Processo 1104508-97.2025.8.26.0100

Espécie: PROCESSO
Número: 1104508-97.2025.8.26.0100

Processo 1104508-97.2025.8.26.0100

Dúvida – Registro de Imóveis – Hélcio Yukio Ichikawa – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: FERNANDA HENGLER DINHI (OAB 198990/SP), JOAO PAULO GUIMARAES DA SILVEIRA (OAB 146177/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo nº: 1104508-97.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Hélcio Yukio Ichikawa

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Hélcio Yukio Ichikawa, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de venda e compra, envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 106.806 daquela serventia.

O Oficial informa que foi apresentada a certidão da “escritura pública híbrida de venda e compra de bem imóvel” lavrada em 17.06.2025, por Tabelionato de Notas da Comarca da Capital (livro n. 7.160, fls. 207/218), pela qual Toshio Ichikawa e sua esposa Alice Ishida Ichikawa, Hélcio Yukio Ichikawa e sua esposa Denise Cardoso Ichikawa venderam a Pablo Lavor Martines e sua esposa Clarissa Grando Martines o imóvel objeto da matrícula n. 106.806 da serventia; que o título foi prenotado em 20.06.2025, sob n. 470.029, e devolvido com exigências em 01.07.2025 e 17.07.2025; que o título foi prenotado novamente sob n. 472.116 em 28.07.2025, instruído com requerimento do interessado para suscitação de dúvida; que o ponto de dissenso diz respeito à qualificação das partes na escritura notarial, tendo em vista a omissão dos números de RGs das cédulas de identidade respectivas; que caberia ao escrevente que lavrou a escritura e ao Substituto do Tabelião, caso os comparecentes não fossem seus conhecidos, identificá-los mediante conferência de suas respectivas cédulas de identidade ou documentos equivalentes, fazendo constar da escritura a identificação dos documentos de identidade respectivos dos comparecentes ou, na falta desses documentos, fazê-lo por afirmação de duas testemunhas que os conhecessem e pudessem atestar suas identidades, que é o que preconiza o §1º, II e o §5º, do artigo 215 do Código Civil, como requisito que deve conter da escritura pública, para que possa fazer prova plena; que, no que tange à escrituração da matrícula, a Lei n. 6.015/73 também impõe tal requisito no artigo 176, §1º, item 4, “a”, e inciso III, item 2, “a”, da Lei n. 6.015/73, da mesma forma como prescreve o item 61, do Cap. XX, das NSCGJ; que, por seu turno, ao disciplinar a lavratura dos atos notariais, as NSCGJ nos itens 42, “a”, e 45, “b”, no Capítulo XVI, é absolutamente clara quanto a ser consignado na escritura o “número do registro de identidade com menção ao órgão público expedidor ou do documento equivalente”; que, ainda no tocante à qualificação do título, não consta que as partes são conhecidas do Tabelião ou de seus prepostos que lavraram a escritura; que, ao contrário disso, consta apenas “conhecidos entre si e identificados por mim, escrevente, consoante os documentos de identidade apresentados”, todavia não consta da escritura quais foram esses “documentos de identidade apresentados”; que, nestes termos, as exigências apontadas na nota devolutiva, para retificação da escritura apresentada, a fim de constar o número do Registro Geral (RG) ou número da Carteira de Identidade Nacional (CIN) de todas as partes, não podem ser afastadas (fls. 01/07).

Documentos vieram às fls. 08/117.

