O direito aplicável aos bens imóveis dentro e fora do território nacional demanda a análise da lei do lugar da coisa e possui aplicação prática em diversos instrumentos jurídicos
O presente trabalho tem como foco a análise do regime jurídico dos bens imóveis, considerando a relação estabelecida com o princípio da lex rei sitae, sob o ponto de vista do Direito Internacional Privado.
A importância do presente estudo se justifica pela necessidade de enfrentamento de determinadas situações como propriedade e posse de bens situados dentro e fora do território nacional, modificação e extinção de direitos reais, bem como relações envolvendo testamentos ou ainda contratos, nos quais existam apontamentos em relação a bens.
Desenvolvimento do tema
A Lex Rei Sitae, a qual, traduzida do latim, significa lei do país onde está localizada a coisa ou lei do lugar da coisa é a regra de conexão adotada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro para determinar o direito aplicável aos bens, dentro da ótica de Direito Internacional Privado.
Nessa linha, o artigo 8º do referido diploma legal prevê que “para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados”. (Brasil, 1942)
Portanto, o princípio consagrado na legislação é o da territorialidade, tanto para bens móveis, quanto para bens imóveis, sendo esses últimos, objeto da nossa análise.
Tal definição foi trazida da Escola Estatutária Italiana, tendo como um de seus representantes Bártolo de Sassoferrato, um importante jurisconsulto medieval e comentador do direito romano.
Referida escola fez a distinção entre as regras legais (ou os chamados estatutos) pessoais, os quais regem a conduta das pessoas e os estatutos reais, os quais regem os bens.
Os estatutos reais estão ligados à ideia de território, sendo esse o do poder que edita as respectivas normas .
Seguindo tal raciocínio, é possível determinar qual será o direito aplicável a um imóvel situado no Brasil, ainda que ele tenha sido objeto de aquisição por um estrangeiro ou ainda, tenha sido mencionado em testamento confeccionado no exterior.
Nesse caso, será a lei brasileira que regerá eventuais discussões a respeito do referido bem, assim como será a justiça brasileira a competente para julgar.
De igual modo, a jurisdição brasileira não será competente para julgar a respeito de imóveis situados em outros países.
É uma questão, sobretudo, de soberania nacional, sem a qual os Estados ficariam vulneráveis em seus respectivos territórios.
O julgamento do agravo de Instrumento 2235119-38.2022.8.26.0000, da 2ª câmara de Direito Privado do TJ/SP e o acórdão proferido pelo STJ no RE 1362400/SP são exemplos da aplicação do aludido princípio.
O caso referido no Agravo de Instrumento diz respeito a um inventário, tendo o acórdão se baseado na regra da lex rei sitae para fundamentar a incompetência da autoridade brasileira na partilha de bens localizados em Portugal.
De igual modo, o acórdão proferido no Recurso Especial tratou de uma ação de sonegados promovida pelos netos da autora da herança em face da filha sobrevivente da de cujus, considerada herdeira única por testamento cerrado e conjuntivo feito em 1943, na Alemanha, ação essa destinada a sobrepartilhar bem imóvel situado naquele país.
No aludido julgamento, foi considerada a existência de imóvel situado na Alemanha, bem como a realização de testamento naquele país como circunstâncias a definir a lex rei sitae para reger a sucessão relativa ao aludido bem, afastando-se assim, a lei brasileira de domicílio da autora da herança, o que acabou por esvaziar a regra contida no artigo 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cujo elemento de conexão em caso de sucessão seria o último domicílio da de cujus. Seria, portanto, herdeiro do referido imóvel aquele que a lei alemã considerar.
Nadia de Araujo, ao comentar o referido julgamento, ressalta sua raridade e a cautela adotada pelo STJ ao analisar as questões internacionalistas presentes no caso .
O tema nos convida ainda, à análise sistemática, combinada com o artigo 12, §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e artigo 23 do Código de Processo Civil, os quais preveem a jurisdição exclusiva da autoridade judiciária brasileira para atuar nas ações envolvendo imóveis situados no Brasil, sobretudo em relação à partilha desses imóveis em casos de divórcio, sucessão hereditária ou testamentária.
Maristela Basso, ao explicar o assunto, ressalta que essas são normas que dizem respeito à ordem pública interna e seriam normas unilateriais de direito público, imperativas e inafastáveis .
