A crise climática impõe ao Direito um desafio de alta complexidade, que Mark P. Nevitt (2020) diagnosticou como uma “crise jurídica dentro da crise climática”. A advertência se mostra precisa no contexto brasileiro, onde a recente instituição do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), pela Lei nº 15.042/2024, inaugura uma fronteira regulatória que testa os limites do nosso arranjo institucional. Ao adotar um mecanismo de mercado para precificar o carbono, o país se alinha a uma tendência global, mas expõe a fragilidade de seus aparatos de controle tradicionais diante de um fenômeno que é, ao mesmo tempo, técnico, econômico e jurídico.
O SBCE, um sistema do tipo cap-and-trade, cria um mercado regulado no qual empresas devem compensar suas emissões de gases de efeito estufa. A integridade desse sistema, contudo, é a sua premissa de funcionamento. A efetividade da política climática depende da garantia de que cada crédito de carbono negociado corresponda a uma redução de emissões real, adicional e permanente. É nesse ponto que o Ministério Público aparece como ator institucional determinante, investido pela Constituição de 1988 do dever-poder de proteger o meio ambiente e os interesses difusos. Sua atuação, entretanto, se desenvolve sobre uma linha tênue entre a salvaguarda da ordem jurídica e o risco da paralisia regulatória.
A intervenção do MP se depara, primeiramente, com um obstáculo de natureza epistêmica: a carência de capacidade técnica para fiscalizar a qualidade do ativo ambiental. O critério da “adicionalidade” (a prova de que a redução de emissões não ocorreria na ausência do projeto) não é uma verificação documental, mas uma avaliação contrafactual complexa, que exige domínio de metodologias econômicas e estatísticas. A instituição, de formação eminentemente jurídica, não possui, em regra, autonomia para conduzir tais análises, tornando-se refém de laudos periciais externos, em um processo lento e suscetível a contestações que geram profunda insegurança jurídica.
Soma-se a isso um segundo desafio, de ordem estrutural: a fragmentação institucional. A autonomia funcional dos ramos estaduais e do Ministério Público Federal, sem a devida coordenação, abre margem para a chamada “arbitragem regulatória”. Um projeto de carbono considerado irregular em um estado pode avançar sem questionamentos em outro, criando um mosaico de entendimentos que fragiliza o ambiente de negócios e estimula uma judicialização reativa, em que os conflitos são tratados caso a caso, em vez de serem prevenidos por uma fiscalização padronizada.
Contraponto
A proeminência do MP no controle do SBCE suscita, ainda, um contraponto do Direito Administrativo: o princípio da deferência às agências técnicas (ARAGÃO, 2011). Argumenta-se que órgãos de controle generalistas não deveriam substituir o mérito das decisões de reguladores especializados, mais bem equipados para ponderar os complexos trade-offs entre rigor ambiental e eficiência econômica. Contudo, essa presunção de deferência vem sendo globalmente questionada. A recente revogação da Doutrina Chevron (Chevron U.S.A., INC. v. Natural Resources Defense Council, INC., 1984) pela Suprema Corte dos EUA sinaliza um movimento de maior escrutínio judicial sobre a discricionariedade das agências. No Brasil, o próprio Supremo Tribunal Federal, na ADPF 708 (Brasil, 2022), já rechaçou a tese da plena discricionariedade do Executivo na pauta climática, afirmando o dever de intervenção dos poderes diante da omissão estatal.
A eventual centralidade do MP no modelo brasileiro, em contraste com o enforcement predominantemente administrativo do sistema europeu (EU ETS) (Butzengeiger-gwiazdz; Oberthür, 2011), não resulta de uma escolha deliberada, mas da dependência de uma trajetória institucional (path dependence) (Pierson, 2000) inaugurada pela Constituição de 1988. A solução não reside, portanto, em neutralizar a atuação ministerial, mas em qualificá-la. A inação institucional é tão prejudicial quanto uma intervenção expansiva e desprovida de balizas técnicas.
Para que o Ministério Público exerça seu mandato de forma eficaz, é imperativo superar a atuação assistemática. A construção de um arcabouço normativo e colaborativo, que legitime e oriente sua intervenção, é condição para a estabilidade do mercado de carbono. Isso implica, concretamente, a edição de diretrizes nacionais, como recomendações gerais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para unificar orientações, a criação de núcleos de apoio técnico especializados em governança climática e a formalização de protocolos de cooperação com o órgão gestor do SBCE.
Em última análise, a consolidação do mercado de carbono no Brasil não depende apenas da correção de seu desenho econômico, mas do amadurecimento de sua arquitetura de governança. Apenas uma atuação ministerial estratégica, integrada e tecnicamente embasada poderá garantir que o novo sistema cumpra seu propósito, transformando o MP em um pilar para a integridade da política climática, e não em um vetor de incerteza.
Referências
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 708. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, DF, 1 de julho de 2022. Diário de Justiça Eletrônico, 18 ago. 2022.
BUTZENGEIGER-GWIAZDZ, Sonja; OBERTHÜR, Sebastian. The EU Emissions Trading Scheme: A Cornerstone of the European Union’s Climate Policy. Berlin: Ecologic Institute, 2011.
CHEVRON U.S.A., INC. v. NATURAL RESOURCES DEFENSE COUNCIL, INC. 467 U.S. 837. Suprema Corte dos Estados Unidos, 25 de junho de 1984.
NEVITT, Mark P. The Legal Crisis Within the Climate Crisis. Boston University Law Review, v. 100, p. 1051-1127, 2020.
PIERSON, Paul. Increasing Returns, Path Dependence, and the Study of Politics. American Political Science Review, v. 94, n. 2, p. 251-267, jun. 2000.
Fonte: Conjur


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