Artigo justifica e-mail na alienação fiduciária como meio válido, ampliando a eficiência contratual e respeitando a celeridade processual na era digital
Introdução
Em 8 de maio de 2025, a 2ª seção do STJ, no REsp 2.183.860-DF, firmou a tese de que a notificação extrajudicial enviada por e-mail ao endereço eletrônico indicado no contrato – e acompanhada de prova do recebimento – é meio idôneo para constituir em mora o devedor fiduciante. O precedente, posteriormente destacado no informativo 851, unificou a jurisprudência e encerrou controvérsia relevante na prática bancária e na defesa do consumidor.
A decisão merece exame sob três lentes complementares: (i) a Teoria da AED – Análise Econômica do Direito, (ii) o princípio constitucional da celeridade processual (art. 5º, LXXVIII, CF/88) e (iii) a boa-fé objetiva, vetor de comportamento leal e cooperativo entre credor e devedor. O pano de fundo é a globalização e a revolução dos meios de comunicação digitais, que tornaram o correio eletrônico ubiquidade cotidiana e instrumento natural das relações contratuais.
Evolução normativa e jurisprudencial
O art. 2º, § 2º, do decreto-lei 911/1969 historicamente exigia notificação por carta registrada com aviso de recebimento ou protesto do título para que o credor, na alienação fiduciária, pudesse ajuizar ação de busca e apreensão. A lei 13.043/14, ao alterar o dispositivo, prestigiou “outros meios idôneos de comunicação”, abrindo espaço para soluções tecnológicas. A jurisprudência, contudo, caminhava de forma vacilante até o REsp 2.183.860-DF, que pacificou o tema e vinculou as instâncias inferiores.
Globalização, digitalização e novas formas de comunicação
A integração econômica global e a digitalização dos serviços financeiros impuseram velocidade inédita às transações. Empresas operam sem fronteiras temporais ou geográficas; consumidores firmam contratos em plataformas online; bancos oferecem aplicativos que substituem as antigas agências físicas. Nesse contexto, a correspondência física tornou-se exceção cara e morosa, enquanto o e-mail – associado a protocolos de segurança, recibos automáticos e registros de log no servidor – assegura rastreabilidade comparável, quando não superior, à AR dos Correios.
Análise Econômica do Direito: redução de custos de transação
A AED, a partir de Coase, vê o direito como instrumento de minimização de custos de transação. Exigir carta registrada em massa de contratos firmados e geridos por meios digitais implica custo adicional (postagem, impressão, tempo) que, somado à inflação e à logística reversa, transfere-se ao preço final do crédito, encarecendo o financiamento e reduzindo o bem-estar social.
Ao reconhecer a notificação eletrônica, o STJ:
- Reduz custos diretos – tarifa postal, impressão e pessoal.
- Diminui custos de oportunidade – o credor age logo após a mora contratual, evitando depreciação do bem e perda de garantias.
- Mitiga externalidades negativas – inadimplência crônica eleva o spread bancário; acelerar a recuperação desincentiva condutas oportunistas e barateia o crédito para tomadores adimplentes.
Em termos de eficiência de Kaldor-Hicks, o ganho coletivo supera eventuais perdas residuais, pois há remanescentes processuais (ex.: contestação) capazes de proteger o devedor que alegue não ter recebido o e-mail.
Princípio da celeridade processual e mitigação do backlog
A Constituição de 1988 erigiu a duração razoável do processo a direito fundamental. A notificação eletrônica serve a esse mandamento porque:
- Evita demanda inútil – se o devedor confirma a mora e paga, previnem-se litígios.
- Acelera a fase pré-processual – credor não precisa aguardar semanas pelo AR.
- Facilita prova documental – cabe anexar o e-mail enviado, o recibo de leitura automático, o comprovante de rastreamento do provedor ou declaração de autenticidade emitida por certificadora digital.
O STJ, ao admitir o e-mail, colabora para a diminuição do acervo judicial, pois reduz incidentes processuais (nulidades, alegação de citação viciada) e desestimula teses pulverizadas que apenas protelam a execução.
