Quando a realidade e fantasia se misturam? Qual o resultado?
Em São Paulo, o resultado foi a notificação de milhares de contribuintes, em maio deste ano, para autorregularização do recolhimento do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação). Estamos tratando da “operação loki” — nome de deus da mitologia nórdica, conhecido como deus da trapaça, e que se popularizou universo de super-heróis pelo vilão homônimo, interpretado pelo ator Tom Hiddleston na sequência cinematográfica “Vingadores”.
A Unidade Gestora Centralizada do ITCMD, delegacia especializada responsável pelos planos de trabalho e fiscalização do tributo, integrada por 70 auditores fiscais exclusivamente dedicados, deflagrou a operação com objetivo expresso de identificar doação de títulos representativos do capital social de empresas, tanto operacionais quanto holdings.
A notícia trouxe preocupação para as famílias que realizaram alocação e realocação de ativos imobiliários e financeiros em estruturas societárias (holdings e sociedades de participação), no âmbito de planejamento sucessório anterior. Conforme exposto em outro artigo de nossa autoria, as famílias podem se valer dessa estratégia para integralizar imóveis nas pessoas jurídicas, e, num momento posterior, transferir de cotas dessas pessoas jurídicas para os herdeiros, seja via doação, seja via compra e venda.
A “trapaça lokiana” dos contribuintes paulistas consistiria, no visão do Fisco, em simular a transferência de cotas por meio de operações de compra e venda de cotas para acobertar doações, as quais estariam sujeitas ao imposto.
Em São Paulo, as doações de cotas, acima da faixa de isenção de 2500 UFESPS, submetem-se à alíquota de 4% do seu valor patrimonial contábil, nos termos do artigo 14, §3, da lei 10.705/2000; enquanto a compra e venda, feita por valor idêntico ao valor da aquisição, pelo vendedor, não se sujeita à tributação, constituindo fato gerador diverso da doação — naquele caso, a transmissão gratuita de bem móvel, neste caso, a compra e venda de bens móveis.
Ambas as formas de transmissão de cotas — a compra e venda e a doação — são legítimas, eis que previstas em lei, desde que se respeite a legislação tributária, pagando-se os justos tributos.
Entre os indícios de simulação apontados pela delegacia estão grau de parentesco do alienante e adquirente, ausência de declaração de ITCMD, ausência de lastro patrimonial para suportar a aquisição das participações societárias a título oneroso e aquisição de participações por preço módico — abaixo do valor patrimonial dos títulos transmitidos.
Atuação da ‘operação’
No princípio da ‘operação loki’, a administração tributária apenas envia avisos aos contribuintes sem iniciação de procedimento de verificação fiscal, mas dando-lhe ciência sobre a correspondência de alguns dos “indícios” acima arrolados com alguma ou várias operação ou operações societárias desenvolvidas por ele; esclarece-se, na mesma nota, não tratar-se de procedimento fiscal, mas de oportunidade concedida ao contribuinte para, caso queira, regularizar o pagamento do tributo pendente no sítio eletrônico.
Quando tenha havido doação simples com doação das cotas da família para os herdeiros, mas sem declaração de ITCMD, a administração tributária solicita preenchimento da declaração, balanço patrimonial da data da doação, ou, na sua ausência, o último balanço patrimonial do exercício anterior, corrigido pela Ufesp, desde que não tenha havido alteração do patrimônio líquido. A autorregularização proposta neste caso consistirá em recolher os tributos devidos, segundo o Fisco, com a declaração de ITCMD.
Situação distinta tem se dado na transmissão onerosa das cotas, em outras palavras, quando ocorre a compra e venda, e não doação. Neste caso, se não for apresentada a comprovação da onerosidade da operação — comprovação do pagamento e origem do dinheiro — e o contribuinte se nega a realizar a autorregularização, inicia-se o procedimento fiscal propriamente dito.
Poderá se sujeitar o contribuinte ao lançamento de autuação por simulação de compra e venda, exação de imposto atrasado, com juros e correção monetária desde a data do fato gerador, acrescido de multa punitiva de 100% do valor do imposto, e responsabilização penal por crime contra a ordem tributária, nos termos do 8.137/1990, artigo 2º.
Se o contribuinte comprova o pagamento e a origem dos recursos para compra das participações, mas o valor é considerado “módico” pelo auditor fiscal, incorrerá nas mesmas penalidades acima descritas. É considerado módico, na interpretação do ente tributante paulista, o valor de venda abaixo do valor patrimonial das cotas, aferido no balanço patrimonial contábil.