Nesse sentido, com fundamento no artigo 17 da Lei de Introdução , qualquer decisão proferida por um tribunal estrangeiro acerca de imóvel aqui situado, não terá eficácia e não poderá ser executada no Brasil, por violar a ordem pública, no que tange à competência exclusiva do juiz nacional.
Importante mencionar ainda o artigo 112 da Convenção de Direito Internacional Privado, também chamada de Código Bustamante, ratificada pelo Brasil em 1929, por meio do Decreto Lei 18.871, de 13 de agosto de 1929.
Diz o referido artigo, que sempre será aplicada a lei territorial para distinguir bens móveis e imóveis , sendo que, em relação aos móveis, seriam aqueles de localização permanente, previstos no caput do artigo 8º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, tendo em vista que os bens de uso pessoal do viajante e aqueles em trânsito possuem regramento especial consistente no domicílio do proprietário.
Segundo André de Carvalho Ramos (2023), o tratamento único conferido tanto aos bens móveis, quanto aos imóveis confirma a adoção, por parte do Brasil, da denominada tese unitarista, de Friedrich Carl Von Savigny, um dos mais influentes juristas alemães, o qual defendeu a lex rei sitae fundamentando-se na segurança jurídica, a fim de eliminar incertezas, utilizando-se de regra simples e exclusiva, diferentemente do que ocorre na lei pessoal, que pode variar.
É de bom alvitre ressaltar que ao enfrentar questões práticas relacionadas a imóveis, muitas vezes há uma confusão em relação ao juízo competente, lei aplicável e a relação jurídica, que será objeto da qualificação do caso, se inerente a direito obrigacional ou real.
A título exemplificativo, uma demanda envolvendo um contrato realizado na Espanha, entre partes domiciliadas em países diferentes, cujo objeto seja a compra de um imóvel situado no Brasil, nem sempre atrairá a competência do Estado brasileiro.
Isso porque, se a discussão girar em torno de uma cláusula prevendo juros supostamente abusivos ou da capacidade da pessoa que contratou, por exemplo, teremos uma controvérsia estabelecida dentro do campo obrigacional daquele determinado contrato, o que acenaria para uma jurisdição relativa (e não exclusiva), na qual qualquer Estado seria competente para julgar.
Quanto à regra de conexão, seria a prevista no artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a qual diz respeito a obrigações e não a do artigo 8º, pois, o elemento de conexão não será eventual direito real sobre o imóvel em si, objeto daquele contrato, mas a relação jurídica de direito obrigacional, na qual repousa o debate dos juros ou da capacidade de contratar.
Por isso, é importante que a qualificação dos casos envolvendo imóveis seja feita com cautela pelo jurista, de modo a garantir a correta identificação do sub-ramo do direito envolvido, juízo competente e direito aplicável.
Conclusão
A existência da regra lex rei sitae é fundamental para que os Estados exercitem sua soberania e não interfiram em território alheio.
Como vimos, a aplicação prática de tal regramento é de suma importância, sobretudo na definição de questões sucessórias e de partilha, de modo que em alguns casos, como foi demonstrado no julgamento do REsp 1362400 SP, outras regras previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, como a contida no artigo 10, são inclusive mitigadas, garantido a aplicação da lei da situação do imóvel.
A implementação adequada da referida regra contribui para a promoção de um ambiente seguro e estável aos Estados e ao jurisdicionado.
Nesse sentido, é fundamental que haja um sistema judiciário competente e com a atuação de profissionais conhecedores da matéria de direito internacional privado, com vistas a garantir uma resolução efetiva e justa dos casos levados a juízo.
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– ARAÚJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. E-book.
– BASSO, Maristela. Art. 8º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da (coord.); ISSA, Rafael Hamze (coord.); SCHWIND, Rafael Wallbach (coord.). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Anotada: Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. São Paulo: Quartier Latin, 2019, v. I, p. 479-493.
– BRASIL. Decreto-Lei 18.871, de 13 de agosto de 1929. Convenção Internacional de Direito Privado. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/435904/publicacao/15693455. Acesso em: 02 de junho de 2023.
– BRASIL. Decreto-Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm. Acesso em: 02 de junho de 2023.
– RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direito Internacional Privado. 3ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. E-book.
– SERRANO, Pablo Jiménez. Dicionário Jurídico Atualizado. Rio de Janeiro: Jurismestre, 2021. E-book.
Fonte: Migalhas
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