o período de manutenção das operadoras de planos de saúde em direção fiscal pode durar por tempo indeterminado, existindo caso concreto em que esse lapso alcançou 15 anos.
Acrescente-se que o levantamento da indisponibilidade pode ocorrer em razão de hipóteses previstas na legislação e/ou na regulamentação. Contudo, existem circunstâncias olvidadas ou tratadas imprecisamente pela regulamentação, dando margem à interpretação no sentido de que a medida pode ser mantida por tempo indeterminado, mesmo após o término do regime de direção fiscal por prazo — havendo, ou não, instauração de nova direção fiscal.
Divirjo desse posicionalmente por ser ele incompatível com o sistema constitucional pátrio e com a lógica processual das medidas cautelares. Entretanto, na presente exposição, pretendo demonstrar a impossibilidade de manutenção da indisponibilidade por tempo indeterminado numa específica hipótese, sem, no entanto, anuir com a possibilidade de sua manutenção por tempo indeterminado noutras hipóteses.
Subversão da natureza cautelar da indisponibilidade frente à perda de sua finalidade
Como visto, frente à ausência de previsão expressa sobre a duração da indisponibilidade, existem aqueles que defendem a possibilidade de sua manutenção por prazo indeterminado, admitindo, inclusive, que ela adquira caráter perpétuo.
Apesar de não aceitar essa possibilidade em nenhuma hipótese, atenho-me ao escopo da presente exposição, qual seja, a inviabilidade da indisponibilidade ser mantida por tempo indeterminado numa específica circunstância cotidianamente verificada em casos concretos.
É bastante comum que o sujeito atingido pela indisponibilidade deixe de exercer cargos de administração, conselho ou gerência, não voltando a ocupar tais posições. No entanto, segundo entendimento adotado institucionalmente pela ANS, no caso de ser instaurado novo regime de direção fiscal, a indisponibilidade determinada preteritamente deve ser mantida, ainda que o sujeito não tenha ocupado os mencionados cargos nos 12 meses anteriores à instauração do regime contemporâneo. A partir dessa lógica, a indisponibilidade pode ser mantida por tempo indeterminado, bastando que sejam instaurados novos regimes de direção fiscal sequencialmente [3].
Considerando que a indisponibilidade tem a finalidade de resguardar a eficácia da futura e incerta responsabilização, importa questionar se esta poderá ser apurada em relação a quaisquer períodos pretéritos, não importando o quão remotos eles sejam.
A partir do artigo 24-D, da Lei nº 9.656/98, c/c o artigo 43, da Lei nº 6.024/74, a própria ANS estabeleceu que a apuração das responsabilidades fica limitada aos cargos ocupados e atos praticados nos cinco anos anteriores à decretação da liquidação, consignando, no parágrafo único, do artigo 4º, da RN nº 276/11, que “considera-se período de apuração dos fatos aquele referente aos 5 (cinco) anos anteriores à decretação da liquidação extrajudicial, falência ou insolvência”. Em outras palavras, a apuração no âmbito do inquérito se limita aos cinco anos anteriores, não podendo, portanto, gerar responsabilização de sujeitos que tenham ocupado cargos em períodos mais remotos.
Reitere-se, outrossim, que o artigo 24-A, da Lei nº 9.656/98, estabelece nexo entre a indisponibilidade e a apuração de responsabilidade na via administrativa. A regra busca resguardar a eficácia da responsabilidade fixada através do inquérito administrativo, promovido no âmbito da ANS, e não de responsabilidade eventualmente apurada por outros meios. O processo principal, ao qual a medida fica vinculada remotamente, é o inquérito do artigo 23 da RN nº 522.
Nesse contexto, enquanto medida cautelar, a indisponibilidade deve manter nexo de praticabilidade com o provimento final que objetiva resguardar. Ela só é justificável se for juridicamente possível haver apuração de responsabilidade por meio do inquérito do artigo 23 da RN nº 522.
Assim, caso o sujeito submetido à indisponibilidade já não possa ser responsabilizado no âmbito do aludido inquérito, por ter ocupado cargo mais de cinco anos antes da decretação de liquidação, constata-se que o provimento final acautelado fica prejudicado. Ele não poderá ser alcançado no futuro, pois já não poderia ser alcançado no presente.
