Inauguramos neste artigo uma sequência de comentários às propostas de reforma do Código Civil com impacto direto na atividade notarial e registral. Iremos analisar os efeitos práticos das alterações do anteprojeto de revisão e tecer alguns comentários de como isso pode influenciar no extrajudicial. Abrimos com o art. 1.247, fundamental para o sistema de transmissão da propriedade imobiliária.

 

Redação atual:

 

Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.

 

Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.

 

Redação proposta:

 

Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado postular que seja retificado ou cancelado.

 

  • 1º Não se procederá ao cancelamento do registro de título aquisitivo irregular que possa atingir direitos reais adquiridos onerosamente por terceiros de boa-fé, sem eles que sejam ouvidos.

 

  • 2º Não será considerado de boa-fé o terceiro que comprovadamente tinha ciência da irregularidade do título.

 

  • 3º A aquisição do terceiro de boa-fé não prevalecerá em face de direitos reais adquiridos, independentemente do registro; e nas situações expressamente previstas em lei.

 

Antes de adentrar a análise do artigo propriamente dita, é imprescindível retomar alguns fundamentos do sistema registral brasileiro. Nos termos do art. 1.245 do Código Civil, a aquisição da propriedade imobiliária segue o sistema do título e modo: “título” porque o fundamento jurídico ou causa de mutação jurídico-real está no título, que será, justamente, o negócio levado a registro (“modo”) para que se efetive a transferência do direito real. É da relação entre o contrato e o registro, inclusive, que se extrai a causalidade do sistema, ou seja, o vínculo entre o direito obrigacional e a disposição da propriedade pelo registro1.

 

O Registro de Imóveis garante ao titular da propriedade segurança jurídica, tanto sob o ponto de vista estático, quanto sob o ponto de vista dinâmico2. A segurança jurídica estática é aquela que se preocupa com os direitos subjetivos do titular do direito real, a fim de garantir a estabilidade e a certeza do seu conteúdo3. Dela decorre a ideia de que o domínio somente poderá ser transferido com o consentimento de seu titular4. Também denominada de “segurança do direito”, a segurança estática “consiste na proteção do titular do direito contra qualquer invasão de terceiros”. Para tanto, é necessária a criação de um sistema de publicidade, que garante a eficácia do direito real erga omnes.

 

A segurança dinâmica, por outro lado, está voltada à proteção do terceiro de boa-fé que venha a adquirir a propriedade. O objetivo dessa segurança é que o terceiro de boa-fé possa confiar no conteúdo do registro5, sem se prejudicar posteriormente por omissão ou erro de informações. Também denominada de “segurança do tráfego jurídico” ou “segurança das aquisições”, a segurança dinâmica “consiste na proteção de um potencial ou pretenso adquirente de um direito” e está fundada na proteção da aparência jurídica, decorrente da publicidade registral. O terceiro adquirente de boa-fé confia no conteúdo do registro e recebe proteção do sistema em razão dessa confiança.

 

Ademais, o Brasil adota também o sistema do fólio real, organizado pelas matrículas, regido pelo princípio da concentração. Trata-se de uma “regra abstrata de que todos os atos, fatos e negócios jurídicos que envolvem o imóvel ou seus titulares tabulares devem estar (“concentrados”) na matrícula, a fim de torná-los oponíveis em face de terceiros”7.

 

O princípio da concentração, como ensina J. P. Lamana Paiva, foi consolidado pelo art. 54 da lei 13.097/20158, o qual estipulou a necessidade de registro ou averbação de constrições e restrições na matrícula para fazer valer sua oponibilidade perante terceiros de boa-fé, assim como tornou obrigatória a consulta da matrícula pelo terceiro interessado para garantir a validade e eficácia dos atos praticados relativos ao imóvel.

 

Feitas tais ponderações, retoma-se a análise do texto legal. A redação do caput foi brevemente alterada para adequar a melhor terminologia do “cancelamento” do registro, no lugar da “anulação”.

 

A redação do parágrafo único, por sua vez, foi suprimida e deu lugar a três novos parágrafos. Os §§1º e 2º tratam do terceiro de boa-fé e o título irregular, estabelecendo-se que o cancelamento de um registro decorrente de título aquisitivo irregular que possa prejudicar direitos reais adquiridos de forma onerosa por um terceiro de boa-fé não será procedido sem a oitiva do mesmo. Além disso, se o terceiro conhecia a irregularidade do título, não será considerado como de boa-fé.

 

Ambos os parágrafos parecem bastante adequados ao princípio da concentração, consolidado pelo art. 54 da Lei nº 13.097/2015 e pela própria lei 6.015/1973. A nova redação do Código Civil garante a proteção ao terceiro de boa-fé adquirente de direitos reais, mesmo com a irregularidade do título e a verificação da boa-fé é feita a partir da consulta à certidão da matrícula do imóvel, nos termos do art. 54 referido.