Boa-fé objetiva e dever de cooperação contratual
O art. 113 do CC impõe interpretação conforme a boa-fé e os usos do lugar de contratação; o art. 422 exige que as partes guardem lealdade na fase pré e pós-contratual. Ao indicar um endereço eletrônico e assinar o contrato, o devedor assume deveres anexos: manter o e-mail ativo, consultar a caixa de entrada e atualizar suas informações. O descumprimento configura venire contra factum proprium, obstando a alegação de nulidade da notificação.
Por seu turno, o credor deve:
- Utilizar o e-mail informado;
- Registrar o envio por plataforma que gere comprovação de entrega (logs, hash, certificados);
- Adotar linguagem clara, identificando contrato, parcela e prazo para purgação da mora.
Esses cuidados satisfazem a cooperação e a transparência, pilares da boa-fé objetiva.
Condições de validade fixadas pelo STJ
A tese vinculante estabelece três requisitos cumulativos:
- Previsão no contrato – o endereço eletrônico deve constar expressamente no instrumento, com ciência inequívoca do devedor.
- Envio efetivo – o e-mail deve ser remetido a esse endereço, preferencialmente com certificado digital ou sistema de registro de entrega.
- Prova de recebimento – bastam evidências técnicas (confirmação de leitura, reply-to, recibo de provedor ou ata notarial extraída do servidor) de que a mensagem chegou à caixa posta à disposição do destinatário.
O STJ afastou a exigência de que o próprio devedor abra ou responda ao e-mail; basta que o correio eletrônico ingresse no ambiente virtual controlado pela parte. A ratio decidendi retoma princípios da Corte desde o REsp 1.087.769-RS (endereçamento físico): é irrelevante quem efetivamente receba a carta, contanto que se comprove que esta chegou ao domicílio indicado.
Impactos práticos para agentes econômicos
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Interessado
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Benefícios imediatos
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Riscos/mitigações
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Instituições financeiras
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Menor custo operacional; celeridade na retomada de bens; redução de inadimplência.
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Investir em sistemas de e-mail certificado e criptografia.
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Devedores adimplentes
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Spread bancário potencialmente menor, pois risco de crédito decresce.
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Manter dados atualizados e monitorar comunicações.
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Poder Judiciário
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Diminuição de litígios sobre nulidade de notificação; processos mais breves.
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Necessidade de capacitação técnica para valorar provas digitais.
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Mercado de garantias
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Maior previsibilidade; liquidez dos contratos fiduciários; incremento da securitização.
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Padronizar cláusulas contratuais claras e acessíveis.
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Críticas e salvaguardas
- Divisor digital – nem todos os consumidores dispõe de acesso confiável à internet. A solução é facultar a opção por outro meio de notificação sem custo adicional, especialmente em contratos de adesão.
- Segurança da informação – ataques de phishing e spoofing podem forjar recibos de leitura. Recomendam-se protocolos de autenticação (DKIM, SPF), assinaturas digitais e validação por autoridade certificadora.
- Proteção de dados – a LGPD impõe finalidade específica e minimização. A comunicação deve restringir-se aos dados estritamente necessários ao adimplemento.
- Carga argumentativa nos magistrados – exige-se formação técnica para analisar metadados e cadeias de custódia digitais; Tribunais podem editar enunciados e criar varas especializadas.
Conclusão
A globalização dos mercados e o avanço das tecnologias de comunicação alteraram a forma como as partes contratam, pagam e se cobram. Ignorar essa realidade imporia custos sociais injustificados. O REsp 2.183.860-DF, alinhado à AED, maximiza a eficiência dos contratos fiduciários ao permitir notificação eletrônica, reduzindo assim custos de transação e favorecendo o crédito.
Ao mesmo tempo, a tese prestigia o princípio da celeridade processual, pois elimina etapas burocráticas e mitiga a litigiosidade, e concretiza a boa-fé objetiva, na medida em que condiciona a validade da notificação ao envio para o e-mail previamente eleito e à prova de recebimento.
A legitimidade da notificação eletrônica, contudo, não é absoluta: deve obedecer salvaguardas técnicas e normativas que garantam autenticidade, integridade e igualdade de participação. Com esses filtros, o precedente do STJ consolida-se como caso exemplar de como o direito pode – e deve – dialogar com a economia e com a tecnologia para produzir soluções justas, eficientes e adequadas ao mundo contemporâneo.
Fonte: Migalhas


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