Em impugnação nos autos, a parte suscitada aduz que resta claro na escritura híbrida que todos os comparecentes foram devidamente identificados, na forma da lei; que foram encaminhados pela plataforma do ONR, quando do pedido de reconsideração, os documentos arquivados no tabelionato e/ou no “Cadastro Único de Clientes do Notariado”, a saber: CNH, RG e certidões de casamentos de todos os envolvidos; que o artigo 111 do Provimento CNJ n. 149/2023 determina que no ato notarial, serão inseridos na qualificação dos sujeitos: o nome completo das partes, o documento de identificação, ou, na sua falta, a filiação, dentre outros dados; que cabe lembrar que o artigo 1º da Lei n. 14.534/23 estabeleceu o número de inscrição no CPF como “número único e suficiente para identificação do cidadão nos bancos de dados de serviços públicos”; que, portanto, a menção ao número do RG das partes (que, se ausentes, já podia ser substituída pela citação da filiação (cf. artigo 111 do Provimento CNJ n. 149/2023), restou definitivamente dispensada pelo aludido artigo 1º da Lei n. 14.534/23, que elegeu o CPF como “número único e suficiente para identificação do cidadão”; que, destarte, o óbice deve ser afastado (fls. 119/125).

O Ministério Público opinou pelo afastamento do óbice (fls. 128/132).

É o relatório. FUNDAMENTO e DECIDO.

De proêmio, cumpre ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No Sistema Registral, vigora o princípio da legalidade estrita. Assim, quando o título ingressa para acesso ao fólio real, o Registrador perfaz a sua qualificação mediante o exame dos elementos extrínsecos e formais do título, de acordo com os princípios registrários e legislação de regência da atividade, devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ): “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

No caso concreto, a parte interessada pretende o registro da “escritura pública híbrida de venda e compra de bem imóvel” lavrada em 17 de junho de 2025, por Tabelionato de Notas de São Paulo (livro n. 7.160, fls. 207/218), pela qual Toshio Ichikawa, Alice Ishida Ichikawa, Hélcio Yukio Ichikawa e Denise Cardoso Ichikawa venderam a Pablo Lavor Martines e Clarissa Grando Martines o imóvel objeto da matrícula n. 106.806 do 1º Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 14/22).

Consta do registro n. 3 da matrícula n. 106.806, datado de 20/01/2009, que a propriedade do imóvel encontra-se registrada em nome de Toshio Ichikawa, portador do RG n. 3.709.636-9 expedido pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo; Alice Ishida Ichikawa, portadora do RG n. 3.963.129-1 expedido pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo; Hélcio Yukio Ichikawa, portador do RG n. 26.898.407-4 emitido pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (fls. 115).

De acordo com a escritura notarial, no dia 17 de junho de 2025, o escrevente autorizado do Tabelião de Notas realizou o ato notarial eletrônico, com a utilização de videoconferência notarial, entre pessoas maiores e capazes, conhecidas entre si e identificadas pelo preposto como sendo as próprias, seja presencialmente (Toshio Ichikawa, Alice Ishida Ichikawa, Pablo Lavor Martines e Clarissa Grando Martines) ou por meio de reconhecimento facial (Hélcio Yukio Ichikawa e Denise Cardoso Ichikawa), “consoante os documentos de identidade apresentados, dou fé.” (fls. 14 e 21).

No entanto, não consta, na escritura notarial, os números dos documentos de identidade das partes comparecentes ao ato, como também não consta qualquer indicação de quais teriam sido “os documentos de identidade apresentados”.

A qualificação das partes no título notarial constam com os seguintes dados, e nesta ordem: os nomes; as datas de nascimento e respectivas filiações das partes; o endereço eletrônico (e-mail); nacionalidade; profissão; os números dos cadastros de pessoa física no Ministério da Fazenda – CPF; estado civil (Toshio Ichikawa e Alice Ishida Ichikawa, casados entre si; Hélcio Yukio Ichikawa e Denise Cardoso Ichikawa, casados entre si; Pablo Lavor Martines e Clarissa Grando Martines, casados entre si); o regime de bens e a qualificação dos respectivos cônjuges, com os mesmos dados de identificação aqui mencionados (fls. 14/20).

Com efeito, para que a escritura pública possa produzir todos os seus efeitos jurídicos é necessário que cumpra os requisitos formais previstos no artigo 215 do Código Civil, entre os quais se encontra o reconhecimento da identidade e das partes e de quantos tenham comparecido ao ato. Confira-se:

“Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.

