O artigo analisa os impactos da recuperação judicial em obrigações garantidas por alienação fiduciária, após o stay period, considerando decisões do STJ e suas consequências para credores e o mercado
A alienação fiduciária é reconhecida como uma das garantias mais seguras do ordenamento jurídico brasileiro.
Nos dizeres de ORLANDO GOMES1, “a alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual uma das partes adquire, em confiança, a propriedade de um bem, obrigando-se a devolvê-la quando se verificar o acontecimento a que se tenha subordinado tal obrigação, ou lhe seja pedida a restituição”.
A alienação fiduciária de bens imóveis, especificamente, foi idealizada no contexto de fragilização da garantia hipotecária, que, até então, era a opção encontrada pelos bancos para assegurar a adimplência das construtoras e incorporadoras, ante o entendimento materializado na súmula 308 do STJ, segundo a qual “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
Para fomentar o mercado imobiliário, no qual a garantia de alienação fiduciária é muito usual, é que a Lei 9.514 de 20 de novembro de 1997 foi idealizada2.
Porém, o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel não é exclusivo do Sistema Financeiro da Habitação (SFI), tanto que o parágrafo 1º do artigo 23 da Lei 9.514/1997 é expresso ao dispor que “A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena”, conforme redação dada pela lei 11.481/07.
Tem-se, portanto, que, uma vez instituída a garantia, o que ocorrerá atendendo-se as formalidades do parágrafo primeiro do aludido dispositivo, a posse direta do bem é mantida com o devedor, enquanto o credor passa a ser titular da propriedade resolúvel.
Diz-se resolúvel, pois, para que se torne plena, esta se condiciona ao inadimplemento do devedor e ao atendimento dos demais pressupostos legais para a excussão da garantia.
Assim, uma vez inadimplida a obrigação de pagamento, poderá o credor executar a garantia, de forma que, após prazo para purgação da mora, se mantida, a propriedade do bem se consolida com o credor.
E, ante ao fato de a propriedade resolúvel ser detida pelo credor fiduciário, seu crédito não se submete aos efeitos da recuperação judicial do devedor, a teor do artigo 49, parágrafo terceiro, da lei 11.101/05.
Porém, o trecho final do referido dispositivo limita a imediata execução da garantia quando o bem, se for de capital, é considerado essencial a atividade empresarial da devedora. Confira-se a íntegra do referido artigo de lei:
“§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”
Bens de capital são bens utilizados na produção de outros bens, especialmente bens de consumo, embora não sejam diretamente incorporados ao produto final. São bens que atendem a uma necessidade humana de forma indireta, pois são empregados para gerarem aqueles bens que a isso se destinam (NUSDEO, 2008).
Em termos práticos, esses bens incluem máquinas, equipamentos, ferramentas e instalações industriais que, embora não componham o produto final, são indispensáveis para sua fabricação.
Apesar de o aludido dispositivo legal limitar a execução da garantia apenas durante o período de blindagem, recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm gerado preocupações ao relativizar esse direito, principalmente no contexto da recuperação judicial. A questão central que se coloca é: até que ponto o princípio da preservação da empresa pode limitar os direitos dos credores fiduciários, sobretudo após o encerramento do stay period?
A lei 11.101/05, ao regular a recuperação judicial, institui um período de blindagem de 180 dias (stay period), durante o qual os credores ficam impedidos de prosseguir com execuções contra o devedor, salvo algumas exceções. O objetivo é viabilizar a reorganização da empresa e permitir a negociação de um plano de recuperação. Esse prazo pode ser prorrogado por mais 180 dias, desde que o devedor não tenha concorrido para o atraso do processo (art. 6º, §4º, da LRF).
A alienação fiduciária, por sua vez, garante ao credor a propriedade resolúvel do bem, mantendo o devedor com a posse direta até a quitação da dívida. Como essa modalidade de garantia é extraconcursal, o crédito do credor fiduciário não se submete aos efeitos da recuperação judicial (art. 49, §3º, da LRF). Ainda assim, mesmo após o encerramento do stay period, a jurisprudência do STJ tem condicionado a execução da garantia à análise da essencialidade do bem para a atividade da empresa em recuperação.
Em decisões recentes, o STJ tem entendido que, mesmo após o término do stay period, se o bem for considerado essencial à atividade empresarial, sua retirada poderá comprometer a continuidade da empresa, impedindo sua excussão pelo credor fiduciário.
No julgamento do AgInt no REsp 1.993.645/SP, a 3ª turma ratificou essa posição ao destacar que a interpretação das normas da recuperação judicial deve priorizar a preservação da empresa e sua função social, ainda que em detrimento do direito do credor fiduciário. Esse entendimento foi reforçado no AgInt no AREsp nº 1529808/RS, no qual a 4ª turma reconheceu que cabe ao juízo da recuperação judicial decidir sobre a essencialidade do bem, mesmo após o stay period. Observe-se:
“(…) Ademais, conforme referido, a jurisprudência do STJ orientou-se em sentido contrário ao da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”: “ainda que ultrapassado o período de suspensão (stay period) a que se refere o art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/2005, compete ao juízo da recuperação judicial dispor acerca da essencialidade dos bens para a manutenção da atividade econômica da empresa, mesmo tratando-se de alienação fiduciária em garantia, que não estaria sujeita aos efeitos da recuperação judicial (art. 49, § 3º)” (e-STJ 807)” (…).
