O dinamismo das relações familiares contemporâneas impõe ao Direito desafios constantes, exigindo dos operadores uma interpretação das normas atenta aos princípios constitucionais. Uma questão que tem ganhado relevância é a validade da renúncia recíproca a direitos sucessórios futuros, pactuada em vida por conviventes em união estável.

A controvérsia surge quando, após o falecimento de um dos companheiros, o outro busca a nulidade dessa cláusula, invocando o artigo 426 do Código Civil, que veda o “pacto de corvo” (pacta corvina), ou seja, a contratação sobre herança de pessoa viva. Este artigo se propõe a analisar as teses defensivas para a validade de tal renúncia, argumentando pela necessidade de uma interpretação constitucionalmente adequada do dispositivo legal, que harmonize a autonomia privada com a boa-fé objetiva.

Caso concreto e demanda pela nulidade

O cerne da discussão se manifesta em situações onde indivíduos, em união estável, firmam, livremente e conscientemente, escritura pública com sua convivente, pactuando a separação absoluta de bens e a renúncia recíproca a direitos sucessórios futuros. Após o óbito de um dos pactuantes, o sobrevivente pleiteia a nulidade da cláusula de renúncia. A análise jurídica dessas ações não se restringe à literalidade do artigo 426 do Código Civil, mas abarca questões de legitimidade processual e, fundamentalmente, a ponderação de princípios constitucionais.

Legitimidade passiva na ação de nulidade

Antes de adentrar o mérito, é crucial delimitar quem deve figurar no polo passivo de uma ação declaratória de nulidade de cláusula de renúncia à herança. Conforme o artigo 75, inciso V, do Código de Processo Civil, o espólio é representado em juízo pelo inventariante. No caso de inexistência de partilha de bens, a pretensão de nulidade afeta diretamente a universalidade do espólio e os direitos sucessórios, cuja defesa compete exclusivamente a este, por meio de seu inventariante.

A inclusão dos herdeiros em suas capacidades individuais, nesse contexto, configura ilegitimidade passiva ad causam, por desnecessária e indevida duplicidade de partes, pois a “a pretensão da Autora, de nulidade de cláusula de renúncia à herança, afeta diretamente a universalidade do espólio e os direitos sucessórios, cuja defesa compete exclusivamente ao espólio, através do inventariante, na forma dos art. 618, I, art. 619, I, CPC) c/c art. 75 do CPC”.

A jurisprudência tem reforçado este entendimento, como exemplificado por decisão do TJ-MG que reconhece a ilegitimidade passiva dos herdeiros para responder por dívidas do falecido enquanto não houver partilha.

Controvérsia em torno do artigo 426 do CC: ‘pacta corvina’

O artigo 426 do Código Civil estabelece que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. Esta vedação, conhecida como pacta corvina, visa coibir a especulação sobre a morte alheia e proteger a liberdade do testador em dispor de seus bens. Tradicionalmente, sua interpretação tem sido literal e restritiva.

Contudo, a aplicação irrestrita desse dispositivo, sem a devida ponderação dos princípios constitucionais e dos novos contornos do Direito Civil contemporâneo, pode conduzir a decisões injustas. A questão que se coloca é se a renúncia recíproca e consciente à herança, firmada em vida entre os próprios conviventes em um planejamento familiar, se enquadra na vedação.

Interpretação conforme Constituição: validade da autonomia da vontade

A doutrina moderna e a jurisprudência pátria têm caminhado para uma “constitucionalização” do Direito Civil, onde as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas à luz dos princípios e valores da Constituição. Nesse cenário, a aplicação e/ou interpretação do artigo 426 do Código Civil não pode ser isolada.

A validade da cláusula de renúncia recíproca à herança, livre e conscientemente pactuada em escritura pública de união estável, encontra respaldo em diversos fundamentos constitucionais, que iremos abordar a seguir:

1. Dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade

A dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CRFB/88) engloba a autonomia da vontade e a autodeterminação. A capacidade de cada indivíduo planejar sua vida e seu patrimônio, inclusive estabelecendo acordos com seu companheiro sobre a disposição de bens, é um corolário da dignidade. Negar a validade de um pacto livremente consentido, bilateral e recíproco, como a renúncia à herança em união estável, cerceia a autonomia individual e a capacidade de auto definição das partes, impondo-lhes um regime sucessório que contraria sua vontade expressa.