Em outras situações, o ente fiscal tem exigido a origem dos valores destinados a aquisição das cotas, justamente para averiguar situações em que a família “doa”, de forma oculta, dinheiro para herdeiro comprar as cotas, mas não declara essa operação ao Fisco, justamente para não pagar o tributo. Se for o caso, o contribuinte deve recolher o tributo e regularizar sua situação; se o contribuinte efetivamente comprou a participação com recursos do seu próprio patrimônio, porém, deve questionar a cobrança, demonstrando sua origem por meios idôneos.
De modo geral, fica claro, pela atuação prática da fiscalização, que a administração tributária estadual tem considerado, via de regra, a transmissão de cotas por valor inferior ao patrimônio líquido simulação de doação, exercendo, nestas bases, a exação e arbitramento de ITCMD. A autoridade administrativa se fundamenta no artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, para desconsiderar atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Poderia, neste contexto da ‘operação loki’, o contribuinte questionar a ação da fiscalização? Ou deve ele sempre se sujeitar aos (super)poderes do órgão fiscal sem lhe questionar?
Entendemos que a resposta é: depende. Sempre se deve atentar à natureza das operações societárias realizadas. Se foram realizadas doações, em dinheiro ou em cotas, tem razão o Fisco, e deve-se recolher o tributo. Do contrário, se se compra as cotas, e o negócio jurídico, de fato, ocorre — o comprador e vendedor ajustam valor, e o comprador transfere valores de seu patrimônio para o patrimônio do vendedor —, não há incidência do fato gerador do ITCMD, devendo-se se opor, com prudência e inteligência, à administração fazendária.
Liberdade contratual entre contratantes
Primeiramente, é de rigor observar a inexistência de previsão legal acerca do valor mínimo para transferência onerosa de cotas. Na ausência de norma aplicável, e tendo em conta ser atividade administrativa plenamente vinculada, nos termos do artigo 3º do CTN, entendemos dever prevalecer a liberdade contratual das partes contratantes.
Outrossim, caberia à administração tributária o ônus de provar as alegadas simulações, mediante prévio procedimento administrativo, nos termos do artigo 116, do CTN — formalidade esta nem sempre observada.
Citamos, para reforçar esta nossa posição, importante e recente precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. No processo 1001299-20.2023.8.26.0024, julgado pela 1a Câmara de Direito Público, foi submetida ao judiciário ação anulatória de débito fiscal, interposto pelo contribuinte que pretendia o cancelamento de exigibilidade de crédito de ITCMD.
O autor adquiriu 61.167 cotas do capital social da empresa pelo valor de R$ 61.167,00, com atribuição, pelo comprador e pelo vendedor, de R$ 1 por cota. A fiscalização tributária teria apurado que o valor real de cada cota do capital social corresponderia, na verdade, a R$ 3,55, concluindo que o montante de cotas adquiridas valeria, na verdade, a R$ 217.512,54.
Tanto o Juízo de primeira instância, quanto o órgão colegiado, em segunda instância, entenderam ser a cobrança é ilegal, sob o fundamento de que a operação de compra e venda estaria lastreada documentalmente — nos contratos de compra e venda e na alteração contratual — e sob o argumento de inexistir na legislação determinação de que a base de cálculo do ITCMD ocorra sob o valor patrimonial real.
O órgão julgador, outrossim, entendeu que o Fisco não instaurou procedimento administrativo para apurar a alegada simulação, devendo prevalecer a presunção de boa-fé dos contratantes e idoneidade do negócio realizado.
Este caso, dentre outros do mesmo tribunal, prova ser possível a defesa do contribuinte quando submetido ilegalmente a exação fiscal, mas é preciso se munir dos instrumentos contábeis e contratuais pertinentes — balança contábil, contrato de doação, contrato de compra e venda, declaração de imposto de renda etc — para provar a idoneidade das transações societárias, seja no âmbito da defesa administrativa, seja no seio do Poder Judiciário, por mandado de segurança ou por ação anulatória.
Levados pelo bom-humor, mas sem cometermos o deslize de destoarmos de seriedade do tema: não precisa ter superpoderes, apenas executar bem o planejamento, tendo bons argumentos jurídicos para confrontar o abuso da administração tributária.
Fonte: Conjur
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