Essa orientação, embora pautada no princípio da preservação da empresa, traz impactos significativos para o mercado de crédito, pois retira a previsibilidade da execução das garantias e gera insegurança jurídica aos credores.
No entanto, há precedentes recentes que demonstram um movimento de racionalização desse entendimento. No EREsp 2057372/MT, ocorrido em 11.04.2023, a Terceira Turma, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, afirmou que, após o término do stay period, o credor fiduciário tem o direito de executar sua garantia, não podendo ser indefinidamente impedido de fazê-lo. A decisão destacou que a manutenção prolongada da posse do bem pelo devedor, sem a contrapartida da satisfação do crédito fiduciário, distorce a lógica do processo recuperacional e pode comprometer futuras concessões de crédito. Confira-se o quanto decidido:
“(…) 4. Uma vez exaurido o período de blindagem – sobretudo nos casos em que sobrevém sentença de concessão da recuperação judicial, a ensejar a novação de todas as obrigações sujeitas ao plano de recuperação judicial – é absolutamente necessário que o credor extraconcursal tenha seu crédito devidamente equalizado no âmbito da execução individual, não sendo possível que o Juízo da recuperação continue, após tal interregno, a obstar a satisfação de seu crédito, com suporte no princípio da preservação da empresa, o qual não se tem por absoluto. Naturalmente, remanesce incólume o dever do Juízo em que se processa a execução individual de crédito extraconcursal de bem observar o princípio da menor onerosidade, a fim de que a satisfação do débito exequendo se dê na forma menos gravosa ao devedor, podendo obter, em cooperação do Juízo da recuperação judicial, as informações que reputar relevantes e necessárias.
4.1 Deveras, se mesmo com o decurso do stay period (e, uma vez concedida a recuperação judicial), a manutenção da atividade empresarial depende da utilização de bem – o qual, em verdade, não é propriamente de sua titularidade – e o correlato credor-proprietário, por outro lado, não tem seu débito devidamente equalizado por qualquer outra forma, esta circunstância fática, além de evidenciar um sério indicativo a respeito da própria inviabilidade de soerguimento da empresa, distorce por completo o modo como o processo recuperacional foi projetado, esvaziando o privilégio legal conferido aos credores extraconcursais, em benefício desmedido à recuperanda e aos credores sujeitos à recuperação judicial. O privilégio legal é conferido não apenas aos chamados “credores-proprietários”, mas também a todos os credores que, mesmo após o pedido de recuperação judicial, em valoroso voto de confiança à empresa em dificuldade financeira, manteve ou com ela estabeleceu relações jurídicas creditícias indispensáveis à continuidade da atividade empresarial (aqui incluídos os trabalhadores, fornecedores, etc), sendo, pois, de rigor, sua tempestiva equalização.” (grifos ausentes no original).
Este acórdão tem sido mencionado em decisões monocráticas por ministros do Superior Tribunal de Justiça, como a proferida pela Ministra Maria Isabel Gallotti em 27.02.2025, no âmbito do Recurso Especial 2.183.607.
A doutrina já vem alertando para os riscos desse entendimento. CHALHUB (2006) destaca que a alienação fiduciária foi concebida justamente para conferir segurança jurídica e previsibilidade ao mercado de crédito, garantindo ao credor o direito de reaver o bem em caso de inadimplência. Da mesma forma, PEREIRA (1978) ressalta que a principal característica da propriedade fiduciária é sua resolubilidade, não podendo ser relativizada sem comprometer sua função econômica.
Os impactos desse cenário são evidentes: ao observar que a alienação fiduciária pode ser obstada indefinidamente, os credores tendem a elevar os custos das operações de crédito, restringindo o acesso ao financiamento, principalmente para empresas em situação de risco. Além disso, há reflexos negativos na atração de investimentos estrangeiros, pois a fragilidade das garantias impacta diretamente o risco Brasil.
A alienação fiduciária é uma ferramenta essencial para a segurança jurídica das relações de crédito. A interpretação do STJ, ao privilegiar a preservação da empresa sobre o direito dos credores extraconcursais, pode gerar efeitos colaterais graves, como a retração do mercado de crédito e o aumento do custo do financiamento.
Decisões mais recentes, como no REsp 2.057.372/MT, apontam para uma possível reconsideração desse entendimento, buscando um equilíbrio entre a função social da empresa e o direito dos credores fiduciários. Esse debate será determinante para o futuro da concessão de crédito no Brasil, e sua evolução deve ser acompanhada de perto por juristas e investidores.
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1 ORLANDO GOMES, 1971, p. 18.
2 Nesse sentido, “Com a generalização, o legislador deixa clara sua intenção de dotar o setor imobiliário, em toda a sua amplitude, de um novo instrumento para dinamização de suas atividades, em atenção à sua função multiplicadora na economia e à sua capacidade de geração de empregos em larga escala e, em especial, viabilizar o funcionamento do mercado secundário de créditos imobiliários.” (CHALHUB, 2006, p. 202-203)
3 ORLANDO GOMES, Alienação Fiduciária em Garantia, 2ª edição, ed. RT, 1971, São Paulo.
4 NUSDEO, Fabio. Curso de Economia: introdução ao Direito Econômico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
5 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 4.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 3. Ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978.
Fonte: Migalhas
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