A nossa Carta Constitucional de 1988, refletindo a conjectura do processo de redemocratização interna e reafirmando os valores emanados na Declaração Universal de Direitos Humanos, foi pródiga em reconhecer o polimorfismo familiar, perdendo o casamento civil a exclusividade como o seu modo de constituição. Embora o §3º do artigo 226 da CRFB/88 determine o reconhecimento da “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”, é sabido que o Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 4.277 e na ADPF nº 132, o estendeu às uniões homoafetivas. É que, como bem aclarado pelo ministro Ayres Britto naquela assentada, a dualidade homem/mulher fora utilizada apenas para reforçar necessidade de serem as relações afetivas horizontais, em franco combate “à renitência patriarcal dos costumes brasileiros”.
 
Na seara civilista os requisitos, para o reconhecimento da união estável sofreram modificações com o transcurso dos anos. Inicialmente, com a Lei nº 8.971/94 exigida que a convivência afetiva durasse ao menos cinco anos ou que houvesse prole; dois anos mais tarde, com a publicação da Lei nº 9.278/96, que regulou o §3º do artigo 226 da CRFB/88, retirada aquela exigência temporal; e, por fim, com o caput do artigo 1.723 do CC/02, replicado o art. 1º da Lei nº 9.278/96, que fixou como elementos caracterizadores da união estável a “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
 
A mesma evolução não foi sentida em âmbito tributário. Nos termos do inciso II do artigo 35 da Lei nº 9.250/95, somente poderão ser considerados dependentes na declaração de IRPF “o companheiro ou a companheira, desde que haja vida em comum por mais de cinco anos, ou por período menor se da união resultou filho”. Por estar o Carf limitado ao controle de legalidade do lançamento, não poderia negligenciar o elemento temporal expressamente consignado na Lei nº 9.250/95 (lei especial) para os companheiros, valendo-se do disposto no artigo 1.723 do CC/02. Assim, pacífica a jurisprudência quanto os requisitos para a caracterização do(a) companheiro(a) como dependente com base no critério temporal.
 
A questão se torna complicada quando se aborda o parentesco por afinidade, em linha reta, na condição de enteado(a), para o qual não estabeleceu a norma contida no inciso III da Lei nº 9.250/95 qualquer limitação temporal. Na dicção legal, poderão ser considerados como dependentes “a filha, o filho, a enteada ou o enteado, de até 21 anos, ou de qualquer idade quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho”.
 
Sobre a temática tivemos a oportunidade de recentemente nos debruçarmos, constatando a existência de duas vertentes: a majoritária, para a qual imprescindível o transcurso do período de mais de cinco anos da união estável para que o(a) enteado(a), parente afim do declarante do IRPF, seja reconhecido(a) como seu dependente; a minoritária, para a qual despicienda a observância do lapso temporal para tanto.
 
A tese vencedora — preponderante em todos os parcos julgados até o momento proferidos — exigem para o reconhecimento do(a) enteado(a) como dependente, o cumprimento do requisito lançado no inciso II da Lei nº 9.250/95, caso seja a relação entre o declarante e o(a) enteada oriunda de união estável.
 
No Acórdão nº 2101-00.936 foi frisado que, não comprovada a relação de união estável, deveria ser mantida a glosa da relação de dependência da companheira e enteados. Da mesma forma, o Acórdão nº 2002-000.210 enfrentou situação em que não restou comprovada a relação de dependência de companheira, “e, consequentemente, de sua enteada”, e no Acórdão nº 2003-000.020 foi aduzido que “a condição de dependentes como enteadas” decorre da relação de companheirismo, sendo, em ambos, negado provimento ao recurso nesse ponto. Registre-se, por oportuno, que se tratam todos de acórdãos decididos por unanimidade.
 
Também o mais recente Acórdão nº 2202-008.378 envereda por esse rumo, ao referir que “à época dos fatos geradores o companheiro não poderia ser considerado dependente da interessada, e, como consectário lógico, tampouco suas filhas, na qualidade de enteadas (inciso III do artigo 35 da Lei 9.250/95)”.
 
Tais decisões revelam que o Carf vem entendendo haver uma relação de consequência, decorrência, consectário lógico, entre a comprovação da relação de companheirismo por mais de cinco anos e o eventual reconhecimento da condição de dependente da enteada.
 
Essa compreensão evita que surjam situações dotadas de certa incongruência, como a admissão da relação de dependência para os filhos de pessoa física que sequer pode ser reconhecida como dependente, nos termos da legislação do imposto de renda, invertendo, sob certo prisma, a lógica dos eventos reais, segundo a qual primeiro se firma o vínculo de companheirismo, e, como consequência dele, é formado o liame de parentesco por afinidade relativamente aos filhos do companheiro.
 
De fato, sendo a dedução de dependentes associada à existência de encargos de família, e o vínculo familiar do(a) companheiro(a), para fins de imposto de renda, reconhecido apenas após o transcurso de cinco anos, fica deveras difícil conceber o surgimento de vínculo autônomo de dependência para o(a) enteado(a), baseado unicamente na incidência de norma do direito civil, pois estaria a se incorporar no campo tributário apenas parte do novo aparato normativo daquela esfera de conhecimento jurídico, de maneira desequilibrada, restando comprometida a coerência e eficácia na aplicabilidade das disposições em tela diante dos casos concretos.
 