§1° Salvo quando exigidos por lei outros requisitos, a escritura pública deve conter:

I – data e local de sua realização;

II – reconhecimento da identidade e capacidade das partes e de quantos hajam comparecido ao ato, por si, como representantes, intervenientes ou testemunhas;

III – nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência das partes e demais comparecentes, com a indicação, quando necessário, do regime de bens do casamento, nome do outro cônjuge e filiação;

IV – manifestação clara da vontade das partes e dos intervenientes;

V – referência ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à legitimidade do ato;

VI – declaração de ter sido lida na presença das partes e demais comparecentes, ou de que todos a leram;

VII – assinatura das partes e dos demais comparecentes, bem como a do tabelião ou seu substituto legal, encerrando o ato.(…)

§5° Se algum dos comparecentes não for conhecido do tabelião, nem puder identificar-se por documento, deverão participar do ato pelo menos duas testemunhas que o conheçam e atestem sua identidade.”

Vê-se, assim, que a lei prevê três meios de identificação: a) o conhecimento direto dos comparecentes pelo Tabelião; b) a identificação mediante documento de identidade; c) testemunhas de conhecimento, para identificação supletória (§5º, art. 215, CC).

De acordo com o arcabouço legal vigente – tais como a Lei n. 7.116/1983, regulamentada pelo Decreto n. 10.977/2022, artigo 2º da Lei n. 12.037/2009, Lei n. 13.444/2017, dentre outras – somente são aptos a identificar a pessoa física os documentos nacionais de identidade previstos em lei, conquanto esses documentos contém elementos e requisitos de segurança, marcas d´água no papel de segurança, e dados biométricos, como fotografia e impressão digital, que garantem a segurança e a fiabilidade da identificação.

Assim, na realidade atual, o principal meio de identificação é o que decorre mediante a exibição dos documentos de identidade oficiais, tais como carteira de identidade – RG; carteira de identidade nacional – CIN; carteira nacional de habilitação – CNH; ou outro documento público de identificação.

Releva observar que, embora o artigo 215 do Código Civil não faça menção à apresentação ao número do cadastro da pessoa física (CPF) ou da pessoa jurídica (CNPJ) no Ministério da Fazenda, tal exigência decorre de instruções normativas da Secretaria da Receita Federal do Brasil.

Com o advento da Lei n. 14.534/2023, o legislador instituiu que o órgão de identificação deverá, na emissão de novos documentos, utilizar o número de inscrição no CPF como número de registro geral da carteira de identidade. Portanto, somente os novos documentos emitidos ou reemitidos por órgãos públicos ou por conselhos profissionais terão como número de identificação o mesmo número do CPF.

O artigo 176, §1º, item 4, “a”, III, item 2, “a”, da Lei de Registros Públicos, ao tratar da escrituração da matrícula, exige a completa qualificação dos transmitentes e adquirentes do imóvel no registro do Livro n. 2, com menção do nome, domicílio e nacionalidade, bem como, em se tratando de pessoa física, do estado civil, da profissão, do número no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou no Registro Geral de Identidade ou, à falta deste, de sua filiação:

“Art. 176 – O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.

§ 1º. A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas:

(…)

4) o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário, bem como:

a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou à falta deste, sua filiação;

(…)

III – são requisitos do registro no Livro nº 2:

2) o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:

a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou, à falta deste, sua filiação;”

Assim também prevê o item 61, do Capítulo XX ,das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça:

“61. A qualificação do proprietário, quando se tratar de pessoa física, referirá ao seu nome civil completo, sem abreviaturas, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e domicílio, número de inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), número do Registro Geral (RG) de sua cédula de identidade ou, à falta deste, sua filiação e, sendo casado, o nome e qualificação do cônjuge e o regime de bens no casamento, bem como se este se realizou antes ou depois da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977.”