Dessa forma, a indisponibilidade perde sua finalidade, pois deixa de ser dirigida a acautelar um provimento principal final possível.
O futuro e incerto inquérito não poderá ser considerado processo principal relacionado à indisponibilidade imposta aos sujeitos que tenham ocupado cargos mais de cinco anos antes de sua instauração, pois a responsabilidade destes não será parte de seu objeto, segundo dispõe o parágrafo único, do artigo 4º, da RN nº 276.
Nesse contexto, considerando que o provimento principal acautelado já não pode ser alcançado, a medida cautelar perde sua finalidade, devendo ser levantada. Sua manutenção, nessa hipótese, a transforma noutra coisa, seja lá o que for, incompatível com as garantias fundamentais, configurando, portanto, instrumento de exceção ao Estado democrático de direito.
Conclusão
Enquanto medida cautelar, a indisponibilidade de bens, prevista no artigo 24-A da Lei nº 9.656/98, possui a finalidade de preservar a eficácia de futura e incerta responsabilização, a ser apurada por meio do inquérito administrativo, previsto no artigo 23 da RN nº 522.
Ocorre que, na forma do parágrafo único, do artigo 4º, da RN nº 276, o período de apuração do inquérito está limitado aos cinco anos que antecedem à sua instauração (que coincide com a decretação de liquidação extrajudicial).
Assim, verificando-se que o período de exercício dos cargos já não pode ser objeto do inquérito, caso ele venha a ser instaurado, resta configurado prejuízo de futura apuração da responsabilidade por essa via.
Por conseguinte, impõe-se concluir que não é possível manter a indisponibilidade, imposta a partir de direção fiscal, em relação aos sujeitos que tenham deixado de ocupar cargos de administrador, conselheiro ou gerente, há mais de cinco anos, se, durante esse lapso, não houve decretação de liquidação extrajudicial da operadora de planos de saúde.
A indisponibilidade tem como finalidade preservar a eficácia de futura e incerta responsabilização administrativa, de modo que, se já não é autorizada apuração da responsabilidade por meio de inquérito, a medida cautelar sofre perda de finalidade e, dessa forma, não pode ser mais fundamentada no artigo 24-A, da Lei nº 9.656/98, já que o dispositivo exige nexo entre a cautela e a praticabilidade da apuração da responsabilidade, caso venha a ser decretada liquidação extrajudicial.
[1] É de 365 dias, na forma do artigo 24 da Lei nº 9.656.
[2] Conforme dados da ANS, considerando 559 encerramentos de direções fiscais entre 2000 e 2022, não houve qualquer tipo de apuração de responsabilidade em 61% desses encerramentos. No entanto, os números parecem ser ainda maiores, pois, nesse levantamento, a ANS somente considerou direções fiscais encerradas; i) por levantamento decorrente de melhoria econômica; ii) cancelamento compulsório de registro de natureza sancionatória, em substituição à decretação de liquidação; e iii) convolação em liquidação. Esses dados constam no relatório de gestão da ANS de 2022:
https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/transparencia-e-prestacao-de-contas/prestacao-de-contas/Relatorio_Anual_de_Gestao_e_de_Atividades_2022.pdf
Contudo, existe estudo produzido pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar – IESS, que aponta 829 direções fiscais instauradas entre 2000 e 2017:
https://www.iess.org.br/sites/default/files/2021-04/TD68.pdf
Nesse mesmo período, os dados da ANS apontam apenas 501 encerramentos de direções fiscais.
Isso leva à conclusão de que o percentual de direções ficais que não geraram apuração de responsabilidade é ainda maior do que aquele estabelecido somente a partir dos dados disponibilizados pela ANS em 2022.
[3] Há precedentes em que a ANS defende a possibilidade de manutenção da indisponibilidade quando o regime termina por prazo, mesmo sem a instauração de um novo regime subsequente. Contudo, os casos identificados são isolados, não sendo seguro afirmar se tratar de posição institucional.
Fonte: Conjur
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