2. Boa-fé objetiva e vedação ao venire contra factum proprium

O princípio da boa-fé objetiva, positivado no artigo 422 do Código Civil e com forte caráter constitucional, impõe às partes o dever de conduta proba, leal e ética. O instituto do venire contra factum proprium proíbe o comportamento contraditório, ou seja, que uma parte se comporte de maneira a violar a confiança e as legítimas expectativas geradas em outro indivíduo, ainda mais quanto o compromisso de união estável pressupõe a confiança recíproca, honestidade, boas intenções, fidelidade no sentido de honradez nos compromissos firmados pelos conviventes.

No caso de renúncia recíproca firmada em escritura pública, a parte que busca a nulidade está agindo em manifesta contradição ao que anuiu livremente, gerando uma legítima expectativa no falecido de que o pactuado seria respeitado. Admitir tal comportamento significaria dar guarida ao enriquecimento sem causa, em detrimento da lealdade e da probidade que devem pautar as relações jurídicas.

3. Isonomia e a constitucionalização do Direito de Família e Sucessões

Com a superação da distinção hierárquica entre casamento e união estável pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 809 (RE 878.694/MG), que declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, consolidou-se a equivalência dos regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros. Se aos cônjuges é permitida ampla autonomia na estipulação de pactos antenupciais que regem suas relações patrimoniais (inclusive a escolha de regimes de bens que impactam a sucessão), não haveria por que negar aos companheiros a mesma autonomia para, mediante escritura pública, dispor sobre as regras de sua união, incluindo a renúncia recíproca a direitos sucessórios futuros. A recusa em reconhecer a validade de tal pacto para companheiros, quando feito reciprocamente e de forma informada, criaria uma inaceitável e inconstitucional diferenciação.

Inaplicabilidade do artigo 426 ao caso concreto

A vedação imposta pelo artigo 426 do Código Civil tem por escopo coibir a especulação sobre a herança de pessoa viva e a moralidade de se contratar sobre a morte alheia. No entanto, o caso da renúncia recíproca entre companheiros difere substancialmente dessas situações.

Aqui, a renúncia não é de um terceiro, que no futuro poderá ter interesse no patrimônio, na condição de herdeiro, portanto, se referindo a uma herança alheia, nem uma especulação sobre a morte de alguém. Trata-se de uma renúncia recíproca firmada pelos próprios companheiros em sua escritura de união estável, que é um instrumento de planejamento patrimonial familiar. As partes, em vida e com plena capacidade, optaram por um regime de separação total de bens e, coerentemente, abdicaram mutuamente de direitos sucessórios futuros. Isso demonstra um exercício de autonomia privada consciente, visando à clareza e à segurança nas relações patrimoniais do casal. Ora, neste caso, não há especulação quanto à morte alheia, mas sim quanto à morte dos próprios acordantes, caindo por terra este argumento.

A liberdade do autor da herança, ou criador do patrimônio, de testar, que também fundamenta o pacto de corvo, não é violada. Pelo contrário, a renúncia recíproca permite que a vontade do de cujus seja respeitada quanto ao destino de seu próprio patrimônio, sem que terceiros especulem sobre ele. O pacto funciona como uma manifestação de vontade que se encaixa na liberdade de pactuar do Direito de Família.

É importante ressaltar que o ordenamento jurídico já prevê exceções ao pacta corvina, como a partilha em vida (artigo 2.018 do CC), doação com cláusula de reversão (artigo 547 do CC), seguro de vida (artigo 794 do CC) e a deserdação de herdeiro (artigo 1.962 e 1.963 do CC), as quais demonstram que a autonomia da vontade pode, em certas circunstâncias, moldar o futuro sucessório.

Conclusão

A interpretação do artigo 426 do Código Civil deve ser realizada em conformidade com os preceitos constitucionais, garantindo a primazia da vontade das partes quando exercida de boa-fé. Reconhecer a validade da cláusula de renúncia recíproca à herança, contida em escritura pública de união estável, não apenas respeita a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva dos conviventes, mas também promove a segurança jurídica e evita o enriquecimento sem causa daqueles que não trabalharam para conquistar um patrimônio, tendo o seu próprio resguardado, posto que os herdeiros do falecido, não herdarão, o patrimônio desse companheiro, quando de seu morte.

A desconsideração de atos livre e conscientemente pactuados em vida, sob uma leitura anacrônica e literal da lei civil, representa uma violação direta à autodeterminação do de cujus e à dignidade da pessoa humana. O Direito, em sua constante evolução, deve salvaguardar a primazia da vontade do autor da herança, enquanto expressão de sua autonomia pessoal, mesmo após seu falecimento, assegurando que o planejamento familiar e patrimonial consciente seja plenamente válido.

Fonte: Conjur

Deixe um comentário