Por sua vez, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, ao disciplinar a lavratura dos atos notariais, no Capítulo XVI, assim dispõe, como dever do Tabelião (nossos destaques):

“42. O Tabelião de Notas, antes da lavratura de quaisquer atos, deve:

a) verificar se as partes e os demais interessados acham-se munidos dos documentos necessários de identificação, nos respectivos originais, em especial cédula de identidade ou equivalente, CPF ou CNPJ e, se for o caso, certidão de casamento ou documento comprobatório de união estável, se houver;”

No mesmo Capítulo XVI, o item 45, que trata da escrituração do instrumento público, traz disposição expressa de que deve ser consignado na escritura pública o “número do registro de identidade com menção ao órgão público expedidor ou do documento equivalente”, in verbis:

“45. A escritura pública, salvo quando exigidos por lei outros requisitos, deve conter:

b) nome, nacionalidade, estado civil, profissão, número do registro de identidade com menção ao órgão público expedidor ou do documento equivalente, número de inscrição no CPF ou CNPJ, domicílio e residência das partes e dos demais comparecentes, com a indicação, quando necessário, do regime de bens do casamento, nome do outro cônjuge e filiação, e expressa referência à eventual representação por procurador;

(…)

o) indicação dos documentos apresentados nos respectivos originais, entre os quais, obrigatoriamente, em relação às pessoas físicas, documento de identidade ou equivalente, CPF e, se o caso, certidão de casamento; ”

Neste contexto, diante da omissão dos números dos documentos de identidade das partes, na escritura notarial, e também pela falta indicação de quais teriam sido os documentos de identidade apresentados na lavratura do ato, o acesso da escritura ao registro significaria afronta ao princípio registrário da especialidade subjetiva.

Não se ignora que em casos de escrituras públicas muito antigas, lavradas em épocas em que não havia o rigor legal de hoje quanto à precisão de seu conteúdo, a regra do artigo 176, § 1º, inciso III, item 2, alínea “a”, da Lei de Registros Públicos, traz um abrandamento da interpretação do princípio da especialidade subjetiva ao admitir que, na falta dos números de RG e CPF, a pessoa física seja qualificada por sua filiação.

Não se ignora, ainda, o disposto no § 17 do artigo 176 da Lei n. 6.015/73, segundo o qual: “§ 17. Os elementos de especialidade objetiva ou subjetiva que não alterarem elementos essenciais do ato ou negócio jurídico praticado, quando não constantes do título ou do acervo registral, poderão ser complementados por outros documentos ou, quando se tratar de manifestação de vontade, por declarações dos proprietários ou dos interessados, sob sua responsabilidade”.

Porém, no caso concreto, o abrandamento da interpretação do princípio da especialidade subjetiva não pode ser admitido, pois a escritura notarial eletrônica foi lavrada recentemente, em 17 de junho de 2025, em desconformidade com a legislação e disposições normativas que disciplinam e impõem, de forma cogente, rigorosa observância quanto à precisão de seu conteúdo quanto aos dados de identificação das partes.

Ademais, por se tratar de um ato notarial eletrônico, onde as etapas anteriores ao encerramento da escritura pelo escrevente autorizado e subscrição pelo Substituto do Tabelião, como por exemplo, o reconhecimento por biometria facial dentro da plataforma do e- Notariado, são restritas ao Tabelionato de Notas, é ainda mais salutar, para fins de exame de qualificação registral do título notarial pelo Oficial, que na escritura notarial eletrônica estejam expressos os dados completos de identificação e números dos documentos de identidade das partes, em conformidade com o arcabouço legal e normativo atual, e por consectário do princípio da unicidade do ato.

Logo, as omissões do título notarial não podem ser levantadas.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 10 de setembro de 2025.

Renata Lima Zanetta

Juíza de Direito (DJEN de 11.09.2025 – SP)

Fonte: DJE

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