O tema das funções da forma do negócio jurídico costuma ser tratado de forma ampla, sem maior aprofundamento na doutrina brasileira.

Em referência à literatura jurídica especializada, costumeiramente indica-se que a forma prescrita em lei persegue três funções distintas. A forma defende uma função assecuratória ao assegurar a ambas as partes sobre o exato momento do surgimento do vínculo que elas se propuseram. Também há a defesa da função acautelatória, pois a forma pode também tentar precaver determinada parte da conclusão de um determinado negócio que lhe é especialmente arriscado. Por fim, a forma ainda assume uma função informativa, ao tentar dar publicidade a determinadas declarações, bem como procurar garantir que o declarante mais fraco esteja plenamente ciente dos efeitos que irradiarão da sua declaração. Dependendo da declaração analisada, uma função ganha mais destaque que as outras.1

Nesta toada, visando trazer mais algumas linhas norteadoras para a questão, na AGIRE #114 foram abordadas interessantes distinções sobre os conceitos de contrato como relação jurídica e de contrato como documento, levando em consideração as eventuais funções dos instrumentos escritos como prova e como forma do negócio. Na mesma senda percorrida pela citada coluna, o presente texto tem por finalidade demonstrar como as duas funções do documento, como prova e como veículo de manifestação da vontade (forma), se imiscuem historicamente no surgimento e desenvolvimento do instrumento público, com diferentes consequências em cada caso, diferenciando-o, assim, do documento privado.

Breve histórico

Indo aos primórdios do surgimento da forma pública, no período pós-clássico romano surge a tendência de os contratos serem submetidos a uma testemunha oficial que os reduzia a escrito. Considerando a especificidade da contratação romana, que dependia de fórmulas orais ritualísticas a serem utilizadas em cada contrato2, essa testemunha apenas narrava (ainda que com um certo grau de oficialidade que a diferenciava das demais testemunhas3) aquilo que via e ouvia pelos seus próprios sentidos (“visis et auditis suis sensibus”), se tratando, portanto, de um documento escrito eminentemente probatório. Essa testemunha era o tabellio4, esse documento eram as nossas primeiras atas notariais.

De início, portanto, toda forma, inclusive a pública, instrumentalizava contratos com função meramente probatória.5 Ainda que o ato escrito narrasse uma contratação, esta não se perfectibilizaria se não fossem ditas especificamente, e em forma oral, as palavras ritualísticas de vinculação, as quais depois deveriam também ser provadas, caso contestadas, em juízo, para além do documento, de forma testemunhal. O texto era, assim, exclusivamente conservatório, e, no ínsito ritualismo romano de obrigações simples encadeadas em forma oral, cada específica obrigação dentro dessa “ata” deveria ser assumida – e assim redigida – com a contraposição das palavras de ordem.6

Pouco a pouco a inusual forma de transcrição de um diálogo sequencial em documento escrito com finalidade jurídico-probatória passou a ganhar corpo em relação aos próprios fatos que se desenvolviam ante a testemunha, e mesmo palavras solenes de conclusão das obrigações passaram a ser substituídas por palavras solenes de assunção de todo o conteúdo escrito.7 Vale dizer, o ritual continuou a ser praticado, entretanto, não mais para ser observado por uma testemunha qualificada, mas sim já pressupondo a produção do próprio documento escrito. Com isso, vagarosa e progressivamente, as atas se tornam escrituras.8

Em um grande arco histórico que imiscui dentro dos atos notariais não só a praxe romana pós-clássica, mas também os ulteriores rituais germânicos que veem a Auflassung e a Gewere sendo imbricadas na formalidade do levare/traditio chartam, e, posteriormente, pelo simples “tangere” do pergaminho, ao longo da alta Idade Média, são as escrituras públicas notariais o ponto de apoio da construção jurídica daquilo que eventualmente viria a ser o Direito Comum, fazendo com que também em relação ao ritual germânico passasse a preponderar o documento escrito formal.

Em especial a partir da Escola de Bolonha9, as escrituras deixam de ser documentos probatórios, tornando-se efetivos atos constitutivos dos direitos construídos quase artesanalmente pelos notários para cada situação concreta. São dessa época os famosos manuais de “cautelas notariais”.10

Ennio Cortese conta que “pouco depois de meados do século XI, a prática notarial começou a denunciar alguma vaidade cultural do notário na escrita mais precisa e ornamentada, na linguagem e estilo mais corretos. (…) alguns exemplos serão também suficientes para revelar que a crescente atenção à forma dos atos e negócios não permanece um fato externo, mas é acompanhada por uma utilização mais técnica dos instrumentos jurídicos e, em particular, por um novo tratamento das fontes romanas.”11

Nesse momento já se tem bastante claro que o escrito não é mais uma narração, senão é, em si, a substância da própria manifestação de vontade, a produzir efeitos pela outorga dada ao final pelas partes12, e tendo por artífice e intérprete o notário.13

Instrumentos particulares e instrumentos públicos

Esse amplo arco histórico, aqui apresentado apenas em vislumbre, revela a transformação da própria função da forma, de simples prova escrita a um efetivo ato constitutivo/modificativo/extintivo do direito inseparável da própria vontade nela consubstanciada. Essa também a relação e distinção entre escrituras públicas e instrumentos particulares.

