O Testamento Vital é assunto pouco tratado que merece destaque, considerando a importância do tema.

A Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina esclarece as diretrizes básicas sobre o testamento vital, denominado na área médica de “Diretivas Antecipadas de Vontade-DAV”. São elas:

  • o testamento vital ou as diretivas antecipadas de vontade são definidas como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1º);
  • nas definições sobre tratamentos médicos e cuidados com o paciente incapaz e impossibilitado de comunicar sua vontade “o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade” (art. 2º);
  • se o paciente houver designado um procurador para representá-lo, “suas informações serão levadas em consideração pelo médico” (art. 2º, § 1º);
  • só não serão consideradas as diretivas antecipadas do paciente ou do procurador que contrariarem o Código de Ética Médica (art. 2º, §2º);
  • as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre os desejos de seus familiares;

A Resolução nº 2.217/2018 do Conselho Federal de Medica (Código de Ética Médica) afirma expressamente, em seu art. 41, que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. O parágrafo único do mesmo artigo estabelece regra de exceção nos termos seguintes:

Parágrafo único: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente, ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

A validade do testamento vital, cuja finalidade é garantir um final de vida com qualidade e dignidade está alicerçada no princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal (art. 1º, III), que garante ao indivíduo que possa conduzir sua vida de acordo com a sua consciência.

­Também está a validade do testamento vital fundamentada no princípio da autonomia de vontade, que garante que o desejo do indivíduo seja colocado em prática. Ou seja, pode ele, com total autonomia, escolher seus tratamentos ao final da vida, inclusive recusar tratamento que o exponha a risco de vida.

2. Forma: Como deve ser elaborado o documento

2.1. Alguns conceitos importantes: Antes de examinarmos a forma importante entender os conceitos de cuidado paliativo e ortotanásia:

Cuidados Paliativos consistem na assistência, promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio de prevenção e do alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.

(Organização Mundial da Saúde)

Conceito de Ortotanásia: Morte a seu tempo certo.

2.2. Forma

O documento deverá ser elaborado com a orientação do médico e pelo advogado de confiança que fundamentará o testamento vital com as declarações de vontade da pessoa.

Deve ser escolhido o representante legal, para o caso da pessoa não ter condições de expressar sua vontade para escolher o tratamento adequado, sendo importante que a escolha recaia sobre pessoas de inteira confiança e intimidade do paciente que o conheçam a ponto de saber como tomar decisões e quais as suas prioridades.

A vontade do paciente deverá constar do prontuário médico. É preciso deixar claro no documento que não há sinais de depressão, que não existe déficit cognitivo que afeta o processo de decisão nessas diretivas, tampouco pressões emocionais.

Outro aspecto importante a ser observado é que as diretivas ou testamento vital vale apenas para a situação em que a pessoa padece de alguma enfermidade manifestamente incurável, que cause sofrimento ou torne incapaz de uma vida racional ou autônoma.

Na última parte do documento a pessoa deve descrever como quer ser cuidada, abordando aspectos do dia a dia, como banho, troca de fraldas, ambiente, e, finalmente, cuidados com seu funeral, bem como, dispor sobre doação de órgãos, desejo de cremação e não realização de velório também, são descritos nessa parte.

3. Jurisprudência sobre o tema

Ainda há poucas demandas judiciais que versem sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade, pois se trata de instituto inovador, que vem emergindo paulatinamente. Nas decisões encontradas e estudadas, verificou-se que o Poder Judiciário vem assegurando o direito constitucional da dignidade da pessoa humana no que se refere à autonomia da vontade do paciente, uma vez assegurada a manifestação de vontade do paciente em detrimento do direito à vida, podendo o paciente dispô-lo, como bem entender, desde que não interfira no direito de outrem.

Abaixo, ementas sobre o tema do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual sempre traz um caráter de vanguarda em suas decisões:

CONSTITUCIONAL. MANTENÇA ARTIFICIAL DE VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE, SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA VONTADE. RESPEITO AO DESEJO ANTES MANIFESTADO. Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo de ter a “morte no seu tempo certo”, evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir. (Apelação Cível Nº 70042509562, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 01/06/2011).

APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 1º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013).

A própria Igreja Católica, que é extremamente ortodoxa no que concerne ao direito à vida, reconheceu como legítima a ortotanásia com a promulgação da Encíclica Evangelium Vitae, ainda em 1995, pelo então Papa João Paulo ll, tendo rechaçado apenas a eutanásia e a distanásia.

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Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis e os doentes terminais, num contexto social e cultural que, tornando mais difícil enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do sofrimento eliminando-o pela raiz, com a antecipação da morte para o momento considerado mais oportuno. Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída. Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação, ou até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada. Veem-se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais eficazes da assistência médica e social, corre o risco de se sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado, naqueles que lhe estão afetivamente ligados, pode gerar-se um sentimento de compreensível, ainda que mal-entendida, compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes considera-o como o mal por excelência, que se há-de eliminar a todo o custo; isto verifica-se especialmente quando não se possui uma visão religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor.
…………………………………………………………………………………………………………………………………….”

4. Conclusão

A saúde é um estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não consiste somente na ausência de doença ou enfermidade. O paciente acometido por doença grave incurável, por si só, mesmo que esteja inicialmente sem dores ou sofrendo, já se encontra em descompasso pelo mal-estar mental e social a que está submetido.

Não obstante na continuidade a doença acarretar inúmeras transformações, causando abundante sofrimento, incluindo, por óbvio, a dor física, além de outros aspectos, sociais, psicológicos e espirituais, o paciente tem, ao seu dispor, a denominada ortotanásia, ou seja, a “morte a seu tempo certo”, quando poderá renunciar a submeter-se a tratamentos e procedimentos fúteis e desnecessários, que somente prolongarão sua vida e submeter-se (ou não) apenas aos métodos paliativos de tratamento, que possibilitem minimizar as dores e o sofrimento. Nessa reflexão se filiava Hipócrates, quando pregava que o médico deve curar quando possível, aliviar quando necessário e consolar sempre, em outras palavras, quando não há mais nada a fazer sob o aspecto médico.

Bibliografia ­

CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002.

CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE DO SUMO PONTÍFICE, JOÃO PAULO ll.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1805.

HIPÓCRATES, MÉDICO GREGO. Biografia de Hipócrates.

CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL 1988.

ARANTES, ANA CLÁUDIA QUINTANA, A morte é um dia que vale a pena viver, Editora Sextante, 2016.

Fonte: AASP

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