Expressa o art. 496 do Código Civil hoje em vigor que “é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. Em complemento, prevê o seu parágrafo único que, “em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória”.

Como se pode perceber, foi clara a opção do legislador pela nulidade relativa ou anulabilidade da venda de ascendente para descendentes – sobretudo da venda de pais para filhos – se não houve autorização dos demais descendentes e do cônjuge do alienante ou vendedor.

A então nova redação do comando afastou o debate anterior que atormentava a doutrina e a jurisprudência a respeito de ser o caso de nulidade absoluta ou relativa. O art. 1.132 do Código Civil de 1916 trazia a mesma proibição, mas não estabelecia a sua consequência, enunciando apenas que “os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam”. A questão foi superada em definitivo com a codificação de 2002, pois a hipótese é de anulabilidade ou nulidade relativa, por clara e expressa opção legislativa.

Sendo assim, a ilustrar, para vender um imóvel para um filho, o pai necessita de autorização dos seus demais filhos e de sua esposa, sob pena de anulação da venda. Pela dicção expressa do parágrafo único do dispositivo, dispensa-se a autorização do cônjuge se o regime for o da separação obrigatória de bens, aquele que é fixado pela lei, nos termos do art. 1.641 do Código Civil.

Como primeiro problema técnico a respeito do dispositivo em estudo, esse parágrafo único utiliza a expressão, logo no seu início, “em ambos os casos”. Entretanto, conforme o enunciado 177, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo STJ em 2004, essa expressão deve ser desconsiderada: “por erro de tramitação, que retirou a segunda hipótese de anulação de venda entre parentes (venda de descendente para ascendente), deve ser desconsiderada a expressão ‘em ambos os casos’, no parágrafo único do art. 496”.

A proposta que gerou o enunciado doutrinário foi elaborada pelo Desembargador do TJ/SP e Professor José Osório de Azevedo Júnior, destacado civilista. Vejamos trechos de suas justificativas, que são uma verdadeira aula sobre o tema:

“Na realidade, não existem ambos os casos. O caso é um só: a venda de ascendente para descendente. Houve equívoco no processo legislativo. O artigo correspondente do Anteprojeto do Código Civil, publicado no DOU de 7/8/72, (art. 490) não previa qualquer parágrafo. A redação era a seguinte: Art. 490. Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam. A venda não será, porém, anulável, se o adquirente provar que o preço pago não era inferior ao valor da coisa. No projeto 634/75, DOU 13/6/75, houve alteração: Art. 494. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes expressamente houverem consentido. Em plenário, foram apresentadas pelo dep. Henrique Eduardo Alves as Emendas 390, 391 e 392 ao art. 494. A primeira delas para tornar nula a venda e para exigir a anuência do cônjuge do vendedor: Art. 494. É nula a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do vendedor expressamente houverem consentido. A segunda, para acrescentar um parágrafo considerando nula também a venda de descendente para ascendente: Art. 494, § 1.º É nula a venda de descendente para ascendente, salvo se o outro ascendente do mesmo grau, e o cônjuge do vendedor expressamente houverem consentido. A terceira emenda acrescentava mais um parágrafo (2.º), com a redação do atual parágrafo único, com a finalidade de dispensar o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória: Art. 494, § 2.º Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória. Pelo que se vê do texto do Código, a primeira emenda (390) foi aprovada em parte, só para exigir a anuência do cônjuge. A segunda emenda (391) foi inteiramente rejeitada. E a terceira (392) foi acolhida e transformada no atual parágrafo único. Esqueceu-se de que a segunda emenda, que previa uma segunda hipótese de nulidade – a venda de descendente para ascendente -, foi rejeitada. Assim, no contexto das emendas, fazia sentido lógico a presença da expressão em ambos os casos, isto é, nos dois casos de nulidade, venda de ascendente para descendente e venda de descendente para ascendente. Agora não faz sentido, porque, como foi dito no início, a hipótese legal é uma só: ‘a venda de ascendente para descendente’. Houve erro material, s.m.j., e a expressão em ambos os casos deve ser tida como não escrita, dispensáveis maiores esforços do intérprete para achar um significado impossível. A regra de que a lei não contém expressões inúteis não é absoluta. Cumpre, portanto, desconsiderar a expressão em ambos os casos”.

A par dessas afirmações, como tenho sustentado há tempos, fica já evidente que a norma necessita de reparos técnicos urgentes, o que era objeto de PL em tramitação na Câmara dos deputados, de número 4.639/19, de autoria do deputado Carlos Bezerra. A proposição original visava retirar a expressão “em ambos os casos”, na linha do citado enunciado doutrinário.