 

Assim, há uma consonância entre a lei civil e o sistema registral: o Código Civil garante uma proteção dupla ao terceiro de boa-fé e aos titulares de direitos sobre o imóvel, a qual decorre da consulta ao Registro de Imóveis. Exige-se, portanto, que o terceiro interessado seja prudente, consultando a matrícula imobiliária e, com isso, há uma garantia de proteção a ele, caso esteja de boa-fé e aos demais titulares de direitos sobre o imóvel, caso a boa-fé inexista; e o critério objetivo analisado para a aferição da boa-fé é conferência dos ônus existentes ou não na matrícula imobiliária.

 

Veja-se que o sistema em nenhum momento inibe a aquisição do bem onerado, porém é gerada uma segurança, a partir do princípio da concentração, àqueles de boa-fé, coibindo-se fraudes contra credores e a oposição de situações jurídicas não constantes na matrícula.

 

Na sequência, contudo, parece haver um desalinhamento do §3º ao sistema. Define-se na proposta do texto legal que a aquisição do terceiro de boa-fé não prevalecerá sobre direitos reais adquiridos, independentemente do registro e nas situações expressamente previstas em lei.

 

Diferentemente dos parágrafos anteriores em que se prevê a proteção àquele de boa-fé diligente (que consultou o Registro), o §3º protegeu as situações de aquisição de propriedade fora do sistema registral em detrimento do adquirente de boa-fé. De maneira contrária, priorizou-se a tutela da realidade fática da transmissão dos direitos de maneira independente do registro imobiliário, desalinhando a segurança estática e dinâmica do sistema.

 

Toma-se uma situação hipotética prática como exemplo: imagine-se que um imóvel tem um titular matricial que vendeu a propriedade do bem a um terceiro de boa-fé (considerando que esse terceiro consultou a matrícula imobiliária a fim de conferir a regularidade do título a ser formulado), porém, o mesmo imóvel, em realidade, já foi usucapido por uma outra pessoa que cumpriu os requisitos para tal. Como a usucapião é uma forma de aquisição originária cujo registro é declaratório, pela nova redação do §3º, o usucapiente seria priorizado em detrimento do terceiro de boa-fé que adquiriu o bem do titular que constava na matrícula, mas sem conhecer a realidade fática do imóvel.

 

Está-se, portanto, tutelando a realidade fática de uma pessoa que não regularizou sua propriedade no Registro em desfavor do terceiro de boa-fé que confiou nas informações da matrícula.

 

O sistema brasileiro já possui muitas situações “excepcionais” que dispensam a necessidade do registro para a transmissão da propriedade – a exemplo da usucapião, arrematação e adjudicação, desapropriação, entre outras -, e a nova regra proposta fomenta o descompasso já existente entre a realidade fática e o registro imobiliário. Na medida em que a tutela é direcionada para quem adquiriu a propriedade fora do registro em detrimento do terceiro de boa-fé que se baseou na presunção de veracidade da matrícula, o sistema fica fragilizado.

 

Como mencionado acima, o objetivo do Registro de Imóveis é fazer coincidir a segurança estática com a dinâmica, e na medida em uma é relativizada, como consequência, a outra também o é. Como o Brasil é sincrético e adota diversas exceções ao sistema registral, a exemplo dos modos originários de aquisição da propriedade, acaba por não garantir nem a segurança estática e nem a segurança dinâmica9.

 

Tutelar a situação fática em detrimento da situação registral faz com que o Registro vire uma mera aparência (que não condiz com a realidade), fazendo prevalecer as formas independentes de aquisição e desestimulado a regularização da propriedade imobiliária.

 

Diante disso, propõe-se a alteração do §3º a fim de estabelecer que a aquisição do terceiro de boa-fé não prevalecerá em face de direitos reais adquiridos, exceto quando ocorrer respeitando-se a continuidade registral constante na matrícula imobiliária.

 

Voltaremos com novos comentários à proposta de reforma; sigam conosco!

 

Sejam felizes!

 

__________

 

1 Este parágrafo e os dois seguintes foram extraídos de V. F. KÜMPEL, Sistemas de Transmissão Imobiliária Sob a Ótica do Registro. São Paulo, YK, 2020, p. 256 e p. 34.

 

2 MARIA HELENA DINIZ, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 59-60.

 

3 L. BRANDELLI, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 7

 

4 L. BRANDELLI, Registro cit., p. 8.

 

5 L. BRANDELLI, Registro cit., p. 11.

 

6 M. V.A. SOUSA JARDIM, Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013., p. 40.

 

7 Sistemas, p. 346

 

8 J. P. LAMANA PAIVA, A Consolidação do Princípio da Concentração na Matrícula Imobiliária, in Registro de Imóveis – 1ª Zona de Porto Alegre, 24-01-2017, disponível aqui. [07-06-2024].

 

9 V. F. KÜMPEL, Sistemas cit., p. 35.

 

Fonte: Migalhas

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