  • Nos instrumentos particulares, dado o consensualismo que impera em nosso direito14, todo contrato terá, a priori, mera função probatória. E mesmo aquele instrumento escrito chamado de contrato pelas partes, e a que vêm elas a fazer referência em qualquer discussão quanto à relação contratual, pode também ser complementado por meio de outros documentos, atos e declarações. Como não há forma prescrita, toda forma de manifestação de vontade é válida, reduz-se a escrito com finalidades apenas conservatórias.15 Por isso também a necessidade exigida desde priscas eras de que tais contratos fossem sempre assinados por testemunhas. A função das testemunhas é, tal qual a do próprio contrato, probatória, e historicamente não se admitia mais a apresentação do instrumento contratual em juízo após a morte das testemunhas.16
  • Já o instrumento público, sendo a própria manifestação da vontade em um momento culminante e concentrado, possuiria a chamada “completude” ou “unidade”. Ora, se sobre o que deixou de constar do ato público não recai a fé pública do documento, então se faz necessário que tudo aquilo que se faça relevante para o negócio consubstanciado na forma pública esteja necessariamente nela contida. Em raciocínio que tomaria o famoso acrônimo de Daniel Kahneman por verdadeiro, nas escrituras, what you see is all there is17, a escritura é tudo o que há para se dizer sobre aquela relação, e o que ficou de fora, se presume, não tem qualquer interesse para as próprias partes, uma vez que, se tivesse, teria sido necessariamente para dentro trazido. Essa unidade formal é consequência da própria unidade de tempo, local e manifestação dos negócios orais romanos que não podiam se completar senão em um mesmo contexto. Uma vez outorgada a escritura, não se podem mais agregar novas informações, as quais não terão, assim, forma própria – infringindo, quando obrigatória, o art. 104, III, do Código Civil. Por isso, tratando da hermenêutica negocial em negócios solenes, adverte Mota Pinto que “nos negócios solenes ou formais (…) o sentido correspondente à doutrina geral não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respectivo documento. (…) Como fundamento desta solução formulamos o argumento de que o problema é, no fundo, um problema de vício de forma: o sentido obtido, no plano da interpretação (…) não está formalizado.”18 Em síntese, a passagem da ata à escritura transmuta a narração em intervenção e, dado seu contexto de produção unicamente voltado justamente para tal fim, cria também, como consectário lógico, a integridade, que se traduz na ideia de unidade de ato, já que se presume que tudo o que foi dito era, afinal, tudo o que havia a dizer. Essa unidade, por sua vez, decorre, assim, do efeito constitutivo da forma, quando exigida como solenidade específica para a manifestação da vontade.

Nesse caso, a função probatória da forma é subsidiária. Mesmo que eventualmente se pudesse provar a existência de manifestação por instrumento particular, sem a forma pública enquanto modalidade depurada de manifestação de vontade, a manifestação eventualmente provada careceria do efeito a que se destina e que o ordenamento sabiamente protege por meio da função da escritura.19

Por outro lado, como bem colocado pela Professora Aline Terra na AGIRE #114, nem sempre a escritura terá esse papel de único momento aglutinador da formação do direito, podendo bem ser utilizada pela conveniência das partes, conforme cada situação específica.20 Nesse sentido, nem sempre a escritura será “forma” em sentido estrito, embora seja esta a sua função precípua. Algumas vezes será somente “prova”, e a forma pública será então tão somente exterior, casca utilizada para fins de conservação perene do conteúdo.

Nesse caso, irretocável a conclusão da coluna anterior, sendo a forma aqui meramente probatória, somar-se-á às demais provas em suas respectivas formas, sejam elas públicas ou particulares, para que se possa auferir a configuração do negócio como um todo. Assim, por exemplo, a falta de um elemento que poderia ser essencial e levaria à nulidade de um negócio solene (ex: manifestação de vontade quanto ao preço na compra e venda de imóveis), pode ser tranquilamente complementada por outros documentos no negócio cuja escritura foi confeccionada tão somente ad probationem (ex: manifestação de vontade quanto ao preço na escritura que formaliza como prova cessão de precatórios negociada também por instrumento particular).

Com se vê, o tema da forma revela-se muito mais profundo do que normalmente tratado, comportando cuidados e especificações a serem desenvolvidas pela doutrina e pela prática, como faziam os antigos notários.

Fonte: Agire

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