Na ocasião de sua tramitação, fiz sugestão ao saudoso deputado Luiz Flávio Gomes, para que no parágrafo único do art. 496 da lei Civil passasse a constar o regime da separação convencional, e não o da separação obrigatória. Isso porque o único regime de separação absoluta é o hoje fixado por pacto antenupcial, sendo preciso adequar o dispositivo ao art. 1.647, caput, do próprio Código Civil, que trata da dispensa da outorga conjugal apenas nesse regime. Vale lembrar que, na dicção da súmula 377 do STF, no regime da separação obrigatória comunicam-se os bens havidos durante o casamento, havidos pelo esforço comum dos consortes, sendo necessária a autorização do outro cônjuge em qualquer alienação realizada pelo seu consorte, uma vez que nesse regime não há uma separação obrigatória.

Não tendo prosperado essa anterior proposta de alteração legislativa, foi feita proposição similar no Projeto de Reforma do Código Civil, elaborado pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal (atual PL 4/25). Assim, no novo § 1º do seu art. 496 retira-se a equivocada menção a “ambos os casos”, na linha do que pontuei, bem como a separação obrigatória, que será totalmente excluída da lei Geral Privada, permanecendo apenas a separação convencional. Nesse contexto, o comando emergente passará a enunciar o seguinte, com melhor técnica, e de forma direta e objetiva, que “dispensa-se o consentimento do cônjuge ou do convivente se o regime de bens for o da separação”.

Superado esse primeiro aspecto de reparo, observa-se que o art. 496 do Código de 2002 é uma norma restritiva de direitos, que não se aplica atualmente e por analogia aos casos de união estável. Assim sendo, no atual sistema, não há necessidade de autorização do convivente para o referido ato de alienação de ascendente para descendente (outorga convivencial).

Todavia, tal conclusão não é pacífica, gerando enorme segurança jurídica e dúvidas na prática, uma vez que há quem entenda que o art. 496 do Código Civil também se aplica à união estável, pois, entre outros argumentos, o Código de Processo Civil equiparou a união estável ao casamento para praticamente todos os fins processuais, o que traz repercussões materiais. Ademais, o STF concluiu, em julgamento encerrado em maio de 2017 e com maioria de votos, que o art. 1.790 do Código Civil é inconstitucional, devendo haver a equiparação sucessória da união estável ao casamento, com a aplicação do art. 1.829 do Código Civil para as duas entidades familiares (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, rel. min. Roberto Barroso, com repercussão geral, publicado no Informativo 864 da Corte – Tema 809). Diante desse decisum, não se pode negar que há uma tendência em estender a aplicação de outras regras previstas para o casamento também para a união estável, a alcançar a limitação do art. 496 do Código Civil, segundo essa vertente.

Eis outra discussão que o atual Projeto de Reforma do Código Civil resolve de forma definitiva, passando o caput do art. 496 a prever que “é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge ou o convivente do alienante expressamente houverem consentido”. Segue-se, assim, a linha adotada pela Comissão de Juristas de equiparação das duas entidades familiares, sempre que isso for possível, e para os devidos fins negociais. Mais uma vez se busca a segurança jurídica e a necessária estabilidade das relações privadas, encerrando-se debates desnecessários.

Como outra temática de enorme relevo a respeito do dispositivo, no que se refere ao prazo para anular a referida compra e venda em virtude da falta de autorização dos demais descendentes e do cônjuge, tem-se entendido que a súmula 494 do STF não se aplica mais às vendas realizadas após a entrada em vigor do Código Civil de 2002. Nos termos do seu enunciado, “a ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em 20 anos, contados da data do ato”.

A posição que prevaleceu nos mais de 20 anos de vigência da atual codificação privada foi a de aplicação, nesses casos, do prazo decadencial de dois anos, previsto no seu art. 179: “quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato”.

Como argumento de relevo, sempre é importante relembrar que a lei Geral Privada de 2002 adota os critérios científicos de Agnelo Amorim Filho (RT 300/7), sendo certo que para hipótese em estudo o prazo é decadencial e não prescricional; este último comum para as ações condenatórias e não para as ações constitutivas negativas, como é a ação anulatória. Por isso, na anulação de uma venda de ascendente para descendente aplica-se o prazo decadencial de dois anos, e não qualquer prazo prescricional, contados da celebração do negócio, previsto no art. 179 do Código Civil, que, no meu entendimento, cancelou tacitamente a referida sumular para os contratos celebrados na vigência da codificação de 2002, ou seja, após 11 de janeiro de 2003.