Ainda assim, dentro de uma perspectiva de interpretação lógico-sistemática, a racionalidade do posicionamento preponderante no Carf não seria de difícil percepção. Nesse sentido, tem-se como prescindível a explicitação, por parte do legislador ordinário, da correlação necessária existente entre o decurso do prazo de cinco anos para o reconhecimento da relação de companheirismo e a admissibilidade de dedução do(a) enteado(a), já que esta última é decorrência lógica da primeira.
 
Com efeito, para a corrente majoritária, a caraterização da qualidade de enteado(a) concerne às leis civis, mas os condicionantes para que se configure relação de dependência que diz respeito à incidência do imposto de renda, sob aquela qualidade, devem ser buscados na própria legislação tributária, que apontam para a inafastabilidade do prazo de cinco anos prevista para a caracterização do(a) companheiro(a) como dependente para fins de dedução do IRPF.
 
Noutro giro, propugna a vertente minoritária que a literalidade do disposto no inciso III do artigo 35 da Lei nº 9.250/95 evidencia que o único requisito para que sejam os enteados considerados como dependentes na declaração de IRPF é que tenham “até 21 anos, ou qualquer idade quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho”. Cada um dos incisos do artigo 35 da Lei nº 9.250/95 traz uma figura passível de ser considerada como dependente com eventual pressuposto a ser observado. Basta ser cônjuge para que possa ser dependente (inciso I) e, caso seja companheiro, necessário ter vida em comum por mais de cinco anos ou filho resultante da união (inciso II). Os enteados, sejam eles advindos do casamento civil, sejam pela união estável, equiparam-se aos filhos, bastando que tenham até 21 anos ou qualquer idade, caso acometidos por incapacidade física ou mental que os torne inaptos ao trabalho (inciso III).
 
Ainda que, por óbvio, a contração da união estável seja condição imprescindível ao nascedouro da relação entre o enteado e o declarante do IRPF, inexiste na lei determinação de observância cumulativa dos requisitos contidos nos incisos II e III do artigo 35 da Lei nº 9.250/95. Ora, como diz vetusto brocardo, “onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir”.
 
Em todos os acórdãos prolatados pelo Carf suprarefenciados, salvo o da sessão de 13 de julho p.p., as autuações se deram por dedução indevida tanto do dependente companheiro, ante a ausência da convivência em prazo superior ao quinquenal, quanto dos enteados. E, da análise das razões de decidir, parece ter sido aplicada uma lógica — nem sempre verdadeira — de que o acessório segue a sorte do principal. De acordo com o entendimento dominante, “se o progenitor/companheiro não pode ser considerado dependente, logo os filhos/enteados não o serão”. Pela leitura da norma contida no inciso III do artigo 35 da Lei nº 9.250/95 — replicada nos RIR/99 e RIR/18 — nos parece que da premissa eleita em todos os acórdãos, com a devida vênia, não decorre a conclusão apresentada.
 
Em que pese inexistir tratamento específico no Código Civil dos enteados, os §§1º e 2º do seu artigo 1.595 trazem que o parentesco por afinidade está limitado, dentre outros, aos descendentes e que, na linha reta, tal laço não extingue com a dissolução do casamento e da união estável. Os dispositivos sinalizam para a transcendência da relação entre madrastas/padrastos e enteadas/enteados, que jamais perderão o vínculo entre si, ainda que a relação que o deu origem chegue ao final. Enteados são como filhos, daí o porquê do igual tratamento tributário que lhes foi conferido.
 
A proteção da família, de status constitucional —ex vi do artigo 226 —, não é feita à margem do direito tributário. Nela atua positivamente quando “ampara as entidades familiares por via da tributação, assegurando o respeito à capacidade contributiva dos contribuintes (diretamente influenciada pela integração em unidades familiares), possibilitando, por exemplo, a dedução dos gastos indispensáveis com dependentes”.
 
Por derradeiro, pela lógica predominante, caso contraído casamento civil poderia, imediatamente, figurar como dependente na declaração de IRPF de sua madrasta/seu padrasto. Caso firmada união estável, deveria aguardar mais de cinco anos para ostentar a situação de dependente. O discrímen entre enteados, a depender da forma de constituição familiar eleita, não nos parece compactuar com a Carta Constitucional, seja pelo caput do artigo 5º, seja pelo artigo 227 que determina ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
 
Às conselheiras e aos conselhos do Carf cabe analisar a compatibilidade da autuação e da decisão da Delegacia Regional de Julgamento (DRJ) com a legislação vigente, cabendo exclusivamente ao Poder Judiciário a declaração da ilegalidade e inconstitucionalidade das leis.
 
Tivesse o inciso III do artigo 35 da Lei nº 9.250/95 redação diversa, ressalvando que, para o enteado ou a enteada, oriundo(a) da união estável figurar como dependente seria necessária a comprovação da relação afetiva entre o(a) progenitor(a) e o(a) companheiro(a)/declarante em lapso temporal superior a cinco anos — ex vi do inciso II do retromencionado dispositivo —, não haveria que se cogitar, no âmbito do Carf, a possibilidade de reconhecimento da dedução.
 
Nesta hipótese, incumbiria tão-somente ao Poder Judiciário averiguar a compatibilidade da fixação de marco temporal mínimo para o reconhecimento da qualidade de enteado-dependente advindo de união estável com (i) a proteção constitucional à entidade familiar e com os inarredáveis postulados da (ii) igualdade e da (iii) capacidade contributiva. Enquanto não promovidas, para o bem ou para o mal, reformas na legislação do IRPF, a discussão há de permanecer tanto na esfera administrativa quanto na judicial.