Decisão pode ajudar a acessar bens digitais como criptomoedas, contratos, arquivos digitais com valor econômico e até perfis monetizados em rede social, compondo o inventário
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu na última semana que, pela primeira vez, herdeiros podem acessar bens digitais armazenados em computadores e outros dispositivos de pessoas falecidas para compor o inventário, mesmo que as senhas não tenham sido fornecidas em vida.
No julgamento, os ministros criaram a figura inédita do “inventariante digital”, que terá a missão de acessar os aparelhos, identificar quais ativos podem ser transmitidos e apresentar um relatório ao juiz do inventário.
O “inventariante digital” funcionará como um perito auxiliar, nomeado judicialmente ou indicado pelos herdeiros, com a tarefa de distinguir bens patrimoniais, como criptomoedas, contratos, arquivos digitais com valor econômico ou até perfis monetizados.
Dados de natureza pessoal e íntima, porém, não poderão ser transmitidos. O acesso aos conteúdos deverá ser autorizado pelo juiz, que também decidirá sobre sua inclusão ou não na partilha.
Para o advogado Bruno Batista, sócio das áreas Cível e Societária na Innocenti Advogados, a inovação traz organização ao processo sucessório também no ambiente digital.
“O inventariante digital terá acesso ao conteúdo, identificará a parcela patrimonial e arrolará no inventário o bem virtual com expressão patrimonial. Já os bens personalíssimos, que são protegidos pela intimidade do falecido, não integrarão a herança. O fato de o inventariante ter acesso não implica prejuízo, pois ele atua sob confidencialidade e responde se caso houver violação de direitos da personalidade”, explica.
Proteção à privacidade
A decisão também recebeu elogios de vários especialistas em sucessão, sobretudo pela proteção à privacidade. A advogada Aracy Barbara, sócia da área de Planejamento Patrimonial e Sucessório do VBD Advogados, destaca a importância da restrição.
“A morte não altera o direito à intimidade e à personalidade do falecido. Os herdeiros têm direito ao que integra o patrimônio, tais como criptoativos ou contratos digitais. No entanto, não dá direito às mensagens privadas, fotos íntimas ou diários eletrônicos. Um acesso irrestrito poderia violar a dignidade pós-morte, tutelada pelo Código Civil”, afirma.
A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, destacou que a função do “inventariante digital” é auxiliar o juiz, com conhecimento técnico, a separar o que pode ser transmitido do que deve permanecer em sigilo.
Para a advogada Júlia Moreira, sócia de família do PLKC Advogados, trata-se de uma figura inédita que atua em situações específicas. “Esse perito será nomeado quando os herdeiros não conseguirem acessar dispositivos, quando houver risco de violação de direitos personalíssimos ou quando for necessário filtrar o conteúdo. Ele não representa o espólio, mas atua como auxiliar técnico, garantindo que apenas os bens digitais de relevância sejam incorporados ao acervo”, explica.
Controvérsias
Entretanto, nem todos concordam com a solução. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva foi vencido no julgamento, defendendo que caberia ao próprio Judiciário autorizar diretamente o acesso, sem criar a figura do “inventariante digital”. Para ele, a decisão representa ativismo judicial ao diferenciar bens digitais e analógicos sem base legal.
Especialistas também apontam desafios práticos. O advogado Rodrigo Forlani Lopes, sócio do Machado Associados, vê riscos na falta de critérios objetivos. “O desafio é definir quando uma foto, um perfil ou uma mensagem deixam de ter valor apenas pessoal e passam a ter valor patrimonial. A decisão, ao criar um inventariante especial para arbitrar essa fronteira, acabou inovando sem base legal e conferindo a terceiros uma tarefa subjetiva. Isso pode potencializar conflitos em vez de pacificá-los”, avalia.
Do ponto de vista operacional, o modelo pode elevar custos e estender o tempo de inventários, mas também traz maior segurança na gestão de ativos digitais. Para a advogada Isabela Gregório, especialista em Direito de Família pelo escritório Efcan Advogados, explica que o inventariante digital amplia o conceito jurídico de herança.
“A decisão admite que não apenas bens patrimoniais tradicionais, mas também arquivos digitais (como fotografias, vídeos, carteiras virtuais e perfis em redes sociais) possam integrar o acervo hereditário. A inovação valoriza o patrimônio digital e previne abusos, ao impedir o acesso irrestrito de herdeiros a informações sensíveis”, comenta.
Para o advogado Lucas Bohun, do Gaia Silva Gaede Advogados, a criação do inventariante digital busca equilibrar direitos. “A nomeação ocorrerá especialmente diante de ativos como criptomoedas, arquivos em nuvem e contas em redes sociais. A medida garante equidade entre os herdeiros e impede, por exemplo, que apenas um deles acesse a chave de criptografia de criptomoedas e se aproprie sozinho do bem. O maior desafio será equilibrar a necessidade de acesso ao acervo com a preservação da privacidade do falecido”, afirma.
Lacunas na legislação
Apesar do avanço, ainda há lacunas na legislação brasileira sobre herança digital, o que gera insegurança jurídica e deixa espaço para interpretações judiciais diversas. Na prática, cada caso dependerá de decisão específica do Judiciário. Por isso, especialistas recomendam o planejamento sucessório como forma de reduzir disputas.
Forlani lembra que um caminho mais seguro é deixar registrado em testamento o destino dos bens digitais. “Algumas plataformas já permitem configurar herdeiros digitais ou transformar perfis em memoriais. O ideal seria que a lei previsse mecanismos claros para proteger conteúdos existenciais, sem deixar essa decisão nas mãos de terceiros após a morte”, diz.
A decisão do STJ marca um avanço no tratamento da herança digital no país, mas sua aplicação prática ainda levantará dúvidas e desafios. Até que haja regulamentação legal, caberá à jurisprudência e ao planejamento prévio dos indivíduos definir os rumos da sucessão de bens digitais, um patrimônio cada vez mais presente na vida das pessoas.
Fonte: InfoMoney


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