Exatamente nesse sentido, aliás, é o enunciado 368, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, em 2006, na ocasião proposto em conjunto com o professor José Fernando Simão, prevendo que “o prazo para anular venda de ascendente para descendente é decadencial de dois anos (art. 179 do Código Civil)”. Acrescente-se que na VI Jornada de Direito Civil, em 2013, foi aprovada outra ementa doutrinária, confirmando a incidência do prazo de dois anos. Conforme o enunciado 545 do Conselho da Justiça Federal, “o prazo para pleitear a anulação de venda de ascendente a descendente sem anuência dos demais descendentes e/ou do cônjuge do alienante é de dois anos, contados da ciência do ato, que se presume absolutamente, em se tratando de transferência imobiliária, a partir da data do registro de imóveis”.

A conclusão pela aplicação do prazo decadencial de dois anos igualmente vem sendo adotada pela jurisprudência brasileira, com destaque para os acórdãos do STJ que seguem esse entendimento (por todos: STJ, REsp 1.679.501/GO, 3.ª turma, rel. min. Nancy Andrighi, j. 10/3/20, DJe 13/3/20; STJ, REsp 1.356.431/DF, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 8/8/17, DJe 21/9/17; STJ, EDcl no REsp 1.198.907/RS, 4.ª turma, rel. min. Antonio Carlos Ferreira, j. 9/9/14, DJe 18/9/14; e STJ, REsp 771.736-0/SC, 3.ª turma, rel. min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 7/2/06, v.u.).

De toda sorte, o último enunciado doutrinário citado, como se percebe, estabelece que o início do prazo se dá com o registro imobiliário em se tratando de imóveis. Com o devido respeito, entendo que no atual sistema, por opção do legislador, o prazo deve ser contado da escritura pública, e não do registro, uma vez que o art. 179 do Código Civil menciona a “conclusão do ato”, no sentido de sua celebração.

Presente mais uma divergência que repercute enormemente para a prática, eis outro aspecto que o Projeto de Reforma do Código Civil (PL 4/25) pretende resolver. Consoante o § 3º proposto para o art. 496, “a anulação da venda deverá ser pleiteada no prazo de dois anos, contados da data da ciência do negócio ou do registro no órgão registral competente, o que ocorrer primeiro”. Anoto que outras propostas adotam semelhante critério para o início do prazo decadencial, mais uma vez para dirimir outras polêmicas verificadas na prática. Citando uma delas, a nova dicção do art. 179 do Código Civil, que não será mais aplicada à hipótese em estudo diante do novo tratamento específico do prazo, preverá que, “quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato, do seu eventual registro ou da sua ciência, o que ocorrer primeiro”.

Para encerrar este texto, merece anotação a existência de propostas no Projeto de Reforma de dois novos parágrafos para o art. 496, que igualmente virão em boa hora. Como primeiro deles, o seu projetado § 2º trará regra importante para impedir o registro da venda de imóvel, caso não haja a referida autorização: “em caso de venda que tenha por objeto bens imóveis, o oficial não poderá proceder ao registro da compra e venda na matrícula do bem, se não constar da escritura o grau de parentesco e a existência ou não, do consentimento a que aludem o caput e § 1º deste artigo”. A proteção da segurança jurídica é mais uma vez inequívoca nessa previsão, fruto de proposta da relatora-Geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery.

Como segunda e última delas, com vistas à proteção do tráfego jurídico e dos terceiros de boa-fé, e mais uma vez na linha de outras proposições constantes do Projeto de Reforma do Código Civil, o projetado § 4º: “a anulação de que trata este artigo não prejudicará direitos de terceiros, adquiridos onerosamente e de boa-fé”. Em suma, a boa-fé vencerá, expressamente e pelo texto da lei, a eventual anulabilidade decorrente da venda de ascendente para descendente. Destaco que essa solução há tempos é aplicada pela melhor jurisprudência brasileira, cabendo transcrever, apenas para ilustrar e tratando de hipótese de venda de ascendente para descendentes: “inobstante farta discussão doutrinária e jurisprudencial, adota-se a corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte que o seu desfazimento depende da prova de que a venda se fez por preço inferior ao valor real dos bens, para fins de caracterização da simulação, circunstância sequer aventada no caso dos autos, pelo que é de se ter como hígida a avença. (…). Impossibilidade, de outro lado, e independentemente disso, de se atingir as alienações ulteriores a terceiros de boa-fé, mormente quando concluído nos autos que os descendentes que lhes venderam parte dos imóveis não sabiam, à época, da existência de irmãos concebidos de vínculo extraconjugal” (STJ, REsp. 74.135/RS, 4.ª turma, rel. min. Aldir Passarinho Junior, j. 7/11/00, DJ 11/12/00, p. 205).

Como se pode perceber, todas as proposições resolvem problemas práticos atualmente existentes a respeito da venda de ascendente para descendente, na linha da doutrina e jurisprudência brasileiras consolidadas, facilitando a realização dos negócios jurídicos em nosso país. Espera-se, assim, a sua aprovação pelo Parlamento Brasileiro.

Fonte: Migalhas

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